Do Estado de Fazenda ao antidemocrático paradisíaco, por Caio Henrique Lopes Ramiro e Felipe Alves da Silva

Do Estado de Fazenda ao antidemocrático paradisíaco

por Caio Henrique Lopes Ramiro[1] e Felipe Alves da Silva[2]

Inicialmente, importa considerar que existe uma já ampla tradição de pesquisa, com fecunda produção de literatura, a destacar a marca autoritária do Estado brasileiro e, em alguns casos, da própria sociedade, como no seminal livro de Marilena Chauí, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. Não obstante, um tema bastante relevante para uma reflexão acerca da estrutura institucional do país, bem como de sua sociabilidade é o do estado de exceção. No que diz respeito a essa perspectiva, de algum tempo se estabeleceu um debate envolvendo filósofos, cientistas políticos e juristas acerca do estatuto teórico da exceção, contudo, apesar de ser possível reconhecer o interesse e a importância do pensamento do jusfilósofo alemão Carl Schmitt acerca do tema, os juristas se furtaram ao debate durante muito tempo, tendo em vista a ausência de juridicidade da matéria, o que levou o filósofo italiano Giorgio Agamben, em epígrafe do seu livro Estado de Exceção, a de maneira erudita reformular os termos do veto de silêncio lançado por Alberico Gentili aos teólogos, a fim de construir uma provocação aos agentes do direito para se pronunciarem sobre um problema que é marcadamente seu.

Um ponto interessante para notar o silêncio dos juristas acerca do estado de exceção, em específico no Brasil, revela-se pela contribuição da literatura e outros escritos de Lima Barreto. Reconhecido por Lilia Moritz Schwarz como termômetro nervoso de uma frágil República, tendo em vista que estava inserido no contexto da 1º República (1889-1930), seus textos constroem uma “literatura por oposição”, em que os personagens denunciam desigualdades, injustiças sociais, os protecionismos de toda ordem e o bacharelismo como a “mania nacional de se fazer passar por doutor”. Nesse sentido, no seu Os Bruzundangas, obra publicada em 1922, ao descrever a cena política da República dos Estados Unidos dos Bruzundangas, que ao que parece pode ser compreendida como a imagem geminada da República dos Estados Unidos do Brasil (1891), afirma que “os seus políticos são o pessoal mais medíocre que há. Apegam-se a velharias, a coisas estranhas à terra que dirigem, para achar solução às dificuldades do governo. A primeira coisa que um político de lá pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é de carne e sangue diferente do resto da população […]. Dessa maneira, […] eles, por meio de capciosas publicações, mentirosas e falsas, atraem para a nação uma multidão de necessitados cuja desilusão, após certo tempo de estadia, mais concorre para o mal-estar do país”.

Em A política republicana, escreve Lima Barreto, “a República no Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a ‘verba secreta’, os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência. A vida, infelizmente, deve ser uma luta; e quem não sabe lutar, não é homem. A gente do Brasil, entretanto, pensa que a existência nossa deve ser a submissão aos Acácios e Pachecos, para obter ajudas de custo e sinecuras. Vem disto a nossa esterilidade mental, a nossa falta de originalidade intelectual, a pobreza da nossa paisagem moral e a desgraça que se nota no geral da nossa população. Ninguém quer discutir; ninguém quer agitar idéias; ninguém quer dar a emoção íntima que tem da vida e das coisas. Todos querem ‘comer’. ‘Comem’ os juristas, ‘comem’ os filósofos, ‘comem’ os médicos, ‘comem’ os advogados, ‘comem’ os poetas, ‘comem’ os romancistas, ‘comem’ os engenheiros, ‘comem’ os jornalistas: o Brasil é uma vasta ‘comilança’”.

