Como usar dados imprecisos para justificar a reforma trabalhista, por Gustavo Monteiro

do Brasil Debate

Como usar dados imprecisos para justificar a reforma trabalhista

por Gustavo Monteiro

Na TV, especialista da PUC-Rio comemora queda no número de processos na Justiça do Trabalho e aumento dos ‘conta própria’, desconsiderando insegurança jurídica, falta de fiscalização e precarização do trabalho

Os economistas heterodoxos brasileiros são recorrentemente acusados de não saber utilizar dados em suas análises. Mas, essa crítica raramente é direcionada a economistas neoliberais.

O professor da PUC-Rio e economista-chefe da consultoria Opus, José Márcio de Camargo, é considerado uma autoridade quando o assunto é mercado de trabalho. Ele também é um defensor e entusiasta da Reforma Trabalhista (RT). No dia 29 de março, participou de um debate promovido pela GloboNews sobre os efeitos da RT. Durante esse debate, o professor usou diversos números imprecisos ou incoerentes. Ao mesmo tempo, a narrativa que ele adotou tirava o foco de algumas questões importantes do debate.

Destaco aqui 4 trechos em que ele usou dados de forma imprecisa ou forçada, com o objetivo claro de enaltecer supostos benefícios da RT:

1.“O número de demandas na Justiça do Trabalho caiu a menos da metade desde dezembro”.
Qual o problema: como bem destacou o economista Adhemar Mineiro (Dieese), que também participou do debate, ainda há grande insegurança sobre como os processos serão encaminhados pela Justiça. Por isso, nesse início de ano, houve um represamento de processos por parte dos escritórios de advocacia, que estão aguardando a reação dos tribunais às mudanças promovidas pela reforma. É cedo para saber a real queda das demandas na Justiça.

O que o dado revela: há insegurança jurídica tanto do lado dos empregadores quanto do lado dos empregados. E, em geral, este último é o lado mais fraco nas negociações.

2.”Em média, dependendo do tribunal, você podia levar 7 ou 8 anos para fechar uma demanda trabalhista antes da reforma. Esse tempo vai diminuir, não tenho a menor dúvida”.
Qual o problema: esse dado é extremamente impreciso. As próprias ressalvas que o professor coloca em sua fala são evidência isso.

O relatório “Justiça em Números – 2017”, do Conselho Nacional de Justiça, reconhece que “a dificuldade de se calcular o tempo total do processo pode ser explicada a partir da complexidade do próprio dado em análise. (…) Saber exatamente que processos seguem um ou outro padrão de duração é uma tarefa extremamente minuciosa, ainda por ser realizada” (p.30).

No entanto, os melhores dados disponíveis mostram que os casos baixados pela Justiça do Trabalho, que ingressaram em 1º grau, levaram, em média, menos de 4 anos para receberem sentença. E, o tempo médio de tramitação dos processos submetidos à revisão no 2º grau foi de 8 meses.
Portanto, o dado levantado pelo economista não só é impreciso e exagerado, como também omite que a Justiça do Trabalho, na verdade, apresenta “taxas de congestionamento baixas e índices de atendimento à demanda elevados se comparados aos verificados nos demais ramos de justiça” (Justiça em números – 2016: p.193).

 

O que o dado revela: pode ser que a Justiça fique mesmo mais eficiente em termos estritamente econômicos, mas não porque está mais rápida ou justa, e sim porque os trabalhadores a acessarão menos devido à insegurança. A Justiça do Trabalho passa por um processo de desestruturação, que envolveu corte de 30% em despesas de custeio e 90% para investimentos – corte superior ao sofrido pelos demais segmentos da Justiça. A RT também criou limitações ao acesso dos trabalhadores à Justiça. Adicionalmente, é digno de nota que um dos motivos pelo qual a Justiça do Trabalho se encontra sobrecarregada é o amplo descumprimento das leis trabalhistas por parte dos empregadores, que muitas vezes consideram mais vantajoso deixar de pagar algum direito do trabalhador e, mais tarde, negociar o valor que devem em audiências de conciliação. Ou seja, não se pode descartar o comportamento oportunista de uma parcela dos empregadores que conseguem, através da Justiça, negociar aspectos que não deveriam ser objeto de negociação.

3.”Já olhei em vários tribunais, processos novos caíram a menos da metade (…) imagina a redução de custo do trabalho que vai acontecer na economia. Uma parte vai pra preço: Por que você acha que a inflação está tão baixa?”

