É fome, então?, por Luzia Barros

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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É fome, então?

por Luzia Barros

A mesa do pobre é escassa, mas o leito da miséria é fecundo

Adagio popular

O ano é 2017, marcado por profundos retrocessos em todas as demandas mais prementes da maior parte da sociedade. Os direitos humanos não são apenas desrespeitados, como são até condenados por parcelas conservadoras da população.

Acima, porém, das necessidades específicas – e ora largamente pisoteadas pelo Estado – dos diversos grupos sociais, impõe-se um pré-requisito básico para a existência humana: a alimentação. E, neste momento, é a falta dela que volta a assombrar a vida brasileira. A fome bate de novo à porta dos mais desassistidos, e uma criança desfalecendo subnutrida em uma sala de aula da capital federal é exemplo incontornável de sua brutalidade e dos que deveriam evitá-la.

Essa fome que não é nem de esquerda, nem de direita, não é negra, nem branca, tampouco asiática. É a fome universal e universalmente ignorada, comumente retratada na imagem da “mulher africana amamentando seu filho desnutrido”, presente desde o “Navio negreiro” de Castro Alves até os atuais programas de TV.

A fome está também em nossas geladeiras disfarçadas com enlatados e embutidos. Sim, pois diz-se que “comer é se alimentar” e não é esta a lição essencial que o geógrafo pernambucano Josué de Castro nos apresenta ainda nos anos 30 do século 20. A fome é um polícromo complexo, diz Castro, separando-a em dois matizes, a aguda e a crônica, ambas deletérias. A primeira – amplamente disseminada como sendo sua principal face – se dá quando não há alimentos, matando os indivíduos rapidamente. A segunda refere-se à subnutrição nas grandes cidades, em especial nas periferias, onde o acesso a alimentos frescos e variados é mais difícil que ao industrializado. Um exemplo definitivo dado pelo geógrafo da crueldade da fome crônica: os soldados de Hitler seriam subnutridos, a Alemanha nazista era subnutrida, ou seja, a fome crônica impulsionava os alemães a aderir a uma das mais nefastas ideologias da humanidade.

Castro também esclarece que as épocas de crise de abastecimento coincidem com a ocorrência de banditismo e do aumento do crime organizado. O cangaço ilustra fartamente este fenômeno. São exemplos históricos que mostram que a fome não atinge somente os famintos, mas a toda a sociedade, que divide espaço e tempo com as vítimas.

Esta talvez seja a forma mais perversa de enfraquecer seres humanos e seus potenciais e que, no entanto, é negligenciada não apenas pelo Estado, como também pelas forças do capital. A própria população no geral é responsável por sua insistente permanência e sobrevida, pois o senso comum diz que há nela um caráter natural e seria até uma forma de equilibrar a população mundial. Não pode haver justificativa mais equivocada para sua milenar presença entre nós. A fome é uma criação humana, e cabe aos humanos encarar sua extinção como responsabilidade de cada um e coletiva e não como resultante de obras de caridade ou apenas de políticas de Estado. A ignorância sobre seu potencial transformador, bem como a insistência em escamotear o tema, colaboram para sua permanência.   

Mas é justamente a experiência brasileira recente que está aí a demonstrar que a fome não é fenômeno natural e sim social. Depois de 500 anos, um “milagre” tira o país do mapa mundial da fome em 2014. O que se dava antes? Uma catástrofe climática? Um terremoto de grandes proporções? Não, só falta de acesso à alimentação por grande parte da população, consequência da má distribuição de renda, mas sobretudo da não distribuição das terras de cultivo.

A solução encontrada pelos governos petistas de Lula e Dilma foi simples – criar programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e de incentivo ao pequeno e médio produtor rural. O primeiro por garantir acesso à cesta básica, o segundo por baratear e possibilitar maior variedade na mesa.

Agora, o novo governo toma medidas para que o Brasil volte a figurar entre os países famintos, com aumento do desemprego e retirada de direitos de trabalhadores, entre outras medidas restritivas de condições de sobrevivência das populações mais pobres. A catástrofe aqui não é natural, mas política, são duas ou três canetadas que recolocam o país no mapa da ONU. Até porque a produção alimentícia mundial diária é capaz de alimentar o todo da população mundial 4 vezes. Não falta alimento, falta distribuição.

É urgente que a população mundial se mobilize em torno do tema, que discuta, que se informe e que se engaje na luta contra essa criação humana, que, se não nos atinge diretamente, nos envergonha, pois, depois de quase um século do trabalho de Josué de Castro, nos vemos inertes, suportando que a régua da fome seja a mesma dos anos 30 do século passado.

Ninguém é inocente quando o assunto é fome, assim como ninguém é imune a ela. Exigir o direito à alimentação de todos os indivíduos vai além de gestos de boa vontade e também não é uma questão de ponto de vista. Alimento para todos é o básico. Se não podemos nos unir para nos mantermos vivos, difícil será nos unirmos por qualquer outra causa.

Luzia Barros é doutora em Estudos Comparados pela Universidade de São Paulo. É pesquisadora da fome a partir de prosas de ficção dos anos 30 e 40, tema presente em dissertação de mestrado e em tese de doutorado. Atualmente é membro do grupo de pesquisa Estudos Comparados: Graciliano Ramos – pontes literárias, socioculturais e com outras artes, na mesma universidade.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. É fome?

    …A fome não é um fenômeno natural e sim social… Esta é a maior vergonha deste país. É a mesma coisa que falar em falta de água no país que estratosfericamente em relação a qualquer outro deste planeta, tem este recurso em superioridade. Alimentos são a mesma coisa Comida neste país vale menos que lixo, menos que merda. Isto só poderia vir em decorrência de um povo que não consegue criar estruturas civis e organizacionais para se defender e proteger seus interesses, como a Vida, segurança alimentar e hídrica, exemplos mais importantes. Culpa de estrutura politica esquerdopata que mina a verdadeira democracia em detrimento a messianismos, domsebastianismos, ditaduras politicamente corretas impostas por elites pseudo-progressistas fantasiados de representantes do povo, sabotando que a Sociedade livremente crie recursos verdadeiros de representação como Cooperativas. Este único exemplo mostra como seriam melhorados representatividade, organização, produção e distribuição de alimentos. Um simples exemplo superior ao que 40 anos de farsante redemocracia não conseguiu alterar. O Brasil é de muito fácil explicação. 

  2. “O menino e o mundo”

    A noticia de uma criança passando mal e desmaiando na escola em 2017 por fome é tão cruel quanto inaceitavel. Eu sei, sabemos, que ha fome ainda no mundo, mas quando ela apresenta seu rosto escancarado é de doer o estômago daqueles que saciam sua fome. Politicamente caminhamos para que essa aberração que é a fome esteja de volta nos jornais porque ela sempre esteve ai, à espreita, e que agora voltara com força. Espero muito que Lula possa voltar em 2018, mas se assim não o for, o Brasil voltara para o mapa da fome e da miséria que acompanha.

    “O menino e mundo” é o famoso filme de animação de Alê Abreu cuja a tematica social é presente em todo o filme. Eh um filme lindissimo, de grande poética e sensibilidade, que todos deveriamos ver. Nas escolas, professores deveriam ver e debater com seus alunos.

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