Dívida ampliada passa a representar 76% da renda disponível das famílias, por Lauro Veiga Filho

O comprometimento da renda mensal pelo pagamento de juros e correção sobre a dívida contraída pelas famílias avançou de 26,6% em janeiro de 2018 para 34,0% em março deste ano.

Agência Brasil

Dívida ampliada passa a representar 76% da renda disponível das famílias

por Lauro Veiga Filho

O aumento recente na dívida das famílias, contratada num período de juros em baixa histórica, tende a se tornar um fardo mais pesado como reflexo direto da retomada do processo de elevação dos juros básicos, levando a eventual redução dos níveis de gastos e do consumo diante de um estrangulamento maior dos orçamentos familiares imposto pela situação atual de endividamento, alta da inflação, desemprego e perda de rendimentos para os trabalhadores. Neste momento, “não é possível antecipar exatamente qual será o impacto do recém-iniciado ciclo de elevação da taxa Selic (os juros básicos na economia) sobre as decisões de consumo das famílias brasileiras, mas dada a situação patrimonial atual dessas, caracterizada pelo endividamento elevado para os padrões históricos, é de se esperar que a opção por reduzir o nível de gastos e de dívidas torne-se mais comum”, observa o economista Ailton Braga, atual consultor legislativo do Senado, em artigo publicado no Blog do Ibre (o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas).

Mestre em economia pela Universidade de Brasília (UnB) e analista do Banco Central (BC) entre 1998 e 2005, Braga trabalha com dados do BC relacionados às operações de crédito contratadas pelas famílias no mercado financeiro, envolvendo o financiamento de imóveis, compras financiadas de bens de consumo, empréstimos pessoais, crédito consignado, cheque especial e dívidas assumidas por meio do cartão de crédito. O economista destaca que o “longo ciclo de redução da taxa Selic”, que cortou os juros básicos de 14,25% em setembro de 2016 para 2,0% ao ano, taxa que vigorou até fevereiro deste ano, veio acompanhado igualmente de uma diminuição significativa das taxas de juros médias nas operações de crédito ao consumidor.

Neste caso, os juros cobrados por bancos e financeiras passaram de 42,0% ao ano para algo próximo a 23,0%. Esse movimento foi seguido de um avanço do endividamento das famílias de 25,0% para 30,0% do Produto Interno Bruto (PIB). Essa evolução foi mais expressiva quando comparada à renda anual das famílias, com o endividamento saindo de 44,3% em abril de 2017 para 58,0% em março deste ano, destaca Braga. O comprometimento da renda mensal pelo pagamento de juros e correção sobre a dívida contraída pelas famílias avançou de 26,6% em janeiro de 2018 para 34,0% em março deste ano.

Conforme o economista, o aumento do endividamento ocorreu em maior escala do que o incremento registrado para o comprometimento da renda com o serviço da dívida familiar exatamente em função da redução dos juros no crédito para pessoas físicas e também porque registrou-se um alongamento nos prazos de pagamento dos empréstimos, “principalmente por causa do crescimento do crédito imobiliário”. Essa expansão, no entanto, “tem limites, que dependem, principalmente, do nível de comprometimento da renda mensal com o pagamento de dívidas. O comprometimento atual, de aproximadamente, 30% da renda, máxima histórica, pode estar próximo deste limite”, adverte.

A alta recente nos juros básicos, que já avançaram de 2,0% para 4,2% desde fevereiro e tendem a atingir qualquer coisa entre 6,5% e 7,5% ao ano até o fim de 2021, segundo espera o mercado, certamente “irá resultar em aumento das taxas de juros ao consumidor, em momento de elevado endividamento das famílias”, antecipa Braga, embora continuem sendo taxas historicamente muito baixas para os padrões brasileiros.

Endividamento ampliado

Os dados do BC mostram que o cenário de restrições à frente, gerado pela elevação do custo do crédito na esteira da alta dos juros básicos, pode trazer danos mais severos ainda sobre o orçamento das famílias e, portanto, sobre sua propensão para consumir. Quando se analisa o comportamento do crédito ampliado contratado pelas famílias em contraposição ao desempenho da massa salarial ampliada disponível, no conceito desenvolvido pelo BC, o endividamento avançou ainda mais pesadamente do que aquele considerado a partir de dados do sistema financeiro nacional.

Nesta série estatística, o BC não divulga o tamanho do serviço gerado pelo chamado crédito ampliado, mas os dados permitem estimar a evolução do endividamento. Em setembro de 2016, o crédito ampliado concedido às famílias chegou a R$ 1,713 trilhão, correspondendo a 27,7% do PIB estimado pelo BC para o período de 12 meses encerrado naquele mês. Essa dívida mais ampla, por sua vez, representava 60,15% da massa salarial ampliada disponível. Nessa categoria, o BC inclui os rendimentos do trabalho, aposentadorias e pensões, benefícios de prestação continuada, Bolsa Família e a renda mensal vitalícia, descontando o Imposto de Renda retido na fonte para pessoas físicas e as contribuições à Previdência. A massa de rendimentos na época havia alcançado praticamente R$ 2,849 trilhões também no acumulado em 12 meses.

Entre setembro de 2016 e março de 2021, sempre em valores acumulados nos 12 meses encerrados no mês considerado, a dívida saltou 46,62% em termos nominais, chegando a R$ 2,512 trilhões, algo como 32,83% do PIB. Mas a massa de renda ampliada registrou variação de apenas 15,1% no mesmo intervalo, passando a somar R$ 3,279 trilhões. Essa discrepância elevou a taxa de endividamento para 76,6%. Nitidamente, sob esse critério de avaliação, o encarecimento do crédito causará estragos bem mais amplos, impondo restrições maiores à propensão e à capacidade das famílias de consumir e ainda de contratar novos créditos. Há o risco ainda de essa evolução começar a gerar impactos inclusive sobre a capacidade das famílias de honrar as dívidas já contraídas. A conferir mais adiante.

Eficácia da política monetária

No País, retoma Braga, as grandes diferenças entre os juros cobrados pelos bancos dos tomadores de crédito e as taxas suportadas pelo setor financeiro ao captar recursos no mercado sempre geraram desconfianças em relação ao “impacto da política monetária, mais especificamente da taxa de juros Selic, controlada pelo BC, sobre as taxas de juros pagas por famílias e empresas e, consequentemente, sobre o mercado de crédito e a demanda agregada”. No entanto, como destaca o economista, “a evolução recente (últimos cinco anos) do mercado de crédito ao consumidor mostra que a política monetária tem impacto relevante sobre esse mercado”.

Mais claramente, a política de juros tem se mostrado eficaz para tornar o crédito mais caro tanto para empresas quanto para as famílias e, como consequência, gera impactos concretos sobre o lado real da economia, atingindo investimentos e o consumo, vale dizer, com efeitos de fato sobre a chamada demanda agregada. Neste momento, a alta dos juros básicos atinge a economia praticamente no fundo do poço, com nítidas dificuldades para retomar o caminho do crescimento após anos de baixa influenciada pela recessão de 2015/16, seguida de uma fase de estagnação nos anos seguintes, até ser atingida pela pandemia do coronavírus.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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