Contra miséria, Contag propõe reforma agrária

Se o novo governo quer combater a miséria, deve colocar a reforma agrária no centro de suas prioridades, argumenta Willian Clementino, secretário de políticas agrárias da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, Contag.

Convidado para falar se as políticas de reforma agrária devem ser repensadas, Clementino acredita que sim, em especial sobre a porção de terras que cada brasileiro tem direito a adquirir.

O porta-voz da Contag avalia que a quantidade de assentamentos realizados nos últimos 8 anos ficou aquém do que os movimentos sociais esperavam. Mas aponta que os programas de acesso a crédito, de incentivo à produção de alimentos e Luz para Todos foram primordiais para o desenvolvimento desses populações.

A demanda por esses núcleos de habitação e produção já ultrapassa 1,2 milhão de famílias, sendo que, de 2003 a 2010, o governo assentou pouco mais de 614 mil famílias, segundo dados do Incra. Hoje, cerca de 800 mil famílias estão em assentamentos regularizados.   

A organização de pequenos agricultores também entende que o Ministério do Desenvolvimento Agrário precisa ser fortalecido, assim como o Incra, com um quadro de servidores considerado reduzido em relação à responsabilidade política que acumulou nos últimos anos.  

Acompanhe a entrevista.

Qual a visão de vocês quanto à situação dos assentamentos da reforma agrária, e qual é a postura que o governo tem tomado para melhorar o desenvolvimento desses locais, se de fato, dentro de cada núcleo, tem sido difícil às famílias produzirem tanto para o próprio sustento quanto para comercializar o excedente?

Uma das coisas a serem levadas em consideração é que existe um estudo do Incra [Avaliação da Qualidade dos Assentamentos, Produção e Renda], orientado pela necessidade de combater a miséria, que traz alguns elementos que falam da necessidade do Brasil investir um pouco mais na reforma agrária.

Acho que as informações trazidas [no estudo], de que parte das pessoas assentadas, hoje, vivem com menos de um salário mínimo, precisam ser melhor detalhadas, porque não podemos olhar àquilo o que o trabalhador ou a trabalhadora assentada produz e comercializa como sendo sua única renda existente, uma vez que trabalham também no sentido de garantir sua própria alimentação, a alimentação de animais e da sua família – parte que não é vista em moeda, mas também tem valor financeiro.

*Aqui, Clementino se refere à informação de que 38% das famílias assentadas no país vivem com menos de um salário mínimo, divulgada na matéria “Plano de Dilma para erradicar pobreza põe em xeque modelo de reforma agrária”, do jornal O Estado de São Paulo, publicada na edição do dia 20/01. Segundo o mesmo veículo, a informação seria de um levantamento realizado pelo Incra.

No mesmo dia em que a matéria foi publicada, o Incra divulgou uma nota de esclarecimento, informando que “não existe qualquer levantamento oficial e conclusivo, por parte do Incra, que indique o número de 38% de famílias assentadas vivendo com menos de um salário mínimo no Brasil”.

Então é como escambo, certo? Quando eles vivem também da troca do que produzem com outros da mesma comunidade?

Isso. Fazendo um olhar mais amplo é possível visualizar que os mesmos [trabalhadores assentados] terão um valor superior a essa quantidade que foi colocada, de menos de um salário mínimo. Por outro lado, é necessário levar em consideração que o Brasil precisa continuar abordando a visão da reforma agrária qualificando sua ação e dar condições [aos assentados] para resolver os problemas que foram cometidos no passado.

É necessário assentar mais famílias, porque a origem da pobreza e miséria no Brasil tem raiz na concentração de terra, e só vamos combater de fato a miséria se formos até suas origens e criar condições para avançar cada vez mais na reforma agrária.

O período em que o governo do presidente Lula esteve coordenando o país foi um momento em que a reforma agrária não avançou como gostaríamos, ou como deveria. Mas, levando em consideração o conjunto das políticas que constituem a reforma agrária, tivemos um avanço significativo, uma vez que foi aumentado o volume de recursos do Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar], foi criado o Programa Mais Alimentos, uma vez, também, que nós avançamos no PAA [Programa de Aquisição de Alimentos ], e também no Programa Nacional de Alimentação Escolar. Todos esses aportes e programas constituem o bojo da reforma agrária.

