Como se acanalha uma classe – do Dr. CRM chegamos aos estupros e assassinatos.

Parte da nossa sociedade está doente e sem cura, pois quem poderia ajudá-la é parte da doença. Uma triste viagem no tempo pelo ensino e prática da medicina no Brasil.

“Realmente, vivemos tempos muito sombrios! A inocência é uma loucura. Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes. Pois implica em silenciar tantos horrores?” – Brecht.

Conquanto leia e me emocione com as recentes e corajojas denúncias com as quais alunos da faculdade de medicina da USP nos trazem notícias de acontecidos por lá análogos aos dos nossos  presídios, não posso deixar, também, de vê-las quase que como ingênuas. Quanto disso já não era sabido há tempos? E, agora, mais uma vez, não vejo como bons os sinais que chegam dos que têm a autoridade e o dever de com ações e atitudes resgatar o ensino e a prática da medicina no país. Há algo de doente em tudo isso, uma doença de classe.

O silêncio dos bons – há uma década e meia, um pacto de silêncio, em torno de um crime, nos mostrava que havia algo de podre escondido sob imaculados jalecos brancos.

Morte de calouro da USP completa 15 anos, acusados foram inocentados.

Há exatos 15 anos, no dia 22 de fevereiro de 1999, a Universidade de São Paulo (USP) o calouro do curso de Medicina Edison Tsung Chi Hsueh, de apenas 22 anos, foi encontrado morto em uma piscina após ter sido jogado na água. Mesmo após ter dito que não sabia nadar.

Os acusados de terem jogado o jovem na piscina responderam o processo em liberdade e hoje são médicos formados. Em junho do ano passado – foi dado um veredicto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e ele foi favorável aos réus.

Na decisão, os ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Gilmar Mendes e Celso de Mello votaram pelo arquivamento. Já os ministros Marco Aurélio, Teori Zavascki e Joaquim Barbosa votaram pela continuidade do processo. 

O tribunal se esquece do que é fundamental: a vítima. Estamos chancelando a impossibilidade de punição a quem cometeu um crime bárbaro”, disse Joaquim Barbosa durante o seu voto.

O grito dos maus – há mais de um ano temos assistido ao suicídio coletivo da imagem pública da classe médica brasileira, provocado por um corporativismo que não tem vergonha de dizer o nome, antes, grita-o na nossa cara.

“Vou orientar meus médicos a não socorrerem erros dos colegas cubanos”, diz presidente do CRM/MG.

Na quinta-feira (22/08/2013), João Batista Gomes Soares [presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG) e crítico do Programa “Mais Médicos” do Governo Federal], anunciou que pretende denunciar os cubanos [médicos trazidos de Cuba pelo programa] por exercício ilegal da profissão.

Em entrevista ao jornal Estado de Minas, publicada nesta sexta-feira (23), João Batista garantiu que, se o governo seguir em frente com as contratações, o impasse vai virar caso de polícia.

 “Se ouvir dizer que existe um médico cubano atuando em Nova Lima, por exemplo, mando uma equipe do CRM-MG fiscalizar. Chegando lá, será verificado se ele tem o diploma revalidado no Brasil e a carteirinha do CRM-MG. Se não tiver, vamos à delegacia de polícia e o denunciamos por exercício ilegal da profissão, da mesma forma que fazemos com um charlatão ou com curandeiro”, afirmou Batista.

O presidente do CRM/MG ainda fez uma declaração polêmica.

“Nossa preocupação é com a qualidade desses médicos, que são bons apenas em medicina preventiva, não sabem tirar tomografia. Vou orientar meus médicos a não socorrerem erros dos colegas cubanos”, disse.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) também considera a adoção do programa eleitoreira, irresponsável e desrespeitosa.

Programa “Maus Médicos”: em SP, eles entram, batem o ponto e vão embora

30 de junho de 2013 – O repórter Fábio Brilhante, do SBT, e sua equipe montaram uma “campana” à porta da maternidade pública Leonor Mendes de Barros, na zona leste de São Paulo e mantida pelo Governo do Estado, durante alguns dias. E flagraram diversos médicos que entram, batem o ponto eletrônico e, menos de 15 minutos depois, embarcam em seus carros e vão embora.

A cena foi gravada em diversos dias, sempre da mesma forma. Abordados, os médicos gaguejaram desculpas como estar indo tomar um café ou terem vindo ver um paciente. Repetem, de maneira presencial, o caso dos dedos de silicone usados para bater o ponto em uma unidade de saúde em Conselheiro Ferraz.

