Ensaio contra a cegueira: ideologia antiestado X interesses do RJ, por Bruno Leonardo Barth Sobral

Quem diz que para a ‘solucionática’ ideal basta aprofundar a austeridade, tem que ter a seriedade de dizer onde vai cortar sem afetar as políticas públicas. Todo o esforço relevante de reduzir despesas é inócuo diante do quadro de recessão e queda de receitas dessa magnitude

do Brasil Debate

Ensaio contra a cegueira: ideologia antiestado X interesses do RJ

por Bruno Leonardo Barth Sobral

(…) penso que não cegámos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem” (José Saramago).

Atualmente, o Rio de Janeiro é caixa de ressonância de uma crise nacional profunda. A crise no Rio de Janeiro (e não do Rio de Janeiro!) é para ser entendida e tratada como sinalização de um sistema federativo em perigo. Essa é a essência da crise, esse é o cerne de toda luta. Centrando nisso, cariocas e fluminenses reassumirão seu protagonismo, ao invés de serem estigmatizados e humilhados em uma desorientação sem fim.

O cerne do problema envolve múltiplas dimensões associadas, em particular: os efeitos da debilidade produtiva e as disputas federativas sobre a arrecadação tributária; a lógica pouco federativa com que se conduziu o endividamento público estadual, somada ao sacrifício de ativos previdenciários; e a visão ideológica sobre a máquina pública, em que a busca de eficiência sem buscar eficácia tende a gerar não uma estrutura mais leve e enxuta e sim ampliar a desestruturação de uma máquina já desestruturada. Sendo que esse reforço da desestruturação é também imposto por uma relação contratual sob a ordem federativa (vide contrapartidas do acordo federal).

Nesse sentido, julgar que haja saída fácil é desconsiderar que o problema do Rio de Janeiro tem dimensões econômicas fundamentais. E pior, fica-se a reboque de denuncismos e perplexidades que se afastam de uma análise propositiva e se sustentam apenas em um discurso antiestado e de negação da política. Para isso ser evitado, é preciso que sejam superados consensos apriorísticos e arbitrários.

A falta de reflexão séria sobre economia fluminense e carioca faz acreditar recorrentemente em efeitos manada e manipuladores de expectativas. Uma falsa euforia feita de alimentação midiática de expectativas de mercado que, ao sabor do próprio ciclo econômico, ora gera um otimismo exagerado ora gera uma pessimismo exagerado. Diante disso, hoje, alguns formadores de opinião seguem com um discurso tolo de que a economia do Rio de Janeiro desperdiçou “anos de ouro” (bonança).

Assim, confunde-se desenvolvimento com balcão de negócios. Em muitos casos, isso beneficiou esses formadores de opinião seja por consultorias, seja por contratos de publicidade, seja por parcerias empresariais em algumas políticas. Por isso, agora é uma boa oportunidade para que se diferencie com mais rigor o que é ser um Estado facilitador de negócios e o que é ser um Estado planejador.

Aqueles que fazem o discurso dos “anos de ouro” desperdiçados insistem que o cerne do problema é gestão administrativa perdulária. Diferentemente, o cerne da questão se refere à falta de um sistema de planejamento econômico que garantisse uma estrutura sustentada de receitas. A falta de adensamento produtivo, vulgo “estrutura produtiva oca” do ponto de vista regional, continua sendo ausente na retórica dominante. Além disso, em plena crise federativa explicitada por uma severa recessão, nada é falado. Dessa forma, isola-se estrategicamente mais o Rio de Janeiro, fragilizando sua capacidade de articulação política para alternativas.

Nesse ínterim, não se deve aceitar que uma inversão de valores societários se realize por trás do discurso de austeridade. Um dos pressupostos de uma boa gestão pública é não só a busca de eficiência como de eficácia. Uma questão não está subentendida na outra. Pode ser eficiente e não ser eficaz, basta querer fazer certo o que não é certo.

Afinal, eficiência se pode obter por uma ação operacional, enquanto eficácia exige uma ação gerencial que tenha atenção ao resultado total sobre a qualidade do serviço público. O objetivo do atual governo estadual é a busca da eficiência tendo como principal meta reduzir o déficit público (no limite, eliminá-lo) o mais rápido possível. Para aqueles que acham que a crise financeira está no “tamanho” do Estado e de seus gastos de uma maneira geral, isso pode ser visto como o caminho certo.

O discurso da austeridade se torna enganoso quando permite dar salvo-conduto para um “enxugamento” da máquina de forma pouco criteriosa. Cabe alertar o quanto é falacioso associar “enxugamento” automaticamente com melhoramento da qualidade do serviço público. Em especial, na máquina fluminense que está desestruturada especificamente para o atendimento de atividades-fim. Essas atividades são trabalho-intensivas, logo, possuem gasto relevante com pessoal e são assumidas como despesas obrigatórias justamente porque são essenciais. Toda a atenção deve estar voltada para lutar para que esses gastos obrigatórios não sejam ignorados nem sejam tratados como facultativos.