A partir desse ponto de vista, em que diz que apesar de não ter sido o ideal houve melhoras, o que Dilma deve fazer, agora, para que de fato caminhe a reforma agrária e para que os assentamentos melhorem da forma como desejam?

O primeiro ponto é colocar a reforma agrária como estratégica, do ponto de vista da erradicação da miséria, porque daí que se origina a história da pobreza no nosso país, desde que foi ocupado. Portanto, é trazer a reforma agrária para o centro do desenvolvimento do país.

O outro ponto é ter essa compreensão ampla de que a reforma agrária tem esse papel de transformar a vida de sujeitos em condições desiguais, ou até mesmo desumanas.

Precisa haver também uma auto-valorização político-financeira do MDA, Ministério do Desenvolvimento Agrário, bem como do Incra, no sentido de criar condições para realização da reforma agrária. Porque esse órgão [MDA] foi muito vitimado nesses últimos tempos a partir de investigações de um monte de órgãos de controle que parece que só viam na Explanada o Incra e o MDA.

Outra questão é o Incra redefinir seu papel quanto fiscalizador e quanto órgão que execute de fato a obtenção de terras nesse país. O Incra, hoje, tem se tornado um instituto muito grande do ponto de vista da responsabilidade política, ao mesmo tempo que tem um quadro de servidores abaixo da capacidade de execução.

Acho que o novo ministro [Afonso Florence, do MDA] e a presidente [Dilma Rousseff] precisam assumir o compromisso de realizar de fato um processo que garanta a operação, ou seja, a execução da Constituição Federal a partir da lógica da atualização dos meios de produção e combate a estrangeirização da terra.  

A estrangeirização da terra tem que estar colocada junto a uma questão – que considero muito importante – que é a do limite da propriedade da terra no Brasil, tanto para brasileiros quanto para estrangeiros.

Sobre a estrangeirização. Nos últimos anos é possível fazer um balanço para saber se aumentou ou diminuiu esse processo?

De acordo com o Senso do IBGE, de 2006, houve uma concentração de terras maior. E olhando para a Reunião Especializada de Agricultura Familiar do Mercosul [REAF], que tem feito estudos sobre a estrangeirização de terras no Brasil, a estrangeirização vem aumentando de forma significativa, principalmente nos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

O governo federal, a partir da orientação da Advocacia Geral da União, tenta regularizar um processo já existente no Brasil que é de controlar esses processos a partir de um livro único de terras, onde estrangeiros tenham parte nessa questão. Mas isso não retroage os períodos em que pessoas, de forma ilegal, cometeram os deslizes de adquirir terras com recursos quase que totalmente estrangeiros.

Qual é a região do país onde houve mais assentamentos implantados nos últimos anos? Com a criação desses assentamentos ocorreram, juntas, políticas que os beneficiaram?

Essa é uma das questões que, no momento, não posso informar qual a região que mais avançou, porque não temos um balanço, ainda. Mas, o que aconteceu de fato é que os processos de reforma agrária, seja via Incra, seja via Programa Nacional de Crédito Fundiário, têm mudado significativamente a dinâmica dos trabalhadores, suas condições de vida. A exemplo dos trabalhadores que já foram assentados e acessaram recursos para habitação, acessaram energia elétrica sendo que, em outra hora, em anos anteriores, quem tinha energia elétrica no campo eram só os grandes produtores.

Hoje a maioria dos produtores rurais assentados, agricultores familiares, também tem acesso à energia, garantindo melhores condições de tratar seus produtos, de beneficiamento, evitando, também, uma grande perda com as condições de armazenamento.

Então, os assentamentos avançaram bastante nesse sentido. Olhando para o Programa Nacional de Crédito Fundiário, por exemplo, uma das ações da reforma agrária contida no segundo PNRA [Política Nacional de Reforma Agrária], é que nós temos um assentamento no Rio Grande do Norte que exporta mamão para a Itália. Ao mesmo tempo que também temos um assentamento do Incra no estado do Piauí que exporta melancia.

