Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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DOMINÓ DE BOTEQUIM – GGN – EPISÓDIO 6

– Puta dor, cara! Nem sei o que dizer quando o Buqué chegar. Todos preocupados em acertar a vida do Serafim, reabrir o boteco, esparramar as pedras nas mesinhas de metal Antarctica para o dominó, e vem a notícia da demissão dele para embebedar nossa alma.

Começo a cantarolar um samba de Paulinho da Viola. Lembro um verso: “Se lágrima fosse de pedra, eu choraria”.

Osorinho me olha triste e negaceia a cabeça, preocupado. Deixara a mulher na missa. Era o tempo que tinha.

– Ele não vem.

Combináramos encontro numa padaria do Largo São José do Belém. Saber o que havia acontecido com o corretíssimo César Rodendro Albuquerque, todos os últimos domingos do mês presente no boteco para pagar parcela de dívida com o Serafa.

Buqué morava na Conselheiro Cotegipe, paralela à Celso Garcia, num predinho de 4 andares, com a mulher e dois gatos. Alugara o apartamento para poder ir a pé ao trabalho.

Logo ele chegou. A expressão “nunca o vi mais magro” se fez concreta no paletó que não largava mesmo nos domingos de dominó.

Quem começaria o papo? Osório, eu? Por onde? A merda veio de mim ao repetir desajeito em velórios.

– E aí, Buqué, tudo bem?

– Não muito. Vocês já devem saber que eu fui despedido na semana passada. Esse o motivo de eu não ter ido à reunião sobre o Serafim.

– Soubemos, disse Osório, compenetrado.

Antes que alguma menção fosse feita ao Rolex de ouro, que em mais um ano de trabalho o exemplar funcionário ganharia, me antecipei:

– Sacanagem, Buqué. Como pôde, depois de tanto tempo?

– O normal: corte, redução de custos, crise, o tempo de casa e os reajustes deixaram meu salário muito alto para a firma.

– E como você está?

– Quando me falaram fiquei chateado, é claro, mas depois de conversar com os patrões entendi a situação.

– Entendeu?

– É. A fila anda. Lembram? Primeiro as bicicletas eram todas importadas. Incentivados por Getúlio Vargas, vários fabricantes passaram a produzi-las no Brasil. Foi quando a família Tonello resolveu abrir uma pequena indústria.

– Lembro-me de algumas marcas, disse eu, o mais velho entre nós.

– Pois é. Foi assim até as décadas 1970/80 quando duas marcas chegaram a dominar 95% do mercado.

– Monark e Caloi.

– Para não quebrar, os Tonello começaram a fabricar peças de encomenda para a Caloi. Eu ainda não trabalhava lá.

Fez uma pausa. Parecia questionar uma vida melhor em outro emprego. Tempo suficiente para que eu e Osorinho virássemos dois copos de cerveja.

– Além da Caloi, passaram a fazer consertos. Sempre que alguém precisava no bairro de um conserto falava: “leva lá nos dois irmãos”. Assim, tiraram a placa “Indústria Tonello de Bicicletas” e puseram “Tonello Serviços Mecânicos”. Menos impostos, diziam.

– Naquela época tudo se podia consertar. Hoje mandam logo trocar.

– Fui contratado em 1986, como mecânico. Quatro anos depois, o Collor abriu o país para as importações, e japoneses, coreanos, americanos, europeus, invadiram o Brasil com bicicletas supermodernas.

– A Caloi e a Monark começaram a perder mercado.

– Isto! Em 2013, a Caloi foi vendida para os canadenses, as encomendas pararam, os consertos diminuíram. Nos últimos anos, a firma vivia de pequenos consertos e da venda de bicicletas usadas. Foi definhando e os vários anos de dólar barato fizeram explodir ainda mais as importações.

– Aí, nem conserto nem venda de usadas, certo Buqué?

– Mesmo com a moda das ciclovias, acabou. Estão mandando todo mundo embora. Ficou só a família para terminar de pagar as dívidas e fechar. Fazer o quê? Gente séria, da antiga.

– Entendo, mas mesmo assim estou te achando muito conformado, disse Osório.

O clima já estava ruim, mas sempre pode piorar. Maria Aparecida, a mulher do Osorinho, irrompeu na padaria e ao nos ver escondidos atrás de 11 garrafas de cerveja, fulminou o Buqué:

– Era o que faltava. Dio mio, que acaba de me abençoar, você, desempregado, e aqui enchendo a cara com estas duas bestas!

Segurei firme a perna do Osorinho. Sei do que ele é capaz quando aquela louca vai para o escândalo:

– Calma, Cida. Nós já estávamos terminando.

– Não, não. Não precisam terminar porra nenhuma.

E olhando direto para o marido, berrou o suficiente a fazer fregueses e pãezinhos murcharem:

– Nem ouse aparecer em casa querendo almoçar. Encha a cara o quanto quiser, coma uns croquetes podres, e tenha uma boa caganeira!

O silêncio na padaria durou alguns minutos. Pedi mais duas cevadas, três copinhos de cachaça, dei uma bela gargalhada e, corajoso, cutuquei o Buqué:

– Acho o que te fizeram um absurdo. Desconfio que foi só para não te darem o Rolex de ouro pelos 30 anos de empresa.

– Nada! Talvez daí a conformação. Eles deram o relógio.

– O quê?

Diante de nosso olhar de espanto, Buqué falou:

– Já está comigo. Fizeram questão pelos meus trabalho e dedicação à família Tonello.

Eu e o Osório, abestados, repetíamos um “não acredito” bem baixinho:

– É por isso que eu vim aqui. Não quero nem olhar para aquela merda de relógio. Só eu sei os sapos que tive de engolir esses anos todos. Não os mandei enfiar o “presente” no rabo por que me lembrei do Serafim.

– Como? Que cazzo tem o portuga a ver com isso?

– Quero rifá-lo para ajudar a reabrir o Dominó de Botequim do Serafa.   

A Dona Cida estava com a razão. Tínhamos “Bebadosamba” demais.

 

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

3 Comentários

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  1. Eu também…
    Rui, também quero ir! Tem uma turma boa da música neste blog, só bambas; nos leve que vamos curtir, ainda mais, a deliciosa cadência da sua crônica.
    Te falei no domingo passado: Odonir também te acompanha a cada domingo.
    Parabéns por mais esta! Que surpresa bacana ao final!
    Abraço!

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