Entre o fascismo e nós, só há nós, por Luis Felipe Miguel

Por Luis Felipe Miguel

No blog da Boitempo

Com o golpe de 2016, as condições da disputa política no Brasil entraram em processo de rápida deterioração. A institucionalidade fundada na Constituição dita “cidadã” opera de maneira cada vez mais precária; suas garantias são cada vez mais incertas. A prisão do ex-presidente Lula, após julgamento de exceção, ao arrepio do texto expresso da própria Carta de 1988 e com inequívoca intenção de influenciar no processo eleitoral, simboliza com precisão a situação em que nos encontramos.

Ao mesmo tempo, a violência política aberta se alastra, seja por meio dos agentes do Estado (como mostra a repressão cada vez mais truculenta às manifestações populares e a perseguição aos movimentos sociais), seja contando com sua complacência. Das tentativas de intimidação à expressão de posições à esquerda em espaços públicos ao brutal assassinato da vereadora Marielle Franco (e de seu motorista Anderson Gomes), passando pelos atentados às caravanas de Lula, são muitos os episódios que revelam essa escalada. Há rincões em que o assassinato político nunca deixou de existir – somos um país em que o latifúndio nunca parou de matar lideranças camponesas, por exemplo. Neles, o golpe agravou o quadro, dada a sensação de “porteiras abertas” que o retrocesso no Brasil gera para os mandantes dos crimes. E, nos lugares em que o conflito político apresentava um verniz mais civilizado, regredimos para patamar inferior.

Dissemina-se, no Brasil, uma forma de macartismo. Não há interdição legal ao pensamento de esquerda, mas fomenta-se um ambiente social em que ele não pode ser manifestado. As instituições que deveriam garantir a liberdade de expressão são omissas, quando não coniventes com os abusos. A resposta padrão à exposição de valores democráticos e progressistas, em muitos ambientes reais e virtuais, é uma saraivada de impropérios e ameaças. Acusada de “desviante”, a produção artística enfrenta a ojeriza de setores organizados e com influência sobre o público. Procuradores e juízes põem em xeque a liberdade acadêmica, às vezes sob o comando do Ministério da Educação, em dobradinha com um pretenso “movimento” voltado a impedir o pensamento crítico nas escolas pela mobilização dos preconceitos dos pais. Espaços da mídia alternativa são estrangulados economicamente e sofrem tentativas de censura judicial. Na mídia corporativa, as vozes dissonantes são silenciadas e ridicularizadas. O espaço do debate público é estreitado quase até desaparecer. O vocabulário se entorta na direção do conservadorismo: temos que enfrentar o fantasma da “doutrinação”, burlar o veto à discussão sobre “gênero”, voltar a estabelecer o valor da igualdade, traçar novamente o sentido dos direitos.

a sua versão mais extremada, as forças que se encontram na ofensiva na disputa política no Brasil de hoje namoram com o fascismo. O dissenso é traição; o adversário precisa ser eliminado. As hierarquias sociais não podem ser desafiadas. Qualquer oposição aos mecanismos de dominação vigentes, qualquer insinuação de ameaça à sua reprodução inalterada, é marcada como “desordem” a ser esmagada. A desordem na família, a desordem no trabalho, a desordem na escola, a desordem na cidade – contra elas, a solução é a imposição da força.

Quem nos protegerá do avanço do fascismo? Certamente não a lei, que vigora de forma tão insuficiente e que se encontra nas mãos de pessoas dispostas a compactuar com esse avanço na medida em que colabore para a promoção de seus próprios interesses. Pensemos nos chefes do poderes da República: Michel Temer, Cármen Lúcia, Rodrigo Maia. Será possível dizer que algum deles possui valores ético-políticos de base, que limitem a amplitude de seu oportunismo? Há em qualquer um deles algum apreço pela liberdade, pela justiça, um sentimento estendido de solidariedade, que os coloque decididamente no lado do antifascismo? Os fatos sugerem uma resposta negativa.

O que nos impede de mergulhar no fascismo é que ainda há, na sociedade, uma oposição que faz com que esse mergulho seja custoso. É só a nossa resistência, a nossa recusa cotidiana a ceder sem luta qualquer palmo das nossas liberdades, que poderá nos defender do fascismo.

Luis Felipe Miguel

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. excelente…

    que venham outros textos como este

    pois cabe a nós perceber que o fascismo que se aproxima é 100% totalitário

    ( executivo, legislativo, judiciário e mídia bandida )

  2. por isso, que o grito de guerra de todos…

    seja pacífico, legítimo e uníssono, LulaLivre

    porque é impossível se livrar das garras do fascismo totalitário individualmente

    hoje ele, amanhã qualquer um de nós

  3. vocês podem não acreditar……………………nem ligo

    mas o que se aproxima me deixou perdidão…………………………….

    como se a gritar liberdade, nem que seja para o último tê-la

    ou seja liberdade, nem que seja pela morte

    mas aí não me achei legal, me achei um eu violento ou um eu com corpo sem cabeça

    e quando me encontro assim, um não eu, sempre procuro mentalmente uma saída

    então conversei com alguém que já sofreu o fascismo totalitário até a morte, e Ele, mais do que espiritualmente

    despertou-me no seguinte: melhor e mais forte do que a liberdade é a dignidade humana

  4. Desculpe-me discordar mas
    Desculpe-me discordar mas acho que no Brasil o que temos é muito de “falsismo” e pouco de fascismo. É verdade nossos “falsistas” compartem a mesma “personalidade autoritária” típica e o mesmo recurso em eleger um “bode expiatório” para expressar sua visão simplista e distorcida da realidade. Mas nossos falsistas não formam um movimento de massas, no máximo formam uma claque ou talvez uma torcida organizada, não são nacionalistas, ao contrário possuem uma profunda síndrome de vira-latas, e nem se organizam em partido político com pretensão unitária, estão aquém disso tudo, votam em quem os oligarcas mandar, não desenvolvem traços identitarios, de comum talvez alguns hábitos de consumo, e normalmente não são recrutados em setores marginalizados da sociedade, bem ao contrário, formam a fina flor da sociedade ou aspiram apenas a uma vida folgada financeiramente. São doces escravos ao invés de obreiros desiludidos e desesperados. Nossos falsistas são uma graça bruta, merecem mais nossa pena do que nossa raiva, deveriam ser apenas ou no máximo motivo de piada. Mas infelizmente podem causar tanto mal e destruição quanto fascistas e neofascistas de verdade.

  5. “Verdade, só temos uns aos outros.”

    “Verdade, só temos uns aos outros.”

    Sim, mas somos muitos, somos a maioria do povo brasileiro. Somos dezenas, talvez centenas de milhões de pessoas e que, diferente do que dizem as empresas privadas de comunicação em massa tacitamente cartelizadas, não estamos quietos, não, apenas nosso barulho não passa na TV.

  6. O que impede o fascismo de chegar ao poder…

    O que impede o fascismo de chegar ao poder é que ele não existe mais desde os anos 30, quando da dissolução do Movimento Integralista, o único exemplar de fascismo brasileiro.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador