De Mário de Andrade para Manuelucho

As cartas de Mário de Andrade escritas para Manuel Bandeira são de amor. Do amor entre eles e pela língua portuguesa

 

por Adriana Calcanhoto

O Globo

Mário de Andrade foi poeta, crítico, romancista, musicólogo, ensaísta, professor de música e exímio redator de cartas. Ficou, é claro, menos conhecido pelas cartas do que pelos livros, pela pesquisa folclórica, por seus outros interesses, que eram muitos, todos unidos pela ideia de modernidade e de identidade da arte brasileira. As cartas eram privadas. Mário de Andrade foi um dos criadores da Semana de Arte Moderna de 1922 que aconteceu em São Paulo e que ambicionava uma arte sem europeísmos. Mário era um dos cabeças do grupo, que contava com o também poeta Oswald de Andrade, com as pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, com Menotti del Picchia e vários outros que, impulsionados pelas ideias modernas, chocaram e revolucionaram a arte então produzida no Brasil. Os seus trabalhos eram originais e estranhos ao que se fazia na época, em um Brasil excessivamente influenciado pelas artes francesas. As ideias do grupo queriam explodir com essas influências.

Menos exuberante no comportamento do que o amigo provocador Oswald, Mário foi sempre mais discreto. Sua vida afetiva ou sexual manteve-se misteriosa, assim como as cartas. Ele pediu que sua correspondência não fosse publicada antes de completados 50 anos de sua morte.

Correspondeu-se com Tarsila do Amaral, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Moreyra, Jorge Amado, Lasar Segall, diversos poetas e escritores, mas especialmente com Manuel Bandeira. Especialmente, porque com Bandeira, como o próprio declara no prefácio do volume das cartas que selecionou, Mário abria-se em relação à sua obra, falava de suas dúvidas, comentava os trabalhos alheios. Era impaciente com certos assuntos. Gostava de contrariar. Eles discutiam. Ele trabalhava nas cartas. É um tipo de entrega que faz muito pela compreensão da sua obra como um todo. O todo de um homem tão múltiplo é hercúleo, e ele era um erudito pensante. Nas cartas trocadas com Bandeira, a quem ele chama de Manú, existe uma peça importante no quebra-cabeças da sua diversidade e multifacetação.

No prefácio de “Cartas a Manuel Bandeira”, há um Manuel dividido entre a traição ao amigo e a convicção da importância do conteúdo das cartas. Ele chama a obra de Mário “imperecível”, para justificar o ato traidor. Fala sobre os pontos em que discordavam no delicado e polêmico assunto do abrasileiramento da escritura literária, apreciado e utilizado pelos dois, mas criticado por Bandeira na sistematização, que resultava para ele em “construção cerebrina, que não era língua de ninguém”, artificial e repugnante.

Na correspondência são muitas as pérolas como: “Quis exprimir nessa poesia este mal-estar de pátria tão despatriada em que a gente inda não se sente harmonicamente” ou “É preciso dar coragem a essa gentinha que ainda não tem coragem de escrever brasileiro. Dante não surgiu sozinho”.

Uma das mais importantes obras da literatura brasileira, escrita por Mário de Andrade, é “Macunaíma”, que ele lança como “rapsódia”, não como romance. Rapsódia, um texto ligado à oralidade, não à lírica. Esse é o lance de Mário. Quem vem antes? O Macunaíma é “o herói sem caráter”. É o Brasil profundo, o Brasil primordial aquele o que Mário quer escrever.

Nas cartas, longas, Mário de Andrade chama Manuel Bandeira de “Manuel Bandeira”, “meu caro Manuel”, “Manuel”, “Meu querido Manuel”, “Manú”, “Manuelucho dear”, “Manuel do coração”, e isso explica muito da trajetória epistolar do modernista ranzinza com o Manuelucho. Bandeira em geral releva as irritações do outro, considera-as circunstanciais e passageiras. E acerta quando trai e publica as cartas. As cartas de Mário de Andrade escritas para Manú são como uma visita aos bastidores da invenção da obra de Mário. E são cartas de amor também. Do amor dos dois, entre eles, e pela língua portuguesa, pela mátria, pela pátria, pela causa da invenção da língua do Brasil.

“Tenho aqui uma porrada de cartas para responder … Começo pela tua.”

“Enfim vou matutar.”

“Emprego a palavra com a sutileza dos poetas japoneses nos seus haicais.”

“Seus artigos gostadíssimos.”

“Sou o maior chicanista da literatura brasileira.”

“Recebi seu livro hoje e foi um alegrão.”

“Não corrijo, se arranje.”

 

Jornal “O Globo” – 31/05/2015

Foto: Organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922: René Thiollier, Manuel Bandeira, Manoel Villaboin, Francesco Petinatti, Paulo Prado, Afonso Schmidt, Mário de Andrade, Cândido Mota Filho, Graça Aranha, Goffredo da Silva Telles, Couto de Barros, Borba de Morais, Luís Aranha, Tácito de Almeida e Oswald de Andrade

Redação

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