Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Dominó de Botequim, por Rui Daher

Rolex Oyster Perpetual Day-Date Gold

– Tudo nos conformes.

Quando Osorinho soltou a frase logo entendi, sabia do que se tratava. Mesmo assim não consegui ir adiante na conversa. Fiquei matutando sobre esse “tudo nos conformes”. Por que tal expressão? O dicionário me diria: idêntico, análogo, no mesmo formato. Mas a qual conforme? Para o bem ou o mal do que pensáramos antes?

– O Rolex existe. Foi presente mesmo.

– Deve ser falso.

– Nada. Em 1978, o mais novo dos Tonello resolveu viajar com a mulher para conhecerem a Itália. Na época, a fábrica ia muito bem. Decidiu que traria um presentão para o irmão mais velho. Peso na consciência, talvez.

Si, il diritto dell’anziano.

– Famílias italianas são assim. Resolveu gastar os tubos e comprou um Rolex Oyster Perpetual, o primeiro modelo da marca, com dia e data, lançado no mercado, em 1956.

– Caramba! Ouro ou aço?

– Dezoito quilates, velho, inclusive o bracelete.

– Deve valer muita grana um usado.

– Usado, porra nenhuma. Comprou novinho. Voltou da viagem, deu para o irmão, e o infeliz nunca o usou.

– Absurdo! Raiva, desfeita?

– Cisma, medo, sei lá, o cara é Escorpião. Dizia que iria ser assaltado, estrebucharia na primeira esquina do bairro, os vizinhos diriam que ele queria se mostrar, os peões da fábrica teriam certeza de que os patrões os extorquiam.

– Escorpião é foda!

– Foi quando combinaram dar o relógio como prêmio ao primeiro funcionário que completasse 30 anos de trabalho e dedicação à Irmãos Tonello. Até lá, ficaria guardado no cofre de um banco.

– E foi esse o relógio que deram ao Buqué.

– Exato!  

– Bem, já sabemos que existe, mas não o que fazermos. Quanto pode valer um relógio desses? Justifica venda ou rifa?

– A Cida deu uma olhada na internet. É meio chute, mas usado fala-se em dez mil dólares; novo, entre 25 e 30 mil.

– É muita grana. Nunca foi usado, mas já teve dono, sei lá como classifica-lo.

– Por isso pensei em chamar “O Especialista”.

– Quem?

– Já esqueceu? O Virgílio.

Estávamos os dois num boteco perto de minha casa. Era noite, o conjunto de chorinho do Mimi, lá do ABC, iria se apresentar e eu, recém-chegado de Pernambuco, anunciara ao Osório que teria o show e trouxera um suave tesouro, com apenas 39 graus de teor alcoólico, a Cachaça Serrote, produzida em Salgueiro.

– O Virgílio, do “Estadão”?

– Ele mesmo. Lembra quem organizou o bolão do dente daquele cara que se dizia sobrinho dos Mesquita, quando na verdade ele apenas havia nascido em Mesquita, no estado do Rio de Janeiro?

– Claro. Puta sucesso! Rendeu uma grana para o cara. Como era mesmo o nome dele?

– O nome não lembro, mas o apelido era “Novelo”, enrolava todo mundo, era o campeão de vendas de assinaturas do jornal.

Tomo uma dose da Serrote e o Grupo do Mimi começa a tocar “Noites Cariocas”, talvez homenagem ao Rio e a Mesquita.

“Novelo” tinha um dos dentes caninos completamente bambo. Balançava mais do que caminhonete na BR-163. Estava assim há três anos, piorava a cada dia, balançava, mas não caía, e nada de ele ir ao dentista.

Viajava por todo o Brasil, vendendo assinaturas do jornal, e a cada nova saída os colegas advertiam: “Arruma esse dente. Uma hora ele cai e aí quero ver como você vai fazer. Chegar banguela diante dos clientes”?