Entende-se que, agindo dessa maneira, estes doutores sejam inimigos mortais de um programa de contratação de médicos para as periferias e municípios do interior.

https://www.youtube.com/watch?v=UVXMaOj1ORo]

O que preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.

Agora, como em 1999, temos novamente notícias de abusos e violências contra alunos da Faculdade de Medicina da USP. Que esse assunto venha a público poderia representar alguma esperança, se não parecessem, os fatos relatados e as reações após eles, com um novo surto de uma doença antiga e mal curada.

A face oculta da medicina

Expor atrocidades praticadas na Faculdade de Medicina da USP envergonha a nós, alunos, mas temos de assumir os problemas e enfrentá-los.

Nesta terça-feira (11/11/2014) , veio à tona na Alesp – Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, o grande número de estupros, de agressões homofóbicas, de assédios e de trotes na Faculdade de Medicina da USP.

Casos que, pela repetição, demonstram o lado sistemático da violência e seu caráter estrutural, que se encontra na maioria das faculdades de medicina do país.

Foram relatadas também iniciativas anteriores da faculdade de omitir os casos, a fim de preservar a imagem da instituição e evitar constrangimentos.

Vimos como nosso maior ensinamento na graduação é o pacto de silêncio, o consentimento passivo como grande instrumento de manutenção de estruturas nas quais aprendemos a lidar e a conviver com a corrupção do mundo.

Práticas sórdidas, desde a “pasta” –segurar à força um colega e enfiar pasta de dente em seu ânus como forma de punição por algum descumprimento de ordem– até a contratação de prostitutas para servir a homens dentro dos espaços da faculdade, foram relatadas na audiência. O desfecho não poderia ser outro: a cultura da faculdade prejudica nossa formação humana. E estamos falando de educação médica.

Ainda assim, há severa resistência entre os alunos da faculdade a aceitar críticas ao que eles reproduzem.

Para alento da democracia, entretanto, pode-se debater o significado das práticas relatadas pelos estudantes que conseguiram romper as leis de silêncio da faculdade. Algumas verdades, contudo, precisam ser assumidas.

A principal delas é que expor o que fazemos nos traz vergonha. Sentimos que nessa exposição manchamos a imagem de uma faculdade que é orgulho nacional. Entretanto os relatos das vítimas de estupro, trote e agressões são apenas uma face oculta. Temos de assumir os problemas e enfrentá-los.

Ficou ainda mais claro, enfim, que a faculdade precisa da ajuda da sociedade civil para conseguir se espelhar em ética. O isolamento da universidade é algo pernicioso.

FELIPE SCALISA OLIVEIRA, 22, aluno do 3º ano da FMUSP – Faculdade de Medicina da USP, um dos depoentes da audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para averiguar casos de violação de direitos humanos na FMUSP.

Médico que apura abusos se afasta da USP

Decisão ocorre após audiência pública em que foram relatados oito casos de violência dentro da universidade

O médico Paulo Saldiva, que presidia a comissão que apura as denúncias de abuso sexual na USP, pediu afastamento da instituição nesta quarta-feira (12/11/2014).

“A faculdade [de medicina da USP] se comportou mal. Houve demora da congregação, ficaram na defensiva [sobre as denúncias de estupro das alunas]. Há uma crise de conduta, de valores. Cansei de engolir sapo”.

Milton Arruda Martins, professor que deve assumir o lugar de Saldiva na presidência da comissão, diz que a proposta é que a faculdade crie a partir de 2015 um canal permanente para receber denúncias. [?

Em nota, a direção da Faculdade de Medicina da USP disse que “lamenta, mas respeita” a decisão de Saldiva.

O Juramento de Hipócrates.

Todo médico conhece o Juramento de Hipócrates, ele é apresentado no site do CREMESP como definição de sua “missão, visão e valores”.

Nele está explicito: “conservarei imaculada minha vida e minha arte”.

E como compromisso final: “Se eu cumprir este juramento, que me seja dado gozar da vida e da minha profissão honrado para sempre entre os homens. Se eu dele me afastar ou o infringir, o contrário aconteça”.

Não é difícil se entender como se acanalha uma classe.

 

PS.: textos citados neste post.

“Morte de calouro da USP completa 15 anos, acusados foram inocentados”. – Portal Terra – Blog Viver SP.

“Vou orientar meus médicos a não socorrerem erros dos colegas cubanos” – Blog BHAZ sobre noticiário de O Estado de Minas.

“Programa “Maus Médicos”: em SP, eles entram, batem o ponto e vão embora” – Blog Tijolaço sobre reportagem do SBT.

“A face oculta da medicina” e “Médico que apura abusos se afasta da USP” – Jornal Folha de São Paulo.

Redação

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