Com criatividade, o mundo da arte driblou a ditadura

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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de O Globo

50 anos do golpe: A arte foi à luta

Na tentativa de driblar a censura em 21 anos sob regime militar, autores, músicos, diretores, artistas visuais e atores criaram um dos períodos mais férteis da produção cultural brasileira

CRISTINA TARDÁGUILA

MAURÍCIO MEIRELLES 

 
50 anos do golpe Foto: Arte

50 anos do golpe Arte

RIO – Fernanda Montenegro foi ameaçada de morte pelo telefone. Do outro lado da linha, uma voz disse que ela levaria “um tiro certeiro na testa”. Dias mais tarde, uma bala estraçalhou a janela do quarto onde ela descansava. Na mesma época, José Celso Martinez Corrêa e seus companheiros do Teatro Oficina mandaram a bela italiana que trabalhava na bilheteria do grupo a Brasília para dormir com um censor e descolar a liberação da peça “O rei da vela”. Roberto Farias apresentava “Pra frente, Brasil” no Festival de Gramado quando soube que o filme havia sido censurado. Naquele dia, ele fazia 50 anos, mas a revolta se sobrepôs à alegria de ter levado o prêmio de melhor filme do festival. Tom Zé foi preso duas vezes e descobriu que, nas prisões políticas da ditadura militar, cada detento tinha que pagar 70 mil cruzeiros à polícia e dedurar um companheiro. Nas artes visuais, o regime não foi mais brando. Antonio Manuel fugiu de Salvador depois que a Bienal da Bahia foi fechada pelo Exército. Ele jamais recuperou o painel. Tempos depois, novamente foi proibido de exibir uma obra, numa exposição no Rio. “Foi como se me mutilassem”, diz.

Reunimos testemunhos desses e de outros artistas que tiveram suas vidas viradas do avesso pelo regime militar — cujo início completa cinco décadas no dia 31 —, além das visões dos colunistas Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto. Os relatos deixam evidente também que, em contrapartida àqueles 21 anos sob ditadura, viveu-se um dos períodos mais férteis da produção cultural do país. Consolidaram-se, naquela época, nomes que seguem como referência nas artes nacionais.

A combinação de diferentes elementos contribuiu para tal fertilidade, dizem especialistas. A existência de um inimigo comum somou-se à expansão da TV e da indústria cultural no país, dando origem a um ambiente em que a criatividade ganhou fôlego para combater o moralismo hostil das fardas. Foi o tempo da linguagem cifrada, das críticas nas entrelinhas e da ironia dos cartuns.

Para pesquisadores da área, as duas décadas de ditadura podem ser divididas em três períodos distintos. O primeiro, entre 1964 e 1967. O segundo, de 1968 à Anistia, em 1979. E o terceiro nos anos 1980, na redemocratização do país. Os três reverberam até hoje na produção brasileira.

— Na primeira fase, vemos um deslocamento da cultura da elite para a classe média — afirma Mônica Almeida Kornis, doutora em Ciências das Comunicações da Fundação Getulio Vargas. — Até 1968, do ponto de vista formal e artístico, havia uma busca por uma linguagem inovadora. Naquele ano, “O bandido da luz vermelha” (de Rogério Sganzerla) trouxe a frase que define bem o momento posterior: “Quando a gente não pode nada, a gente avacalha”. A censura era fortíssima. Mas a TV se nacionalizou, a indústria cultural explodiu, e a música se expandiu com força nos festivais. Nos anos 1980, houve a diversificação dos produtos, e a ideia de inimigo comum se perdeu um pouco.

Na ditadura, o conflito entre a função política da arte e seu valor estético borbulhava. Alguns a defendiam como instrumento de luta, outros priorizavam o estudo da forma.

— Era, no fundo, uma briga que começou na Grécia e, ao longo da História, foi para lá e para cá — explica Heloisa Buarque de Hollanda, pós-doutora em Sociologia da Cultura pela Universidade Columbia e coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ). — Um personagem forte foi Glauber Rocha. Ele repetia: “Não vou falar, a minha estética é que tem que falar”.

Em segundo plano

No extremo oposto estavam os membros dos Centros Populares de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), que sonhavam criar uma “arte popular revolucionária”. Eles encenavam peças em portas de fábricas e sindicatos para conquistar trabalhadores para a luta política. Desmantelado em 1964, o grupo teve como último presidente o poeta Ferreira Gullar. Hoje, ele considera “ultrapassados” aqueles ideais:

— A preocupação em fazer a revolução era de tal ordem que a arte ficava em segundo plano. Aos poucos, fui mudando minha poesia. No começo era mais política do que poética. Vi que não era por aí. O que a gente estava fazendo era comício — diz ele. — Mas uma geração de artistas foi influenciada pelo CPC. O Chico (Buarque), por exemplo.

Entre 1960 e 1980, o Brasil viveu o boom da indústria cultural. Aparelhos de TV popularizaram-se entre a classe média e ajudaram a consolidar a “integração nacional”. A música foi beneficiada disso, sobretudo com os festivais da canção.

— Naquele momento, os setores mais dinâmicos eram protagonizados por uma classe média de oposição. Não necessariamente de esquerda ou revolucionária. Os quadros intelectuais dessa indústria eram recrutados entre universitários. Essa é uma contradição rica e interessante do período — aponta Marcos Napolitano, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo.

Passados 50 anos, uma das principais consequências do golpe, na opinião de especialistas, foi a escassez dos espaços de debate na cultura, como eram o Cine Paissandu e a cantina do MAM.

