“É um projeto inseparável. Guedes e Damares são igualmente importantes”, afirma antropóloga

Por Marcella Fernandes

Do Huffpost Brasil

Ainda que à frente de um dos menores orçamentos da Esplanada dos Ministérios, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), Damares Alves, tem ganhado cada vez mais protagonismo no governo de Jair Bolsonaro. A pandemia se tornou uma oportunidade política para a ministra e sua atuação na promoção de uma visão conservadora de família é inseparável das políticas de austeridade fiscal e de redução de serviços públicos defendidas pelo ministro da economia, Paulo Guedes.

A avaliação é da antropóloga Isabela Kalil, coordenadora do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual (NEU-FESPSP). Nos últimos anos, ela se dedica a uma etnografia da nova direita brasileira, com foco no comportamento de bolsonaristas. Em entrevista ao HuffPost Brasil por telefone, a pesquisadora falou sobre a dinâmica desse grupo de apoiadores do presidente e como a ministra de Direitos Humanos atua na sustentação desse projeto político.

“A gente tende a achar que o ministério da Damares é menor, mas políticas relacionadas a direitos humanos atravessam todos ministérios. E para Damares, a pandemia foi uma oportunidade porque hoje assuntos que não tinham esse grau de importância ou não assumiram a centralidade do projeto político passaram a ter”, afirma Kalil.

A crise provocada pelo novo coronavírus traz à tona debates sobre temas como saúde, educação e populações indígenas e vulnerabilidade social, temas que fazem parte da agenda da ministra e para os quais ela tem “respostas formuladas”, de acordo com a antropóloga. Entram nesse contexto, por exemplo, a defesa do ensino domiciliar e da abstinência sexual ― duas bandeiras da pastora.

Um dos movimentos concretos do MMFDH foi a publicação de uma portaria em junho que muda o entendimento sobre família. A norma cria o chamado ‘observatório nacional da família’, cujo objetivo seria promover pesquisas para subsidiar políticas públicas. “Acho esse observatório preocupante nesse sentido porque é um dos primeiros documentos que formalmente definem uma noção de família que representa um retrocesso”, ressalta a pesquisadora.

Além de entender família de forma restrita e heteronormativa, o observatório tem como primeiro eixo a ”conciliação família-trabalho e projeção econômica e social”. ”Você tem um esvaziamento dos serviços públicos para uma lógica privatista, de que cada família têm de responsabilizar por si mesma, pelo cuidado dos idosos, das criança, dos doentes, por ser uma família empreendedora e geradora de renda”, afirma Kalil.

Esse movimento vem acompanhado de ataques a serviços públicos ao relacionar, por exemplo, profissionais de saúde ao aborto ou escolas à pedofilia. Esses ataques “colocam em suspeita os serviços públicos mais básicos de atendimento da população” e ao longo dos anos promovem uma lógica de redução do Estado. “Se a escola passa a ser vista ao longo de anos de campanha como um lugar de perigo, então não faz tanta falta, certo?”, explica a pesquisadora.

Na pandemia, Damares vem ganhando cada vez mais espaço enquanto a saída de Guedes do governo é ventilada de tempos em tempos, em um contexto de dificuldades da equipe econômica para atender a demandas sociais provocadas pela pandemia e ao mesmo tempo manter a agenda de austeridade. “Não dá para dizer que a economia seria mais importante do que a pauta de costumes ou de moralidades. Ela são indissociáveis”, afirma Kalil.

Leia a íntegra da entrevista:

HuffPost Brasil: No governo Temer se iniciou mais fortemente uma agenda econômica de redução do Estado. Essa agenda continua no governo Bolsonaro, acompanhada da atuação de Damares na defesa de temas como ensino domiciliar, a abstinência sexual. Essas bandeiras ligadas à moralidade são importantes para legitimar, em alguma medida, a redução da pressão política para melhorar o ensino público ou as políticas de saúde voltadas para gravidez precoce, por exemplo?

Isabela Kalil: A ministra Damares está aproveitando a pandemia como uma oportunidade política. Foi publicada uma portaria que cria o observatório nacional da família, que pretende ser um observatório que produz material de pesquisa. O eixo principal é família e trabalho. A gente não têm muita informação, mas o lugar da família aparece como ente gerador de renda. A família empreendedora, a família que precisa por seus meios próprios cuidar dos seus e lidar com questões de emprego, como a questão do empreendedorismo. Isso é uma questão muito forte.