* Segundo dados do Incra, publicados em dezembro de 2010, dos 1.161 assentamentos existentes no país, 72% contam com energia elétrica.

Tem também um caso do Rio Grande do Sul, de um assentamento que há muito tempo exporta leite.

Isso, que faz parte de um processo organizativo da questão da produção do leite. Então, nós começamos a visualizar a capacidade produtiva e comercial dos projetos de assentamentos que, anteriormente, víamos como [espaço de] coitados ou objetos de políticas públicas e, hoje, são sujeitos protagonistas da sua própria história.

Quando você chega num assentamento hoje consegue encontrar famílias produzindo de forma diversificada. Encontra na propriedade uma antena parabólica onde esses agricultores estão conectados, assistindo ao mundo. A gente consegue, também, ver a forma de armazenamento produtivo mais dinâmica.

Esses avanços são extremamente consideráveis no Brasil inteiro. Não tenho um dado mais preciso onde isso tenha se qualificado muito mais.  

Sabe dizer quantas famílias ainda necessitam ser assentadas no Brasil?

A nossa demanda, hoje, ultrapassa 1,2 milhão de famílias a serem assentadas, porque essa demanda passa inclusive a crescer com famílias que têm origem no campo [são da cidade] e começam a perceber a valorização do campo, a partir das políticas públicas existentes, como um lugar mais promissor para seu desenvolvimento.

Acaba havendo, então, um retorno… O número de famílias hoje assentadas é de cerca de 900 mil, certo?

Sim.

*Segundo o Incra, registros do período de 1985 e 2008 apontam para um universo de 805.107 mil famílias assentadas.

A dúvida que surge, então, é: em quais regiões do país acreditam que existe mais espaço para progredir nesse sentido?

Acho que a região Nordeste precisa avançar muito na questão agrária, porque tem muitos latifúndios improdutivos e é necessário fazer daquela região cada vez mais forte e independente, onde os trabalhadores deixem de ser dependentes do estado brasileiro, de uma cesta básica para a própria alimentação.

Precisamos avançar muito na região Norte. Ali há uma concentração de terras muito grande, inclusive de terras públicas. O Centro-Oeste é, também, uma das regiões de maior concentração de latifúndio, da produção sucroalcooleira, que chama atenção para a necessidade de reforma agrária.

Acho que tem um público prejudicado nos últimos períodos, principalmente das regiões Centro-Oeste e Sudeste, que com a mecanização da produção sucroalcooleira irão ficar sem salário. É um público promissor para a reforma agrária nessas regiões, para além dos trabalhadores que estão acampados, meeiros, arrendatários, entre outros.

Basicamente o papel desses pequenos assentados, geralmente, é na produção de alimentos? Ou vocês acham que tem alguma maneira de encaixá-los na produção desses produtos mais voltados para o mercado internacional, como cana, soja?

Não. Acho que os assalariados rurais da cana de açúcar com a mecanização vão ficar sem espaço de trabalho e precisarão, para garantir sustento da família, ter condições de acesso à terra, que é um meio. Porque muitos desses trabalhadores têm a vocação e não sabem trabalhar com outra coisa que não seja a terra. É um público em potencial para a reforma agrária, na região Centro-Oeste e, também, na região canavieira nordestina.

Nós da Contag estamos fazendo muita gestão desse público. Para um grande processo de erradicação da miséria poderíamos estar cometendo um erro se não olharmos para esse público.

Agora, os trabalhadores e trabalhadoras rurais têm ampliado sua produção de alimentos e apoiado a iniciativa dos biocombustíveis com a produção de mamona e pinhão manso. A agricultura familiar, além de bancar mais de 75% de alimentos consumidos no país, tem-se voltado para produção de insumos para energia limpa, renovável. Como também tem zelado pela questão ambiental, fator preponderante no nosso país, visto todas as catástrofes recentes, no estado de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas…

Nesse sentido, vocês são a favor das alterações propostas para o Código Florestal Brasileiro, mas me refiro específicas às áreas de proteção permanente?

