Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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E os pássaros mortos saem todos voando da frente de meus olhos, por Maíra Vasconcelos

Quantas vozes cabem dentro de uma mão escritora? Quando falo de vozes também minto. A minha voz precisa mentir e desmentir muito, ir e vir, porque não há de se cultivar dependências alheias.

E os pássaros mortos saem todos voando da frente de meus olhos

por Maíra Vasconcelos

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Nem todo espelho fala, se ainda não soube se quebrar muitas vezes. Quantas vezes a sua face se desfez inteirinha? Eu já nem sei. Parei de contar. Há muito, comecei a me desfazer dos contornos exatos do próprio rosto sem cultivá-lo como planta. Entende? Essa moda passou. A transcendência quase morreu e foi manchete de jornal. Temos a palavra e não há mais do que palavras e o que existe por trás de cada uma delas, como o seu próprio revesso.

Quantas vozes cabem dentro de uma mão escritora? Quando falo de vozes também minto. A minha voz precisa mentir e desmentir muito, ir e vir, porque não há de se cultivar dependências alheias. Todo poeta deveria presar pela liberdade e querer nada mais do que leitores, leitores e não seguidores, como disse Tarkovski, em algum momento querendo que ninguém o visse, mas somente a poesia ao citar versos do pai.

É necessário mentir para escrever um texto ou dois. Depois, se escreverá tanto que não tem sentido pelejar mais do que o necessário. Cortázar escrevia uma novela em seis meses. Alejandra Pizarnik, um livro em três meses, e durante 17 anos escreveu em cada página de diário sobre a novela que nunca aconteceu. Então, qual é o necessário? O desprendimento inteligentemente desafetado do eu que não abandona o próprio de si mesmo. É aquilo de sempre transformar, estar e não estar presente. Ninguém pode ver-e-ler o eu claramente. Entende? A contemporaneidade não permite apenas um rosto.

A imanência está por renascer e também foi manchete de jornal, bem ilustrada com a foto de um corpo alegre. Por isso, eu menti, e amanhã irei mentir novamente. Afinal, a razão tudo relativiza. As transcendências na contemporaneidade cederam algum lugar ao concreto de se dizer a palavra, apenas a busca pela palavra. Entende? Tudo pode sair desse único lugar que são as ruas ou o chão das casas, as paredes de um quarto deserto, as dependências de um hotel decadente onde dois amantes odeiam o mundo.

Hoje de manhã, enquanto lia os jornais, permanecia essa divagação sobre as vozes e as possíveis mentiras que as sustentam. Essas vozes que de repente afasto de mim: e os pássaros mortos saem todos voando da frente de meus olhos. Encontrei essa receita de alívio quando me diverti com meu avô em um sonho: há de se saber espantar pássaros mortos do olhar. Entende? Porque escrever pode ocupar a parte inteirinha de uma vida, e não pretendo perder o amor.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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