O diagnóstico crítico de Lima Barreto se apresenta fecundo na justa medida em que fornece elementos que nos permitem pensar algumas questões do Brasil contemporâneo, em especial o aspecto republicano. O literato carioca está, conforme mencionado, em contexto de transição, como testemunha do fim da escravidão (1888) e do aparecimento de um discurso político de linhagem republicana repleto de promessas ligadas ao ideário das revoluções liberais do século XVIII. No entanto, a realidade se mostrou bem diferente da discursividade liberal-democrática, uma vez que a concepção mesma de uma liberdade universalizada era algo estranho ao último território de escravidão das Américas, desse modo, a sociabilidade brasileira estava marcada pelas relações de autoridade de aristocracias rurais e os privilégios de pertencimento daí advindos, dessa forma, estabeleceram-se relações a partir do favor, ou, mesmo, da clientela; surgindo, por fim, conforme nos indica Victor Nunes Leal, no importante Coronelismo, enxada e voto, a figura do coronel, que parece ser a imagem representativa do tal “cidadão de bem”, significa dizer que seu ancestral remoto se encontra nos “homens de bens” e, não obstante, verifica-se uma fratura nas origens da ideia de cidadania brasileira. Nessa linha, as lutas políticas e as questões sociais surgidas com o fim da escravidão no início do Brasil republicano serão resolvidas pela via da violência, com o recurso sucessivo de utilização do estado de sítio ─ defendido no Parlamento nacional por congressistas como Francisco Campos, quando de sua deputação por Minas Gerais ─, que em linhas gerais pode ser considerado como uma imagem específica do estado de exceção. Logo, os expedientes autoritários se fizeram regra.

No ano de 1904, Lima Barreto escreve interessante anotação em seu Diário íntimo. Após destacar que o caderno de anotações esteve escondido por trinta dias e, além disso, que não teria sido ameaçado ressalta “temo sobremodo os governos do Brasil”. Ainda, destaca Lima Barreto: “trinta dias depois o sítio é a mesma coisa. Tôda a violência do govêrno se demonstra na ilha das Cobras. Inocentes vagabundos são aí recolhidos, surrados e mandados para o Acre. Um progresso! Até [há pouco tempo] se fazia isso sem ser preciso estado de sítio; o Brasil já estava habituado a essa história. Durante 400 anos não se fez outra coisa pelo Brasil, creio [mesmo] que se modificará o nome: estado de sítio passará a ser Estado de Fazenda. De sítio para fazenda, há sempre um aumento, pelo menos no número de escravos”. Ora, ao que parece estamos diante de uma denúncia do autoritarismo do Estado brasileiro e seu aparelhamento por uma minoria e, não obstante, seu modus operandi é o recurso aos dispositivos de exceção, dessa forma, Lima Barreto permite verificar que ao menor sinal de perigo ou ameaça a estrutura societal hierárquica garantidora da desigualdade, o estado de exceção se faz a regra no Brasil.

A partir de tais coordenadas, é possível examinar, mesmo que de maneira sumária, alguns fenômenos, discursos e atores políticos que ressurgiram na conjuntura brasileira. Forças políticas que, ao que parece, retiraram-se para as sombras com o fim da ditadura civil-empresarial-militar (1985/1988), ou seja, não houve uma derrota, mas, sim, um recuo estratégico, a fim de aguardar o melhor momento para se reapresentar no palco político nacional. Importa considerar que essas forças sempre estiveram por aí, nas sombras, aguardando, tramando, sussurrando mantras a fim de novamente levantar bandeiras já agitadas no passado. Dessa maneira, mostra-se importante não perder de vista a marca autoritária, bem como a presença de uma mentalidade conservadora em parcela da sociedade brasileira, em especial naquela em que as linhagens se encontram nos privilégios e que, no ano de 2016, a Organização das Nações Unidas classificou como os “super-ricos” a representar “expressivos” 0,05% da população nacional[3].

Nesse horizonte de perspectiva, parece incorreto caracterizar o ressurgimento de certo discurso autoritário como um movimento de estúpidos, uma seita terraplanista sem agenda. Não se pode ignorar que há um programa, um projeto maior, precisamente um movimento que se reivindica em certa medida herdeiro de um ideal contrarrevolucionário – sem que se tenha uma revolução no horizonte político do Brasil –, de destruição. A agenda foi clara desde o início: desconstrução do estabelecido, por isso revolucionário em vertente conservadora. Um exemplo de tal perspectiva pode ser recolhido em um dos últimos atos do ex-ministro da educação, precisamente, o de revogar uma portaria, acabando com o incentivo a políticas afirmativas na pós-graduação. O discurso conservador-autoritário nunca escondeu o projeto maior de desconstruir o mínimo de efetivação de direitos e garantias fundamentais que se buscava com a socialdemocracia e sua agenda liberal (no sentido honesto do termo). O autoritarismo, por sua vez, adota como princípio de ação uma aliança com o projeto neoliberal de destruição total do pouco de Estado social que se pretendia ter no país, assim, uma democracia geograficamente delimitada, cuja fragilidade só é reconhecida quando a usurpação de direitos chega ao centro. Usar como grito de ordem o retorno a esse pouco é ignorar o fato de que a periferia nunca teve acesso ao regime democrático.