 

Qual o problema: a queda da inflação não pode ser associada com a RT. Primeiro, porque se passou muito pouco tempo desde que a RT passou a valer. Segundo, porque, como o próprio economista salientou anteriormente, os processos na Justiça demoram anos para serem resolvidos– ainda não houve queda nos custos decorrentes disso. E, terceiro, porque a inflação já estava baixa quando a RT entrou em vigor – em novembro de 2017 estava em 2,8% (Gráfico 1).

O que o dado revela: a baixa inflação é, como a jornalista da GloboNews apontou no debate, resultado da economia desaquecida. E o impacto da RT ainda não se fez sentir nesse indicador. Ou seja, o dado não bate com a explicação do professor.

Futuramente, é possível que a RT exerça algum efeito na redução da inflação. Esse efeito, porém, deve ocorrer por meio da queda no ritmo de crescimentodos salários, o que significa que, mesmo com a inflação mais baixa, o poder de compra das famílias permanecerá comprometido. Além disso, a RT incentiva o pagamento de salários por meio de rendimentos variáveis, o que significará redução do papel dos acordos e convenções coletivas na negociação salarial.

4.“O[número de trabalhadores por] conta própria [vendedor de pipoca, por exemplo] aumentou porque aumentou a demanda por seus serviços. Isso é uma evidência da recuperação da economia”.
Qual o problema: o aumento do número de trabalhadores por conta própria é uma evidência da piora do mercado de trabalho e não o contrário. Sete em cada dez conta própria são informais, e a taxa de informalidade, que vinha caindo, voltou a subir com a crise (Gráfico 2). Um quinto dos conta própria informais disseram que gostariam de ter trabalhado mais horas do que vinham trabalhando. Além disso, 84% das pessoas que se tornaram conta própria ganhavam mais em sua ocupação anterior[1].

 

O que o dado revela: O trabalho por conta própria serviu como um colchão do desemprego – a alternativa que as pessoas encontraram para enfrentar um mercado de trabalho cada vez pior, e não uma oportunidade de empreendedorismo que eles vislumbraram diante de um aumento da demanda ou da recuperação da atividade econômica.

Por último, o professor ainda faz uma projeção, sem usar nenhum dado, de que “a RT vai aumentar a formalização porque o patrão vai ter um incentivo a mais para não se arriscar a agir fora da lei”.
Qual o problema: é verdade que a RT ampliou o conceito de trabalho informal, o que pode mesmo ser um incentivo à formalização de postos que antes eram considerados precários. Porém, a verdade é que o empregador sempre teve um risco associado ao uso de mão de obra informal. No momento da demissão, o empregado informal costumava acionar a Justiça em busca de seus direitos.

Espera-se que esse risco associado ao empregador caia à medida que os trabalhadores deixem de entrar na Justiça por medo de acabarem arcando com os chamados honorários de sucumbência, mesmo que considerem que seus direitos lhes tenham sido negados. A RT também não prevê aumento na fiscalização das empresas e, ainda, promoveu o enfraquecimento dos sindicatos, que muitas vezes atuavam nesse sentido – especialmente no momento da homologação da rescisão dos contratos formais – e a um custo menor do que o despendido pela Justiça do Trabalho. Ou seja, ainda não dá pra saber se o incentivo à formalização compensará a redução no risco de usar mão de obra informal.

Esses trechos são exemplos de mau uso de dados. O professor usou dados parciais (no trecho 1), imprecisos (no trecho 2) e estabeleceu relações de causalidade sem fundamentação (nos trechos 3 e 4). E, ainda, tirou o foco de questões importantes que os dados realmente revelam, como: a intensificação da insegurança jurídica; o desmonte da Justiça do Trabalho e das outras instituições públicas de fiscalização do trabalho; o amplo descumprimento das leis trabalhistas por parte dos empregadores; a estratégia de redução de custos por meio do rebaixamento dos salários; a deterioração das condições de contratação no mercado de trabalho e o enfraquecimento da negociação coletiva.

Os efeitos perversos da RT nas condições de trabalho se tornarão evidentes na vida das pessoas. Existem motivos para acreditar que os números estarão do lado de quem critica a RT. Os economistas deveriam se ater mais a esses números.

Nota

[1] Dados para o 2° trimestre de 2017, segundo a PNAD Contínua, do IBGE.

Gustavo Monteiro – É mestrando no Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho – Cesit/ IE-Unicamp

Crédito da foto da página inicial: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

 

 

Redação

2 Comentários

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  1. povo alegre

    É bastante comum alguem ser demitido e ouvir a frase  ´´VA PROCURAR OS SEUS DIREITOS NA JUSTIÇA´´  , agora podem berrar ´´Vá para o olho da rua ! ´´ afinal  o sentimento de humilhar é para quem pode e tem salvag5uarda da justiça para faze lo !

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