A Contag tem se esforçado para que o Código Florestal Brasileiro dê tratamento diferente nesse processo, inclusive aos agricultores familiares. E como nossa legislação tem sido muito genérica, a Contag tem solicitado [mudanças] para que [o Código Florestal] não venha a penalizar a agricultura familiar, mas se utilize do termo ‘agricultura familiar’ como um dos exemplos de condições de preservação ambiental.

Muitas vezes somos penalizados, temos dificuldades para fazer licenciamento, enquanto os grandes têm maior facilidade de licenciamento. Portanto temos que ser enxergados nesse processo como diferentes, e compreendidos como tendo práticas sustentáveis do ponto de vista econômico, ambiental e também financeiro.

E quais são os principais motivos que fazem com que vocês não sejam, perante o atual Código, legais, e quais fazem com que sejam considerados sustentáveis em relação aos grandes produtores?

Primeiro o que deve ser levado em conta é que tem vários estudos no nosso país que apontam a agricultura cfamiliar omo muito forte na preservação de matas ciliares e áreas de preservação permanente, ao contrário do outro seguimento da sociedade, que é o agronegócio, que não tem levado em consideração o aspecto da questão ambiental, e tem preponderado a questão financeira.

Quando se passa pelo Brasil afora em uma área de agricultura familiar, é possível visualizar as áreas de preservação permanente de forma nítida. E quando se passa numa área do agronegócio perde-se infinitamente do nosso olhar [o final] do deserto verde que é colocado. Parece que ali não existiam animais, água, uma infinidade de coisas da biodiversidade.

Nesse sentido podem dizer que não é necessário reduzir as áreas de preservação permanentes, a proporção de áreas que devem ser preservadas das matas ciliares, porque de forma comum isso já é feito pelos pequenos agricultores, uma vez que sabem que é necessário que suas terras se mantenham em equilíbrio para que possam produzir naquela terra por muitos anos? Basicamente é isso?

Basicamente nossos agricultores de tradição e cultura têm tratado dessa forma. Agora, claro que ainda há entre nós alguns trabalhadores e algumas trabalhadoras que têm tido outras concepções, mas isso não é o que prepondera.

Você falou que não chegou a ver a matéria que saiu no Estado de São Paulo, mas o que foi colocado é que a presidente Dilma, junto com representantes de outros Ministérios, chegou a ver os números do levantamento do Incra, e por isso pôs-se em xeque o modelo brasileiro de reforma agrária. A partir desse princípio, acham que o modelo de reforma agrária do país pode ser colocado em xeque?

É preciso fazer uma avaliação na forma tradicional de se fazer reforma agrária, que é vinda dos anos 1950, porque hoje estamos num novo momento da história do Brasil e precisamos, cada vez mais, qualificar o modo como fazemos reforma agrária.

Portanto, acho que esse questionamento que se diz ‘botar em xeque’, começa a sinalizar que há uma necessidade de fazer algumas modificações. E nós, dos movimentos sociais, compreendemos perfeitamente as alterações que precisam ser feitas, que são aquelas que coloquei anteriormente, dos desafios.

Mas os marcos regulatório da reforma agrária, que foram constituídos pelo Estatuto da Terra, e outros instrumentos, não permitem uma reforma agrária com uma maior qualidade e também quantidade.

Então [essa discussão] nos anima porque temos disposição, os movimentos sociais do campo – daí falo pela Contag – de poder discutir, propor novos marcos legais, novas estratégias, para a reforma agrária.

Poderia especificar algumas disposições do marco legal que são incoerentes para realização da reforma agrária?

Por exemplo, uma das questões que trata na legislação é sobre o direito de propriedade. O direito da propriedade transfere a função social da propriedade. O que hoje tem-se levado em consideração, uma vez que consta no caput da lei, é só a questão da produtividade, mas nós sabemos que a função social da terra não é só o grau de produtividade. Precisamos levar em consideração também as relações de trabalho que tem naquela área e as relações ambientais. Se repararmos direito, veremos muitos criminosos ocupando nossas terras e fazendo delas um espaço onde futuramente pode ser um deserto, não tenha condições de viver um indivíduo e muito menos de ter produção.

Foto: Marina de Fátima Vilela

Redação

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