Crime e premiação

O melhor romance escrito sobre o sentimento de culpa que persegue o criminoso é Crime e Castigo. Há excelentes versões cinematográficas do livro de Fiódor Dostoievski e a minha preferida data de1935 trazendo Peter Lorre no papel de Raskólnikov: https://www.youtube.com/watch?v=GAZSn8c_z6s .

Raskólnikov acredita ser capaz de sustentar sua tese de que alguns crimes não são repugnantes, de que há mérito em transgredir a Lei em determinadas situações, de que um grande homem pode agir com liberdade sem temor da punição ou do sentimento de culpa. Ele comete um crime e debocha das autoridades que nada podem provar contra ele. Mas pouco a pouco Raskólnikov  passa a ser assombrado pelo seu ato, perseguido pela idéia de que pode ser preso. Nem mesmo a prisão de um inocente é capaz de libertá-lo do sentimento de culpa. Sua conduta se torna errática e ao final ele acaba confessando o crime e aceitando a punição.

A profundidade da obra de Fiódor Dostoievski é evidente. Mas a mesma parece não causar qualquer impacto nas consciências dos homens superficiais encarregados de julgar crimes cometidos por brasileiros. Acima do bem e do mal e longe do alcance da Lei, os Juízes brasileiros se sentem à vontade distribuindo condenações dúbias e rigorosas contra pobres, pretos, putas e petistas. Quando são encarregados de julgar suspeitos da estirpe de um Thor Batista eles presumem a inocência apesar da culpa evidente ou simplesmente deixam o processo prescrever para a felicidade geral dos “donos da nação”.

Os romanos costumavam dizer que “Ubi non est justitia, ibi non potest esse jus”, cujo significado é “Onde não há justiça não pode haver Direito”. Eles também faziam uma clara distinção entre Civilização e barbárie, afirmando que entre os bárbaros não havia nem Direito, nem Justiça que pudessem ser considerados semelhantes às duas maiores virtudes cultuadas e distribuídas por Roma. Portanto, Civilização, Direito e Justiça distinguiram os romanos dos bárbaros. Os romanos, ao que tudo indica a literatura antiga, acreditavam nesta distinção (inclusive quando praticavam barbaridades para romanizar os outros povos).

A julgar pela qualidade da justiça distribuída no Brasil nós podemos ser comparados aos romanos. Todos são iguais perante a mesma Lei, mas os Juízes proferem decisões que distinguem entre aqueles que são supostamente civilizados (e merecem isenção total de culpa mesmo quando culpados) e aqueles que são tratados como bárbaros (e, portanto, condenados à prisão porque não conseguiram provar sua inocência).

Thor Batista não é José Dirceu. A distinção entre ambos se expressou de maneira perfeitamente na forma distinta com que ambos foram julgados pelo mesmo Poder Judiciário. Thor Batista estava ao volante do carro que colheu um ciclista em alta velocidade e foi absolvido por falta de prova, como se o cadáver pudesse ser ignorado. Luiz Fux condenou José Dirceu porque o petista não provou sua inocência, como se a acusação não tivesse a obrigação de provar de maneira inequívoca a culpa dele.

Romanos e bárbaros. É neste estágio que ainda se encontra a civilização brasileira. E por isto mesmo eu sempre me pergunto o que realmente significa a expressão “civilização brasileira”. Para o Judiciário nem todos somos brasileiros ou iguais perante a mesma Lei. Os homens encarregados de julgar os crimes cometidos parecem pressupor que uns podem ser barbarizados para que outros possam auferir os benefícios da civilização. Dirigir um carro caríssimo é indício de civilização. O cadáver clama por justiça, mas esta não pode ser feita porque o morto era apenas um bárbaro semelhante a José Dirceu? No Brasil aqueles que são encarregados de distribuir Justiça fazem distinções semelhantes às que motivaram o crime cometido por Raskólnikov e dormem o sono dos justos (com ou sem o uso de psicotrópicos importados).

Impune, o criminoso que absolveu um culpado ou que condenou sem provas um inocente, não tem consciência ou vai apaziguá-la na Igreja onde se ajoelha e brada “minha culpa, minha tão grande culpa”. Devidamente romanizado, o cristianismo fornece o bálsamo que sustenta os agentes da barbárie que nós inadvertidamente chamamos de Juízes.  

Fábio de Oliveira Ribeiro

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