— Antes do golpe, as pessoas se reuniam para falar de cultura e política. Esses lugares não eram apenas guetos. Havia gente de todo tipo. Eram espaços de cruzamentos e não só de contemplação. Isso acabou junto com a repressão — diz Mônica.

Para os especialistas, no entanto, diferentemente do que ocorre na Argentina e no Chile, a arte brasileira ainda não se apropriou daquele momento. O golpe segue um tema em aberto.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Quando o mundo pensava, 

    Quando o mundo pensava,  tinha visão filosófica, e ideologias, a cultura marcava com firmeza o contraponto de ameaças de perda de direitos e avanços da democracia.

    Foi assim que surgiu o iluminismo contra os abusos do período medieval, foi assim a eferverscência cultural da década de 50/60 nos EUA, foi assim no Brasil dos igualmente anos 50/60, com reflexos nas décadas seguintes.

    O mundo das artes verdadeiramente revolucionárias é aquele que propõe um avanço da democracia com base na critica e propositura de mudanças comportamentais como alavanca de transformação.

    A critica desferida na época pela esquerda contra boa parte do mundo artístico não se justificava.

    As propostas do mundo das artes, tanto nos EUA como no Brasil, e o próprio iluminismo, trouxeram muito mais avanços nas liberdades do que os movimentos armados ou afins.

    O artistas mostravam as suas ideias, não se escondiam, não se omitiram, como clamava as esquerdas, ao contrário eles se alinhavam as mentes insatisfeitas e iniciaram um movimento parecido com uma onda gigante que passava por cima da hipocrisia, do preconceito e das injustiças.

    A ideia era romper com a lógica racionalizante da direita e da esquerda, e formar um grupo de resistência através das manifestações culturais e trazer a evolução e a queda do regime via as mudanças comportamentais. Foi o que ocorreu.

     

  2. Todo e qualquer gesto de transgressão era válido naquele momento

    Ney Matogrosso: “Minha música é um ato de confronto consciente”

    Tendo a libido como arma e a tradicional moralidade como inimiga, o cantor Ney Matogrosso utilizou sua arte como “um ato de confronto consciente” até se transformar em uma grande lenda da música popular brasileira, a qual tem sua trajetória revista no documentário “Olho Nu”, dirigido por Joel Pizzini.

    “Ter a libido como arma é maravilhoso porque é um poder contra o qual nada e nem ninguém pode enfrentar”, disse Ney à Agência Efe após a apresentação do documentário no Amazonas Film Festival, realizado nesta semana em Manaus.

    O início da carreira em plena ditadura militar fazia de suas provocantes coreografias, marcadas por uma sexualidade ambígua e explícita, um ataque frontal aos valores vigentes da época e, justamente por isso, conseguia abrir um espaço de liberdade em todos os âmbitos da sociedade.

    Essa transgressão lhe transformou em um dos artistas mais queridos e respeitados do Brasil, um carinho que pôde ser observado após a apresentação do documentário, quando foi ovacionado durante vários minutos pelo público presente.

    Tranquilo e observador, Ney procura ceder o protagonismo do documentário aos próprios produtores, tornando notável sua máxima: “sou uma pessoa normalíssima fora de palco, recatada e sem necessidade de uma hiperexposição e nem de chamar a atenção”, afirma o cantor.

    Revolucionário da moral sobre o palco, Ney fez da ambiguidade e da sexualidade parte fundamental de sua arte, incorporando saias, maquiagem, trajes de flamenco, máscaras e movimentos sensuais em suas apresentações.

    O uso da parte dessa vestimenta transgressora, segundo ele, nasceu como uma necessidade de preservar sua identidade: “Tinha 30 anos e não podia perder o direito de andar pelas ruas por causa da fama”, apontou.

    A fascinação pelas máscaras nasceu de seus contatos com o teatro Kabuki, uma disciplina cuja influência se estende às suas peculiares apresentações, nas quais a música é apenas mais uma parte do grande espetáculo que Ney faz de seus shows.

    “Eu me considerava um ator que cantava e pensava que cantar era algo que estava por trás da minha atuação. De fato, quando subi no palco pela primeira vez com o Secos & Molhados – grupo com o qual alcançou a fama – só perguntei que espaço ia ter no palco e comecei a fazer o que me apetecia, nem eu sabia o que ia ocorrer”, confessa o cantor.

    Desde forma, Ney podia iludir o jogo duro da ditadura, já que, segundo ele, naquela época o Brasil “vivia submetido por uma ditadura militar assassina que atirava em pessoas vivas de aviões”, rememora.

    Diante deste contexto repressor, o cantor decidiu que não queria viver mais oprimido. “Tudo o que eu era não estava permitido, tudo o que o governo queria não era eu. Era sair de casa que a polícia já me parava, me revistava e, por isso, recorri à arte para me libertar”.

    Hoje, Ney observa sua faceta de cantor acima do seu papel como ator teatral e rebelde, mostrando-se especialmente satisfeito com seu registro vocal, mais próximo ao tom dos sopranos, que também lhe trouxe problemas no começo de carreira. “É o que me faz ser diferente”, diz o cantor ao reconhecer que sua formação musical foi baseada “na rádio do Brasil”.

    “Agora estamos restritos à música inglesa e americana, mas, quando era criança e adolescente, tudo era muito diferente e, por isso, a música latino-americana também fez parte da minha formação musical”, ressaltou o cantor.

    Ativo aos 72 anos e ainda preocupado com sua privacidade, Ney rejeita o papel outorgado por muitos como intelectual de referência.

    “O que me faz diferente de outras pessoas é meu trabalho, mas, como ser humano, sou parte da espécie, estamos todos no mesmo barco”, conclui.

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