Dimensões e fragmentações dos direitos: um problema político, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Dimensões e fragmentações dos direitos: um problema político

por Eliseu Raphael Venturi

As dimensões de direitos humanos são cumulativas, o que faz com que, historicamente, novos significados recíprocos sejam conjuntivamente considerados de modo indivisível com a afirmação de novos direitos.

Em verdade, importa menos uma tipologia taxativa de dimensões – embora haja um maior consenso acerca da substância das três primeiras – e mais o afastamento da noção de “gerações”, principalmente no que esta possa significar em termos de superação ou exaurimento de uma geração para se chegar a outra.

Mais importante, ainda, do que mesmo nominar “dimensões” ou “gerações”, é uma compreensão em que se conservem e se somem sentidos, sensibilidades e racionalidade jurídicos, chegando-se a uma complexidade no mínimo condizente com a do mundo, regido por alta velocidade.

Com isso, cada inovação no contexto destes direitos afeta a interpretação dos demais, tal como se houvesse o movimento de um bloco histórico de sentidos cuja dinâmica interna é de constante ressignificação; o presente redimensiona o passado e, inclusive, informa os limites das críticas e dos potenciais pretéritos.

Por exemplo, os Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos (2005), que prescrevem os deveres de proteção de direitos pelo Estado e a responsabilidade corporativa em não violar e em promover direitos; os Princípios de Yogyakarta (2006), que dispõem sobre a aplicação de direitos humanos à orientação sexual e identidade de gênero; a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005), ao abordar questões éticas do avanço tecnológico; certamente, todos influenciam integralmente os direitos que os precederam.

Tais direitos anteriores, portanto, passam a ser reapreciados, com ainda mais propriedade, no cerne da atividade empresarial, ante as questões de gênero e segundo a reflexão da bioética cotidiana e interventiva.

Decisões políticas ou privadas, assim, passam, além de um referencial ético, a ter um horizonte de verificação expandido, aumentando-se o escopo de recomendações, precauções, prevenções, prudência, de modo que efeitos precisam ser estimados segundo múltiplas variáveis.

Atualmente, os direitos tecnológicos, por força da chamada Quarta Revolução Industrial, parecem propiciar a maior fertilidade de debate em termos de inovação, novos dilemas e questões ético-jurídicas (para o mundo do trabalho e também da experimentação biotecnológica) para se pensar o presente e o futuro, na mesma esteira de preocupações com os direitos do meio ambiente e animais, assim como direitos à paz, ao pluralismo, à democracia, à cidadania.

Contudo, direitos já tidos por bem antigos e modernos, sem entrar em maiores classificações, tais como os ditos de primeira (da liberdade: direitos civis e políticos), segunda (da igualdade: sociais, econômicos e culturais) e terceira (da solidariedade: meio ambiente, consumo, patrimônio comum, informação e comunicação) dimensões, parecem ser ainda muito desafiados em seus rudimentos, sobretudo no seu trato na vida política.

A influência das dimensões de direitos (sejam tomados como humanos, seja como fundamentais) na conformação do Estado e do mercado é frontal. Embora se dê, inicialmente, no plano deontológico – o qual, por sua vez, é cada vez mais ignorado e desprezado por diversos agentes sociais, noção sem a qual, contudo, parece quase inviável de se pensar juridicamente – a existência destes direitos influencia diretamente a fixação de agendas, obrigações, deveres e compromissos, assim como redimensiona abstenções, deveres negativos e respeito.

Em um mundo desencantado, burocratizado e com o trabalho em divisão social, os direitos informam sentidos e valores a orientar a racionalidade em sentido cívico e público, permitindo, inclusive, a coexistência com alguns dogmas direcionados ao plano privado (incluindo crenças religiosas).

Em cenários ditos de crise institucional, do direito, da política, da economia, afiguram-se fragmentações dos direitos, verdadeiras rupturas entre si, não em sua dimensão deôntica (eis que continuam íntegros e vigentes), mas evidentes na expressão das ações sociais profundamente naturalizadas e não problematizadas.

Isto faz com que se identifiquem (e, mais: se reduzam), em senso comum, determinados direitos com determinadas posições do espectro político – algo muito forte no modo de operar polarizado –, abrindo-se oposições em cenários, antes, multidimensionais. Inclusive, aqueles direitos que poderiam abrir resistência às violações pós-neoliberais de globalização avançada.

No mesmo sentido, nutrem-se, no posicionamento destes espectros, diferentes expectativas ante o Estado e o direcionamento tanto de sua violência legítima quanto, igualmente, seu potencial normativo e econômico.

Com isso, o que, antes, era direito em integridade, passa a ser declaradamente direito fragmentado contra o direito, e sua repetição, somada à ação institucional, às corroborações da opinião pública, da sociedade civil e da grande mídia, à diluição de qualquer crítica e autocrítica em corporativismos, leva a um problema político de base.

Nesse sentido, emergem visões retrógradas e fragmentadas do Estado meramente policial, cujas obrigações policialescas-punitivistas são exaltadas, concomitantemente à destruição de quaisquer feições de liberdades positivas (regidas pelo princípio da igualdade material que caracteriza a segunda dimensão de direitos) e, ainda, mal se considera a figura sequer coligada às noções de direitos econômicos, sociais e culturais.

Anacronismos, portanto, se tornam um risco e uma advertência permanentes, inclusive nos procedimentos mais racionalizados. Uma visão liberal não subsiste sem um contraponto social, assim como não se pode prescindir de critérios de solidariedade e de vocação democrática para contemporizar interesses diversos.

O problema das visões de direitos sem integridade e fragmentadas e os subsequentes papeis do Estado distorcidos ou reduzidos em cada visão parcial é justamente o da promoção, como efeito imediato, de inúmeros retrocessos em agendas já avançadas quando da adoção de pressupostos mais condizentes com o direito.

Assiste-se, hoje, a uma perfeita e explosiva orquestração nesse sentido reducionista e que insiste desesperadamente em retrogradar, ademais, não sendo fruto apenas de um imperativo econômico, como também de uma intencional violação jurídica.

Situação deplorável em que populações vulneráveis ou vulneradas restam por dizimadas em sua potencialidade jurídica e mesmo em suas vidas concretas, e em que massas e contingentes, incluindo as pessoas com alguma prosperidade econômica ou de formação educacional, são igualmente violadas em direitos dantes alcançados, com a perda de horizontes de ampliação de esferas jurídicas de todos. Nem emancipação, nem libertação, nem tampouco juridicidade, o que resta são apenas estéreis políticas de morte.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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