Se a gente vai olhar a tendência que a Damares representa dentro do governo Bolsonaro, ela no fundo é de ataques à coisa pública, a serviços públicos. É um esvaziamento da educação porque os professores são um risco para crianças. Esses ataques colocam em suspeita os serviços públicos mais básicos de atendimento à população, que são saúde e educação. É a face do Estado mais próxima das pessoas: a creche, a escola pública, o posto de saúde, a pessoa que vai fazer a visita para combater o mosquito da dengue.

No longo prazo, vai criando uma desconfiança e esses operadores de políticas públicas passam a ser vistos como corruptos, mas é um tipo de corrupção de estar fazendo uma coisa moralmente inadequada, não no sentido de desvio de recursos públicos.

Esse observatório muda o entendimento de família?

Além de ser prioritário esse eixo da família e trabalho, aparece outro aspecto. Contrariando marcos legais anteriores, como a própria Constituição Federal, a Lei Maria da Penha, que vão entendendo família de maneira mais alargada com arranjo de relações afetivas e podem ser múltiplos. Podem ser dois irmãos, dois homens, duas mulheres e uma criança, enfim, e a portaria não diz abertamente que está contrariando esses marcos legais, mas ela afirma um modelo de uma família reconhecida pela conjugalidade, pelo matrimônio, que pela estrutura pressupõe relações entre homens e mulheres, então é um família heteronormativa. E por último uma família que considera relações intergeracionais: pai e mãe e filhos. Não abre espaço para uma família, por exemplo, de 3 irmãos que moram juntos por alguma razão. Acho esse observatório preocupante nesse sentido porque é um dos primeiros documentos que formalmente definem uma noção de família que representa um retrocesso.

Como essa mudança se relaciona com a agenda econômica?

O projeto moral está ligado com o projeto econômico. Parte-se do pressuposto de que existe um modelo correto de ser em termos de estrutura familiar e essa família têm de ser correta nesse entendimento que é um arranjo que vai possibilitar que o cuidado das crianças seja realizado em casa. A escola passa a ser perigosa porque se diz que tem pedofilia na escola. O cuidado dos idosos tem de ser feito em casa. Você tem um esvaziamento dos serviços públicos para uma lógica privatista, de que cada família têm de responsabilizar por si mesma, pelo cuidado dos idosos, das criança, dos doentes, por ser uma família empreendedora e geradora de renda.

Pode detalhar de que forma essa defesa da família esvazia a educação pública?

Você têm diferentes frentes. Uma diz que na escola as crianças estão expostas à pedofilia porque alguém posta um vídeo de uma pessoa trans, gera uma comoção ee se faz uma associação grosseira. A mensagem por trás disso é que a escola é um lugar de perigo. Por outro lado, você têm projetos de lei que tentam emplacar o homeschooling ou o ensino religioso. A educação é visto como algo muito sensível para ficar na mão do Estado e têm de estar na mão de grupos religiosos, por exemplo, ou dentro da família.

Parece que posições políticas e modelos econômicos de corte na educação estão desconectados com uma campanha antipedofilia, mas se a gente vai ver, a base, digamos, é coerente.

É um projeto inseparável. O Guedes e a Damares são igualmente importantes. E no contexto da pandemia, a Damares acabou assumindo um protagonismo em um processo em que ela vai ganhando cada vez mais espaço e importância no governo e o Guedes vai diminuindo. Não dá para dizer que a economia seria mais importante do que a pauta de costumes ou de moralidades. Ela são indissociáveis.

Se a escola passa a ser vista ao longo de anos de campanha como um lugar de perigo, então não faz tanta falta, certo? Nesse processo, você tem um projeto em que o Estado deixa de ter algumas responsabilidades, que são transferidas para a família.

Um dos principais debates nacionais gira em torno de como o governo irá viabilizar um programa social maior que o Bolsa Família e ao mesmo tempo promover a agenda de austeridade. Nesse contexto, somado ao impacto econômico da pandemia, especialmente para as mulheres, com a sobrecarga do trabalho do cuidado, a atuação política de Damares se torna ainda mais crucial para o sucesso do projeto político de Bolsonaro?

Acho que sim. Você têm um acirramento dessa responsabilidade da família. É difícil de avaliar porque não são propostas muito concretas e não se diz bem como vai se chegar em resultados nesses programas, mas quando se debate a existência de voucher para famílias pagarem educação, por exemplo, a gente está falando de um processo de esvaziamento da escola pública. Outra preocupação é quem vai operar essas escolas. São instituições religiosas? Se abre um espaço importante de mercado.