A coisa já durava tanto tempo, virou folclore entre o pessoal do jornal, da Redação às Oficinas, que Virgílio resolveu organizar um bolão: “Em que viagem ou mês cairia o canino do “Novelo”?

Pela ideia, organização, controle e inspeções sobre eventuais fraudes, Virgílio cobraria 10% do montante arrecadado. Quase mil funcionários aderiram ao movimento.

Fora as inspeções oficiais, não havia quem passasse pelo “Novelo” e não arriscasse um soslaio para ver se o dente ainda estava lá. Amolecia, mas não caía. No almoço, vez ou outra, era possível ver o bicho saindo para fora dos lábios, entre pedaços de carne de segunda, que o “Novelo” não as evitava.

Se ninguém acertava, o bolão ficava acumulado para o próximo mês. Fraude, murro na boca, ou combinação, nem pensar. Mais valia ver crescer a brincadeira e a fortuna potencial.

Sem mentira, o canino inferior do Novelo que, agora me lembro, era Pascoal, durou mais quatro anos e foi com ele descansar num túmulo do Cemitério do Araçá.

A pequena fortuna, por justiça, dignidade e homenagem à resistência de certos caninos, foi doada à família de Pascoal, descontados os 10% do Virgílio, é claro.

O Mimi e seu conjunto voltaram para o segundo set, e a garrafa de Serrote estava pela metade. Acordo:

– Osório, liga imediatamente para o Virgílio. Pede encarecidamente que ele apareça domingo que vem ao salão da paróquia do Padre Luís, na Igreja São José de Belém. Temos um grande projeto para propor-lhe. 

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

4 Comentários

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  1. Essa da rifa do canino só pode ser invenção narrativa

    Em se tratando de botequim, recomendo antes de se iniciar a leitura, clicar-se no vídeo, porque ao som de Noites Cariocas, o tempero se espalha pelas palavras e a fruição é ainda melhor.

    Temperos, temperos.

    Salvem o rolex !

  2. Abraço!

    Rui, esses personagens oriundos da nossa “malandrice” são sensacionais. Tempo de fazê-los renascer sempre revigorados nestes tempos lamentavel e insidiosamente “corretos”. Abaixo o bom-mocismo e viva nós e nossa cultura.

    Como sempre, um bom recarregar de energias para os domingos, dias sempre modorrentos. Com música, construção narrativa e bom humor, dias suaves e felizes.

    Estou indo buscar um sol para meus ossinhos de jovem senhora e comigo, no celular, os vídeos do Dominó, inclusive Marcelino e este de hoje, uma delícia!

    Tenha uma excelente semana!

  3. De jornais, Rolex e Paradas, são compostas as melhores crônicas.

    Bom tarde Rui.

    Parafraseando a Anna Dutra, cumprimento-o, por ter salvado, o nosso “modorrento” domingo, com esta crônica saborozíssima, que consegue este verdadeiro mosáico de amenidades e análises sociológicas, do cotidiano paulistano, que neste dia, envolve os empresários citados, que respiravam socialismo, porém morriam de medo, de exibir Rolex, quando Sampa ainda não era tão desvairadamente violenta, quanto hoje; Quando colegas de profissão, amigavelmente apostavam na desgraça, da queda de dentes de amigos(amigos ?); Das boas pingas e dos bons sambas cariocas, cantados por cariocas, no “túmulo do samba” como eles nos consideram; De juntar num mesmo “copo” o cemitério do Araçá,a Igrejade S.J. do Belém, etc etc…

    Só faltou você acrescentar, a este “copo” de bebidas variadas, a Caminhada para Jesus, feita pelos evangélicos em Sampa, o boicote destes mesmos evangélicos fundamentalistas, ao Boticário, e seu inteligente e bem-humorado comercial de perfume, e a grande venda do “Perfume de Jesus” lançado pela também evangélica seita Renascer em Cristo, da Bispa Sonia, que almeja atigir o mesmo público-alvo, do perfume politicamente correto do Boticário. 

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