Democracia e reconstrução do espaço público, por William Nozaki
O golpe de 1964 consolidou um modelo de modernização econômica no Brasil lastreado no autoritarismo político, no conservadorismo social e na cultura da intolerância. Passado mais de meio século do início da ditadura militar-empresarial aqueles que ainda insistem em defender o regime ancoram seus argumentos centrais na ideia de que o crescimento econômico, assim como a consolidação da industrialização, da urbanização e da composição da infraestrutura do país foram realizações magistrais dos generais nos trópicos, que, supostamente, teriam levado adiante um alentado projeto de nação.
Com isso cometem uma sucessão de falácias: de forma simplista resumem a ideia de desenvolvimento ao mero crescimento econômico negligenciando a concentração de renda que ocorreu no período; de modo distorcido saúdam a estruturação de um Estado forte obscurecendo a profusão de casos de negociatas corruptas e de negociações em benefício do capital internacional surgidas naquele intervalo no seio das estruturas estatais; com um olhar parcial ovacionam o dinamismo do mercado interno ofuscando o modo como se perpetuava a composição de uma burguesia nacional dependente e de uma classe trabalhadora destituída de direitos.
A despeito das posições – adesistas ou críticas – há que se diferenciar os acontecimentos que foram realmente feitos da ditadura militar daqueles que dizem respeito mais ao avanço do processo de acumulação de capital e que, por conta da dinâmica capitalista, teriam ocorrido com ou sem o regime autoritário (ainda que, evidentemente, tal regime tenha impresso sua marca regressista a esse trajeto).
Considerando o perfil de nosso padrão de desenvolvimento, a consolidação do capitalismo no Brasil mais cedo ou mais tarde inauguraria um novo grupo de pequenos e médios empresários conservadores, uma classe média de colarinhos-brancos com sede de distinção, um contingente de burocratas e tecnocratas treinados mais nos nexos da especialização do que do republicanismo; assim como, inevitavelmente, em algum momento surgiriam entre nós organizações privadas e instituições públicas marcadas pelos interesses e valores do liberalismo, do corporativismo, do individualismo, da competição e da meritocracia; assim como, fatalmente, se criaria uma associação intestina entre o universo dos negócios e o mundo do Estado. Aceitemos ou não esses elementos dizem respeito à própria natureza do processo de avanço capitalista, e, reitero, ainda que tenham a cunha das particularidades nacionais e a identidade militar não se tratam de processos cuja responsabilidade seja exclusivamente da ditadura, o que, a propósito, já foi apontado por autores como Fernando Novais e João Manuel Cardoso de Mello.
Esquadrinhando o cenário nesses termos, o que chama a atenção é justamente aquele espinho danoso que de alguma forma pode ser tratado como responsabilidade exclusiva dos militares: o fechamento e o esvaziamento do espaço público, interrompendo um processo de estruturação iniciado no período Vargas e aprofundado no intermezzo da república democrática golpeada, justamente, pelos militares. Nesse sentido, destaco pelo menos três entulhos e estorvos que nos foram legados desse período e que ainda hoje perturbam o avanço da construção democrática:
(i) Uma cultura política que transformou a reunião no espaço público em uma ameaça e converteu o encontro de pessoas na rua em algo a ser reprimido e dispersado; ora, uma sociedade sem liberdades fundamentais também não é capaz de cultivar os valores da igualdade.
(ii) Uma polícia militar treinada para substituir o diálogo pelo enfrentamento, para tratar cidadãos como inimigos do Estado e para criminalizar e oprimir com violência movimentos sociais, grupos vulneráveis e toda forma de associativismo e coletivismo que se expressam nos espaços públicos das nossas cidades; ora, uma sociedade que proíbe a permanência nas ruas não propicia um espaço de encontro e diálogo entre os diferentes, algo fundamental para a construção de uma cultura de tolerância.
(iii) Os marcos do direito administrativo que limitam os usos do espaço público e confundem-no com espaço estritamente estatal, muitas vezes criando obstáculos para o surgimento de linguagens diferentes e iniciativas inovadoras de ocupação das cidades, tanto por parte da sociedade civil quanto por parte do próprio poder público; ora uma sociedade que não estimula sua própria inventividade nos usos e abusos do espaço público está fadada a conviver com o cinza, o vazio e o silêncio.
Felizmente essa herança malfadada tem sido enfrentada por um novo clima de reconstrução e de ressignificação dos espaços públicos das grandes cidades brasileiras, com iniciativas culturais e políticas das mais variadas orientações e naturezas. A luta pela ocupação do espaço público no Brasil é também uma luta contra os resquícios do autoritarismo e do conservadorismo e em favor da democracia e da cidadania.
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ótimo artigo, especialmente
ótimo artigo, especialmente os tres entulhos autoritários
remanescentes da ditadura que ainda pertuirbam o nosso crescimento..
desfecho esperanços de nova reconstrução…
valeu!
Sessenta e quatro
“Sessenta e quatro” cobra expressão por extenso: seus anos, seculares, recomendam adiar sua escritura pelo natural método do ajuntamento de algarismos.
Aos fantasmas lhes custa partir.
O artigo do Nozaki é ótimo. Os sinais de progressos foram muito bem captados. E os de impedimentos tanto quanto.