Como ocorreu no caso das comunidades terapêuticas para dependentes químicos…

Exatamente. Em questões relacionadas à saúde mental, a gente têm esse processo. Instituições religiosas que foram ganhando cada vez mais espaço no tratamento psiquiátrico, de saúde mental e de questões relacionadas ao uso de drogas e dependência química. E agora parece que o cenário é que a gente vá nessa linha para educação.

O Renda Brasil também se insere de certa maneira nessa redução dos Estado?

No caso do Renda Brasil, os valores não são realistas com as necessidades das pessoas, inclusive hoje com a alta dos alimentos básicos. É um valor muito pequeno para que a família cuida de saúde, educação, transporte, moradia. Na aparência, é um projeto que se preocupa com pessoas mais vulneráveis, mas se implementado, no longo prazo, pode se mostrar muito danoso.

Considerando que dados econômicos mostram uma vulnerabilidade maior da população negra e de mulheres, é possível pensar uma democracia efetiva sem equidade racial e de gênero? Essas pautas estão descoladas?

Acho que não estão descoladas de forma alguma. Quando a gente vai falar das múltiplas desigualdades, essas questões são determinantes. Por isso é complicado, mesmo no campo progressista, quando você chama essas demandas de pautas identitárias. É impossível não incluir o combate ao racismo, à homofobia, à desigualdade de gênero e afins nas necessidades de justiça. Não tem como ter um projeto democrático se não partir disso. Não existe projeto democrático sem enfrentamento ao racismo.

Essa separação entre pautas morais e econômicas se dá de forma diferente no campo progressistas e no campo conservador?

Há uma questão de fundo de uma inspiração religiosa em que você não separa, por exemplo, prosperidade econômica de fé. Não estou dizendo que todo discurso do Bolsonaro é religioso é baseado nisso. Mas há sim uma tendência em que o seu sucesso financeiro depende de uma conduta moral correta e de uma conduta religiosa correta. No campo progressista, essas coisas parecem estar separadas.

Essa linha de promoção da família é algo inovador do governo Bolsonaro ou, em alguma medida, essa atuação já exista no Brasil antes?

O principal programa do Partido dos Trabalhadores se chama Bolsa Família. A noção de família atravessa de diferentes maneiras, diferentes projetos políticos. Mas a gente teve um processo, que eu considero um avanço, que é de um entendimento alargado de família, principalmente com decisões do Judiciário de reconhecimento das uniões homoafetivas. Agora o que a gente está vivendo é que o tema da família é central, mas é falso, porque não dá conta da multiplicidade das famílias brasileiras. Esse modelo de família é uma proposta bem excludente.

Na pesquisa de acompanhamento de bolsonaristas durante a pandemia, a senhora identifica certo descolamento por parte de religiosos em determinado momento devido ao discurso do presidente de minimizar as mortes. A atuação da Damares também foi determinante em reforçar o apoio desse grupo ou essa relação não é tão direta?

Essa relação não é tão direta. Ela apareceu para mim nos monitoramentos e pesquisas mais relacionadas ao debate de reabertura ou não das igrejas e à percepção das pessoas em relação às falas públicas do Bolsonaro que minimizam as mortes.

Acho que houve um processo duplo. Primeiro, o contexto da pandemia é muito dinâmico. As cidades mudam, abrem, fecham, voltam. Há diferenças regionais. À medida em que o tempo foi passando, tem se tentado relaxar um pouco o isolamento social e tentado modelos híbridos ou de abertura. Combinado com isso, fez diferença o fato do próprio Bolsonaro ter mudado um pouco o tom nas falas públicas. Não que ele tenha mudado efetivamente de posição.

Nesse caleidoscópio de perfis de eleitores do Bolsonaro que a senhora coloca na pesquisa, a Damares também influencia grupos fora da esfera religiosa?

A gente tende a achar que o ministério da Damares é menor, mas políticas relacionadas a direitos humanos atravessam todos ministérios. E para Damares, a pandemia foi uma oportunidade porque hoje assuntos que não tinham esse grau de importância ou não assumiram a centralidade do projeto político passaram a ter. Por exemplo, a Damares tem uma posição em relação às populações indígenas. Essa questão foi um pouco negligenciado em alguns períodos e agora é central para se pensar as políticas específicas de enfrentamento à covid com populações indígenas, além de todas atrocidades de garimpo ilegal, incêndios etc. E a Damares está muito envolvida em indicar o tom da política indigenista no Brasil.