Cabe destacar que, em 2016, o Estado do Rio de Janeiro foi aquele com a maior retração de arrecadação própria entre as unidades da federação, e esse ano até outubro de 2017, a receita tributária registra queda real. Como consequência, avolumam-se consideráveis restos a pagar e riscos reais de não cumprimento de mínimos constitucionais em áreas essenciais. Diante disso, o governo estadual só sabe reiterar que tudo se deve ao momento difícil, que sacrifícios são necessários e que a União é uma grande parceira (mesmo sem oferecer um real de orçamento federal ou revisão da dívida como fez com as empresas através do Refis em escala nacional).

Tal equívoco estratégico tem impactos socioeconômicos que o processo democrático não poderá impedir facilmente, dado que foi posto em um contrato assinado com a União passando por cima até do ciclo político-eleitoral. Contudo, insistir que a crise do Rio de Janeiro é por excesso de gastos é ser irresponsável. Quem diz que para a “solucionática” ideal basta aprofundar a austeridade, tem que ter a seriedade de dizer onde vai cortar de maneira significativa sem afetar as políticas públicas. Todo o esforço relevante de reduzir despesas é inócuo diante desse quadro de recessão e queda de receitas dessa magnitude.

Diante isso, devem ser revistos alguns pressupostos para evitar insistir em um ajuste fiscal que vem demonstrando não levar a lugar nenhum:

Primeiro, receita corrente não está dada para a tomada de decisão do gestor público. Na falta de conseguir inventar novos mecanismos irresponsáveis de receitas extraordinárias (como empréstimos lastreados em ativos a serem privatizados, antecipação de receitas futuras etc.), o dilema não se resume a escolha entre “sacrificar” duas categorias de gasto (por exemplo, entre segurança e educação ou entre previdência e investimento em ativos fixos). A retórica de que a falta de gasto em uma função é por excesso de gasto em outra função não tem validade universal e apriorística. O quanto se gasta em cada função depende de consenso social. A opção de impor sacrifício na maioria das vezes não é técnica e sim juízo de valor sobre área que deseja enfraquecer a responsabilidade pública direta.

Segundo, despesa e receita públicas não são variáveis independentes uma da outra. Ou seja, menos despesa muitas vezes pode levar a menos receita. Tratar como variáveis independentes entre si é não reconhecer por ideologia que o Estado é um agente econômico e julgá-lo mero “sugador” de recursos úteis da economia.

Terceiro, ajuste fiscal é meio e não fim. Logo, deve-se evitar uma visão etapista.  Ajuste fiscal não é etapa inicial, pois em si mesmo é uma busca de eficiência às cegas, não tem visão estratégica nem discute eficácia da política pública. Essas duas dimensões são fundamentais de serem somadas e têm especificidades próprias a serem observadas para que o interesse público seja discutido concretamente.

O diagnóstico não pode ser irresponsável e a recomendação de solução não pode ser demagogia para manipular o desespero das massas. Qualquer solução exige visão estratégica e retirar o Rio de Janeiro desse contexto de isolamento e humilhação federativa. A falácia da neutralidade técnica se explicita. Falência das políticas públicas é mais danosa que qualquer “risco moral”. Estado não é empresa, é coordenador de decisões. Sem isso, é caos. Não se pode oferecer veneno como remédio enquanto busca de eficiência às cegas. Caso contrário, é fazer laboratório de teses com o sofrimento alheio.

Tudo que seus principais inimigos querem é tratar o Rio de Janeiro como contraexemplo para o país, que não se aceite essa infantilização estereotipada. Grifo, seus principais inimigos são quem usa essa retórica. O Rio não é contraexemplo! Ou nacionaliza-se essa crise e defende-se o lugar do Rio de Janeiro na federação ou deixarão seu povo isolado do resto do país, sendo sacrificado e expropriado sem dó enquanto se engalfinha em disputas políticas internas.

Convoco a sociedade a se mobilizar não apenas pela revolta e indignação, mas de forma propositiva. A estrutura de dominação que se está instalando vai muito além do que se pode imaginar. A gestão estadual não é mentirosa quando não cumpre o que promete. O governador é humilhado pela banca financeira e passa vergonha em Brasília. Aí o cerne da luta: defender os interesses fluminenses que o governador e assessores se mostram incapazes de fazer.

Bruno Leonardo Barth Sobral – É economista e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, tendo doutorado pelo Instituto de Economia da Unicamp. Autor do livro: “Metrópole do Rio e Projeto Nacional: uma estratégia de desenvolvimento a partir de complexos e centralidades no território” (Editora Garamond, 2013)

Crédito da foto da página inicial: Tânia Rêgo/Agência Brasil

 

Redação

1 Comentário

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  1. Gostei da aula do professor.

    Gostei da aula do professor. Só que apesar de leigo, posso afirmar com certeza, não se pode falar na falência do Rio sem que se inclua a tragédia chamada lava a jato. É ruim para o país todo, mas para o Rio é o inferno. 

    Moro e sua milícia deveria ter a vergonha de não botar os pés aqui. Persona non grata.

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