Duas Floripas

A temporada que passei em Florianópolis foi também uma viagem no tempo – rememorações muitas brotaram nas duas semanas que passei na chamada Ilha da Magia, na casa de meu irmão, em companhia da minha mãe, da noiva do dono da casa, da minha companheira e seu filho.
Floripa para mim, em minhas memórias afetivas, é duas cidades absolutamente distintas. Uma que vai de 1988 até 1994, outra que começa em 2000 e segue até hoje.
A Floripa atual me soa uma São Paulo que trocou a efervescência cultural por praias, uma especulação imobiliária mais selvagem e um trânsito muito pior que o da capital paulistana – levemente aliviado por um túnel que parece ter sido encomendado pelo Maluf (trem, metrô, corredor de ônibus pra quê?). Uma cidade em que o point de cooper, paqueras, passeios em família é a avenida Beira Mar, um calçadão estreito entre duas poluições: de um lado, um mar onde bostas boiam, do outro, uma highway a fazer barulho e levantar fumaça de óleo diesel – uma espécie de marginal Pinheiros que teve a sorte de ser escolhida pelos bacanas para fazerem seu “footing”, seu “slackline”. No mar, em quase todos os locais que frequentamos, lanchas e barcos “piratas” dão um ar brega à paisagem.
Quando o avião começava seu procedimento de aterrissagem, me lembrei o que ela foi para mim nos últimos vinte anos. É a cidade em que descobri o quanto minha família é preconceituosa, racista, estreita – e o quanto meu pai era ponto fora da curva. Meu tio que contava mil piadas e me divertia na infância imitando Pato Donald, descobri em 2000 que a grande maioria das suas “piadas” eram de negros (saí ofendido desse nosso derradeiro encontro). Em 2006, ouço outro tio questionar se eu achava que a Veja ia mentir, enquanto falava mal do Lula por ter escolhido um “preto” pro STF – afinal, o que se esperar de um presidente “cabeça chata”? Em 2011, na comemoração dos 80 anos de minha avó, começou a me cair a ficha do que eram as noitadas de meu primo de Curitiba, com seu grupo de amigos neonazi: não era para balada, era para humilhar, agredir, torturar (talvez matar?) negros, nordestinos, “viados”, travestis, pobres e outros “lixos humanos” do tipo. Nesse encontro ele dizia ter mudado, era professor de yoga, tinha virado pai há pouco – não acreditei e esta eleição me fez ver que eu estava certo, segue o mesmo fascista de sempre, igual seu pai. Pior: foi nessa viagem para Floripa, em 2011, que recebi a notícia de que o câncer de meu pai voltara.
Ao ir para as praias me veio a velha Florianópolis, de quando eu era criança, ingênuo, não entendia bem o que acontecia no mundo dos adultos, e por isso a cidade era basicamente feliz. Viagem em família, nos fins dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando mochilão não era moda – não aos habituais destes Tristes Trópicos -, tampouco viagens de turismo comercial – em lugares transformados em semi não-lugares para consumo. Férias era pegar o carro, comida, meia dúzia de fitas, e sair visitar parentes e amigos durante quase um mês. O roteiro básico da minha família era Pato Branco – Florianópolis – Curitiba – Matinhos – Ponta Grossa – Pato Branco. Os quatro no carro, eu incomodado de ter que usar cinto de segurança – mas na estrada é preciso, dizia minha mãe, sem chance de negociação -, e mal esperando a hora de chegar na cidade para tirarmos aquele trem que limitava o livre movimento em caso de acidente. Não raro minha mãe tinha que viajar atrás, entre mim e meu irmão, para evitar brigas. Em 1989, lembro do Corcel branco que passou por um buraco e precisou parar no acostamento, perto de uma lagoa – alegria para a criança que eu era. Meu tio com seu buggy, imitando Pato Donald; assistir à Pantera Cor de Rosa com meu outro tio; inventar um computador com duas folhas de papel e apresentar jornal de frente para o espelho, o quarto fechado, abafado, porque se abrisse a janela seria impossível dormir de tanto pernilongo; os ratos no quintalzinho do prédio de meus tios; Raça Negra fazendo versão de Legião Urbana no carro, Jorge Ben Jor cantando Engenho Dentro em “homenagem” ao meu conterrâneo no ministério da saúde de Collor, Skank com Indignação e Biquini Cavadão com Vento Ventania; meu irmão fazendo um escândalo desesperado para entrar na sala de dentista para tirar um dente de leite pendurado, eu descobrindo que sou daltônico, e meu irmão que é míope; meu tio agressivo contra o flanelinha dizendo que estava armando e não precisava “pensar duas vezes antes de dar um tiro na cara de um preto safado” (e eu não entendi o porquê de toda aquela agressividade gratuita, ainda não conhecia o que era o preconceito); a chica argentina tentando puxar conversa comigo na praia dos Ingleses; as dunas da Joaquina, onde achei uma nota alta de cruzeiro; a água viva queimando meus pés enquanto eu puxava meu irmão na prancha de body-board verde; os congestionamentos para voltar da praia e a parada, na volta da Lagoa da Conceição, numa venda de milho verde e rosca de polvilho, de onde víamos ao longe o trânsito fluir lentamente; o Pântano do Sul era uma praia nos cafundós da Ilha, quase deserta, três famílias de turistas que eram chutados da praia no fim da tarde pelos moradores locais, pois era hora de eles jogarem futebol, no meio do caminho (acho que era para o Pântano) uma igreja antiga, da época colonial, branca e dourada (ou seria amarela?), caindo aos pedaços, pela fresta na porta via seu interior, uma viga de sustentação caída sobre bancos rotos. Ruínas de uma cidade antiga.

04 de janeiro de 2019

Redação

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