Também na educação…

Questões envolvendo educação e homeschooling não eram um debate central, que toda a sociedade tinha de se mobilizar e era incontornável. Com a pandemia passou a ser. Como as pessoas estão em uma situação de extrema vulnerabilidade social que se acirra devido à covid-19, isso passa a fazer parte também da pauta da Damares relacionada a temas sociais. Com a pandemia, a Damares ganha um protagonismo porque a gente precisa debater assuntos relacionados à agenda dela e para os quais a Damares têm respostas formuladas. Ela tem uma resposta para questão da educação, da saúde, dos indígenas.

A senhora fala que a adesão ao bolsonarismo é feita por meio de narrativas sem relação com a realidade, por exemplo, culpar o PT por não ter criado uma vacina contra covid-19 quando estava no governo sendo que o novo coronavírus não havia surgido na época. Também fala de subjetividades no processo de propagação de fake news, por exemplo, ganhar uma discussão familiar. O quanto debater o bolsonarismo sob o aspecto puro da racionalidade impede de entender o fenômeno de modo mais efetivo?

Para entender o fenômeno do bolsonarismo, só olhar para questões de racionalidade não dá conta. Do ponto de vista analítico, acho que não dá conta para entender nenhum projeto político, mas no caso do bolsonarismo isso fica mais evidente. Pesquisando por anos, eu diria que primeiro, algumas pessoas são apoiadores do Bolsonaro. É maior do que o voto em si.

É difícil generalizar porque são grupos diferentes, mas entender a mobilização de afetos na política é fundamental para entender porque as pessoas apoiam o Bolsonaro. Por isso que tentar entender apenas por questões apenas de racionalidade, argumentos, é muito difícil. Se a gente não entender isso, de que política não é feita só racionalidade, mas que é feita também de afetos, de moralidade, é muito difícil entender esse processo.

Em relação à efetividade de comunicação de políticos conservadores, expressões como “pró-vida”, “escola sem partido”, “ideologia de gênero”, “a favor da família” são reproduzidas mesmo fora do campo progressista, pela imprensa, por exemplo. O que explica o sucesso e o fracasso em emplacar o uso desses termos? O quanto isso impacta?

Acredito que para cada grupo [de eleitores do Bolsonaro], eu daria uma resposta diferente. A gente está falando de um processo de anos e as estratégias vão mudando. O próprio significado de um conceito em 2017 é diferente de hoje, por exemplo. Depende dos conceitos, de campos diferentes de mobilização.

Há algum termo mais importante hoje?

Determinados termos são mais importantes em um momento e não em outros. Por exemplo, o Bolsonaro atacava muito o Partido dos Trabalhadores e o Lula. Isso acontece muito pouco hoje. Os termos vão mudando. Esse é o problema. Durante as eleições, o termo ideologia de gênero era o mais importante. Hoje eu diria que é, por exemplo, pedofilia. Pode ser que amanhã mude. Em cada período, você têm uma mobilização de termos e agendas diferentes, mas elas vão mudando e se combinando.

A mobilização do termo pedofilia ganhou força recentemente devido ao caso da criança de 10 anos que engravidou após sofrer abuso sexual. O discurso do “combate à pedofilia” acaba criando um falso debate, no sentido de impedir, por exemplo, que se melhore o acesso ao aborto legal ou ações de prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes?

Acho que cada caso é um caso. Depende de situações específicas. Para tratar aborto e educação são diferentes estratégias. Não conseguiria fazer uma generalização.

Nos últimos anos, foram estabelecidas barreiras do ponto de vista de retrocessos formais nos direitos humanos. O STF barrou leis de “escola sem partido”. Os estatuto da família e do nascituro não foram aprovados, nem outras propostas de redução do aborto legal. Mas até que ponto essas barreiras são barreiras de fato?

Apesar de o Bolsonaro ter seus apoiadores, equipe e exercer uma força, a gente tem resistência. Por exemplo, no episódio da menina de 10 anos, foi uma resistência. Eu não desqualificaria dizendo que isso parece ser uma vitória e não é. A gente passou por um processo histórico de ampliação de direitos e de reconhecimento da diversidade. Agora a gente tem um retrocesso. Se é assim, às vezes apenas barrar algumas proposições legislativas ou determinados marcos legais já é uma conquista.

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