Conto: RELATÓRIOS, por Flamarion A. Ferreira

Relatórios

 

Por Flamarion André Ferreira*

 

Chegou em casa solene, a testa franzida, um ar de preocupação jamais visto que preocupou a esposa. Nenhum abraço ou beijo.

– Querido…

Mostrou a mão espalmada, interrompendo-a.

– Mas…

Novamente, desta vez lhe direcionou o olhar, profundo, como uma seta, com suas pupilas cor da noite, tão dilatadas que parecia sob o efeito de qualquer entorpecente.

– Relatórios, respondeu.

Virou-se, sequer foi à cozinha para seu tradicional copo de café e seu pedaço de pão. Tampouco se banhou. Foi direto ao quartinho onde desenvolvia seus projetos pessoais, tão secretos quanto intrigantes. Sumiu lá dentro e a porta se fechou atrás dele. Horas e horas se passaram e nada de ele sair. A esposa já estava preocupada quando, cinco horas depois, ele saiu. Um semblante cansado, mas ainda com aquele aspecto sério.

– Querido…

Aquele olhar novamente, mais incisivo desta vez. Tomou um gole d’água, foi ao banheiro e lavou o rosto. Fitou-se um pouco no espelho como internalizando, ou reconhecendo, o esforço que ainda estava por fazer. Secou-se. Atravessou a sala e, quando a esposa inspirou na iminência de dirigir-lhe a palavra, sacudiu a mão como quem dissesse “Nem ouse”.

Entrou de novo. A esposa adormeceu e no dia seguinte ao acordar ele já havia ido ao trabalho. Ao anoitecer a cena se repete e assim durante todo o mês. Relatórios e mais relatórios. E ela já em tempo de perder o juízo. Já não sabia o que fazer. Todo esse tempo sequer conversara com ele, que dirá os outros afazeres do matrimônio.

No dia seguinte, ao completar um mês, chegou em casa com um novo semblante, mais leve, pode-se dizer que até se esboçava um sorriso. Beijou-a carinhosamente na testa. Tomou seu café com pão. Sentou-se ao sofá.

– Querido?!?! Hesitou a esposa.

– Os relatórios…

Ela ansiosa.

– Acabaram.

Ela quase chorou. Na verdade lhe escorreu uma lágrima, sutil, discreta. Enfim aquele sofrimento acabara. Pulou no colo dele, abraçou-o bem apertado. Recompôs-se. Ele continuou.

– Eles gostaram. Muito. Acho que serei promovido.

– Que ótimo. Vamos comemorar.

Saíram a tempo de pegar um restaurante, aquele a que sempre quiseram ir. Pediram o melhor prato, a despeito do sabor, que mesmo assim, estava maravilhoso. Aquele vinho daquela safra de tempos quase imemoriais, feito de uvas talvez cultivadas pelos próprios deuses.

Voltaram a casa. Entregaram-se. Tiveram uma noite de amor como nunca antes. O futuro era promissor. Novo dia, ele agora radiante. Abraçou-a, desta vez forte, inclinando-a, como nos clássicos de Hollywood, e beijando-a ardentemente. Café e pão. Mais notícias.

– Fui promovido.

Ela apaixonada. Mais uma noite inesquecível. Melhor que a anterior. Ao sair para o trabalho ela acordou, ele a beijou, abraçaram-se, renovaram juras de amor.

– Este é o primeiro dia do resto de nossas vidas, prometeu ele.

– Com certeza, meu amor, ela anuiu.

Ao anoitecer ela o esperava ansiosa pela primeira noite do resto de suas vidas, que seria melhor que as anteriores. Estava perfumada, com aquela fragrância que ele gostava, sua melhor lingerie provocantemente coberta por uma camisola semitransparente. A casa estava à meia luz, velas aromáticas, Barry White dava o som ambiente, tudo perfeito, pensara. Quando a maçaneta girou, ela nem aguardou a entrada dele, já foi em sua direção, insinuante, sem ao menos olhar-lhe o rosto. Ao se aproximar, inclinando-se para o beijo, foi que notou. Ficou paralisada. Aquele semblante, aquele ar cansado, sério, sisudo, inamistoso. A mesma mão espalmada em sua direção, a cabeça levemente baixa, movendo-se lateralmente como se negasse algo. Ele respirou fundo, soltou o ar lentamente, como se desacreditado no que diria a seguir. Ela, no entanto, adiantou-se.

– Querido???

Ele, agora erguendo a cabeça, olhou-a como se olhasse sua alma, que naquele momento quase se dissociara do corpo físico, e disse em tom grave.

– Relatórios.

– Mas… ela replicou.

– Shhh… Relatórios.

E sumiu quartinho adentro, deixando sua dama da noite incrédula, em pé naquela sala. Ela, Barry White e o aroma de baunilha.

*Flamarion André Ferreira é natural de Itabira-MG.

Redação

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