Começou a viagem em mar revolto

(Reproduzo, abaixo, o ótimo texto de Maria da Graça Pinto Bulhões, socióloga e professora da UFRGS, fazendo um balanço do momento político e apontando perspectivas.)

Era previsível o resultado eleitoral do segundo turno. Mesmo assim dói, principalmente porque vem acompanhado da ameaça de repressão seletiva à oposição. Mais fácil é localizar logo um culpado e sobre ele descarregar a dor. No campo do adversário, a causa decisiva da vitória foi o jogo sujo no mundo digital. 

No campo das instituições que se apresentam como neutras – o poder judiciário, o mistério público e os grande meios de comunicação – todas as iniciativas para criminalizar um partido que acabaram por criminalizar e destruir a imagem de todos os partidos tradicionais do país e a própria política, abrindo espaço para o salvador da pátria vindo “de fora”. 
No campo democrático, o suicídio político de direções partidárias com tradição de luta contra a ditadura que se omitiram ou aderiram ao candidato que elogia o autoritarismo. 
No campo identificado com as grandes bandeiras populares, a dificuldade de compor uma frente ampla democrática, em que o espaço ocupado por cada corrente política corresponda à dimensão real de sua representatividade na sociedade. 
No campo da esquerda, a falta de tradição de construção de frentes democráticas, a falta de convívio e de valorização do diálogo com posições divergentes.
Há culpas para todos. Todas prenhes de lições a aprender.
Mas há também o que conquistamos e que é difícil de ver no momento de derrota e dor. 
Há a mobilização de muitos segmentos da população, independente das decisões dos partidos com que se identificam, ao lado de outros segmentos sem qualquer identificação partidária, que levou às ruas um mar de pessoas em manifestações pacíficas, alegres e criativas.
Há a atitude digna e corajosa de lideranças que expressaram publicamente sua discordância frente ao pragmatismo político de seus partidos, que abraçaram uma bandeira autoritária para ganhar votos e eliminar adversários políticos.
Há a frente ampla democrática que se construiu na sociedade civil durante a campanha e no voto, mesmo que os partidos deste campo não tenham se unido.
Há um novo perfil de lideranças surgindo, que não usam salto alto, que sabem respeitar a ouvir aqueles de quem discordam, porque têm clareza de que a democracia é o caminho para as grandes mudanças de que o país precisa. O candidato derrotado destas eleições foi a expressão clara deste novo perfil, orgulhando os democratas que o apoiaram.
Há uma miríade de movimentos, comitês, grupos e coletivos, não institucionalizados, que se comunicam com rapidez e que não desistem de permanecer de pé, lutando pela democracia.
E, no centro da cena, há, de um lado, uma repressão seletiva já prometida à oposição e, de outro, um governo eleito que fez promessas muito difíceis de realizar com o arco de alianças políticas e sociais que construiu.
Não se sabe quanto tempo demorará o novo governo para mostrar a que veio. Mas sabe-se que, para fazer a travessia deste tempo, a arca de Noé da oposição terá que contar com uma diversidade muito grande de viajantes democratas, que precisarão aprender a navegar juntos em um mar muito revolto.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador