Crônica inédita de Lima Barreto ilumina relações do escritor com o anarquismo e com Portugal

 

Manuscrito foi descoberto por pesquisador português no arquivo pessoal do escritor na Biblioteca Nacional

Manuscrito da crônica inédita “Portugueses na África”, de Lima Barreto – Reprodução

 

por Leonardo Cazes

O Globo

RIO – No catálogo do Arquivo Lima Barreto, sob a guarda da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), a referência ao conteúdo da pasta era “Pequeno Almanaque de Celebridades”. Ao abri-la, o português João Marques Lopes, professor de Literaturas Lusófonas na Universidade de Oslo, na Noruega, se surpreendeu ao encontrar tiras manuscritas com uma crônica desconhecida de um dos principais escritores brasileiros. Após a descoberta, Lopes vasculhou toda a bibliografia publicada do autor e confirmou que tratava-se de um texto, mais que inédito, completamente ignorado até hoje.

O manuscrito de “Portugueses na África” (leia a crônica na íntegra) não está datado. No verso da última folha está escrito “devia ser publicada na ‘A Floreal’” e, na primeira, logo acima do título, há a anotação “Echos”. O pesquisador conta que, em 1907, Lima Barreto assinou a coluna “Echos” na revista “A Floreal”. A publicação, onde foram traduzidos os primeiros textos anarquistas no Brasil, teve quatro números e deixou de circular antes que a crônica fosse publicada. Por isso, ele datou o texto dos últimos meses de 1907. O original já está exposto na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional. A transcrição, junto com um artigo de Lopes, será publicada na próxima edição dos Anais da Biblioteca Nacional.

— Foi uma agradável surpresa. Lima tinha o hábito de usar muitas vezes o papel do próprio Ministério da Guerra, onde ele trabalhava nessa altura, para escrever. Ele cortava o papel em tiras e escrevia. O material não estava catalogado, estava entre outros textos conhecidos — conta ele.

Na crônica, o escritor é irônico ao criticar as campanhas militares portuguesas na África. No segundo semestre de 1907, ainda em decorrência da divisão do continente pelas potências europeias no Tratado de Berlim em 1883, Portugal promoveu a ocupação de territórios no sul de Angola sob o domínio de populações originárias na chamada Campanha do Cuamato. A expansão rumo ao interior foi uma inflexão na colonização do país, pois os portugueses tinham se estabelecido no litoral desde o século XVI.

SEM HEROÍSMO

Na imprensa portuguesa, e também na brasileira, o avanço das tropas era noticiado com entusiasmo e triunfalismo. Lima Barreto critica a transformação das vitórias em ações supostamente heroicas: “O que há em suma? Esta coisa simples: um destacamento português, de cem ou duzentas praças, derrota uma partida de desgraça dos negros, duplamente desgraçados por serem negros e por viverem em possessões do Portugal necessitado de vitórias.”

— Lima ironiza que homens bem armados e preparados iam enfrentar indígenas que podem ter uma espingarda ou outra, mas basicamente tinham um armamento ligeiro. Não havia heroísmo nenhum nessa situação. Apesar de não dizer isso abertamente, não é nenhum disparate dizer que ele prenuncia o que seriam os movimentos independentistas algumas décadas mais tarde — defende o pesquisador.

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Um dos poucos registros fotográficos do escritor Lima Barreto – Divulgação

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Além de “Portugueses na África”, Lopes encontrou também uma crônica incompleta no Arquivo Lima Barreto. Nesse texto, intitulado “Jornais”, o escritor critica o alinhamento entre veículos da imprensa de Brasil e Portugal. E faz uma crítica aos periódicos da época pelo destaque que davam ao regicídio ocorrido em fevereiro de 1908. Em um atentado na Praça do Comércio, em Lisboa, o Rei D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Filipe de Bragança foram assassinados. O pesquisador afirma que a imprensa carioca da época era muito dependente dos capitais lusos, especialmente dos comerciantes.

— Apesar de ser apenas um trecho, com certeza essa crônica incompleta foi escrita depois de fevereiro de 1908. Parece que ele queria desenvolver nesse texto a questão do domínio do jornalismo carioca pelos interesses dos comerciantes portugueses no período. Houve grandes demonstrações de solidariedade após o regicídio, foi um assunto muito presente na imprensa.

A pesquisa de João Marques Lopes é sobre a recepção da obra de Lima Barreto em Portugal. Ele recebeu uma bolsa do Programa Nacional de Apoio a Pesquisadores Residentes (PNAP-R) da FBN, com duração de um ano. O professor afirma que, no início do século XX, era comum que escritores brasileiros buscassem reconhecimento do outro lado do Atlântico. O primeiro romance de Lima Barreto, “As recordações do escrivão Isaías Caminha”, foi publicado por uma editora lisboeta antes de sair no Brasil.

Beatriz Resende, professora titular de Poética da Faculdade de Letras da UFRJ e organizadora de “Toda crônica” de Lima Barreto (Agir) junto com Rachel Valença, não conhecia “Os portugueses na África”. Ela acredita que o maior valor da obra recém-descoberta é apontar para as ligações entre o escritor e grupos de esquerda no período.

— O mais interessante em torno do texto é levantarmos a rede de companheirismo que existia em torno de Lima Barreto formada por anarquistas e futuros comunistas. É isso que o liga a Portugal — afirma a professora.

 

PROGRAMA DA FBN APOIA PESQUISAS

A descoberta da crônica inédita de Lima Barreto foi fruto de um programa lançado sem alarde em 2013, quando Renato Lessa assumiu a presidência da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Inspirado numa iniciativa da Biblioteca Pública de Nova York, o Programa Nacional de Apoio a Pesquisadores Residentes (PNAP-R) incentiva projetos baseados no acervo da instituição. A biografia “Eu sou trezentos: Mário de Andrade vida e obra” (Edições de Janeiro/FBN), de Eduardo Jardim, foi um dos frutos do programa.

Para 2016, serão distribuídas até 16 bolsas para brasileiros e duas para estrangeiros. O alvo são pesquisadores já estabelecidos em seus campos de atuação. Lessa destaca que o PNAP-R permite um olhar renovado:

— Ao trazer a pesquisa para dentro da biblioteca foi possível descobrir algo que estava nas coleções, mas não se sabia. Você só consegue isso se abrir o acervo para pesquisa sistemática.

 

 

Redação

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