O Brasil hoje experimenta um momento histórico em que a condução da vida pública desconhece a necessária submissão ao direito e nem atenta aos diversos sinais da população, e isto, embora não declarado, conforme nos diz Roberto Bueno em seu Escritos desde a resistência democrática ao golpe de estado de 2016, apenas pode ser classificado politicamente como estado de exceção. Não é novidade que o neoliberalismo atinge o ápice de seu desdobramento nas mais diversas formas de manifestação de crises, de que necessita de mecanismos de exceção para se manter, ainda que em detrimento da restrição de direitos e garantias públicas ou de direitos sociais, incluindo liberdades individuais, desse modo, o que deve ser preservado é o sistema econômico, ou seja, pode-se mesmo falar em estado de exceção econômico. Não é demais recordar, a imagem clássica da exceção é a ditadura. Portanto, a hipótese do estado de exceção econômico se confirma ao considerarmos o pronunciamento de uma figura importante do neoliberalismo como Friedrich Hayek, que em 1981 declarou a um jornal chileno seu apoio ao ditador Augusto Pinochet, pois sua preferência pende a uma “ditadura liberal” em detrimento de um “governo democrático em que não haja nenhum liberalismo”.

Diante de tal afirmação, nota-se que o autoritarismo, o fascismo e neoliberalismo não são excludentes. De acordo com Paulo Arantes em O novo tempo do mundo, a derrota militar do fascismo no contexto mundial não cancelou o estado de emergência de salvaguarda do capitalismo, cuja trajetória ascendente passou por novas calibragens e formas de adequação dentro do próprio regime democrático. Com um estado de exceção econômico permanente, convívio rotineiro com o impacto do decisionismo de emergência na subordinação do Estado ao mercado, tem-se a adaptação do sistema jurídico e político às necessidades do capital financeiro, exigindo cada vez mais flexibilidade para reduzir as possibilidades de interferência da soberania popular.

Portanto, ao encontrar um cenário como o brasileiro, o discurso neoliberal localizou o paraíso, tendo em vista todo o peso conceitual em sentido teológico-político dessa expressão, ou seja, o jardim perfeito (Éden) é o mito de fundação do Brasil, o que se projeta na ideia de uma “civilização” escolhida e salvaguardada por Deus, a fim de garantir a estrutura hierárquica de uma sociedade brutalmente desigual, assim, forja-se uma sociabilidade autoritária e, ao mesmo tempo, fraturada em suas origens, agora com o retorno da compreensão de um Estado guarda noturno, que afiança os privilégios das castas aristocráticas que discursam contra os direitos presentes na Constituição Federal de 1988, com o argumento neoliberal de que justamente os direitos, em especial os sociais e culturais, são privilégios e devem ser abolidos e, caso pretenda-se protestar, revoltar-se, rapidamente surgem as ameaças de fechamento de instituições, utilização do estado de sítio, recuperação de famigerados dispositivos ditatoriais como o Ato Institucional nº 5, o que significa a prece pelo enviado do céu, ou seja, há um discurso teocrático feito pela pequena parcela dos verdadeiramente privilegiados pela vinda de um salvador, a combater o Anticristo encarnado pelas classes populares e os movimentos sociais que reivindicam na esfera pública melhores condições de vida pela via do reconhecimento de direitos, sendo esses últimos facilmente compreendidos como os inimigos da nação, pois, conforme já nos deu notícia Washington Luís acerca do imaginário da casa grande, a questão social no Brasil é um caso de polícia.

[1] Professor no curso de Direito do Centro Universitário Central Paulista (UNICEP).

[2] Mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), bolsista CNPq.

[3] No ano de 2016 esse número representava algo em torno de 71 mil pessoas, que se beneficiam de isenções de impostos sobre lucros e dividendos, uma de suas principais fontes de renda. Ver: https://nacoesunidas.org/brasil-e-paraiso-tributario-para-super-ricos-diz-estudo-de-centro-da-onu/. No último censo (2020) a população brasiliera foi estimada em mais de 211 milhões de habitantes. Ver: https://censo2020.ibge.gov.br/

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