Estado de direito versus governo dos juízes, por Leonardo Avritzer

 

Estado de direito versus governo dos juízes

por Leonardo Avritzer

O estado de direito é uma das construções mais complexas da modernidade ocidental. Ele foi construído em diversos países, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, ao longo de um largo período, no qual os indivíduos foram se acostumando a ter garantias individuais. Os principais momentos da construção do estado de direito ocorreram na Inglaterra entre os séculos XIII e XVII quando um conjunto de princípios legais foram sendo construídos entre eles …”  to no one deny or delay right or justice”, princípio este que foi entendido como o direito ao julgamento por um júri. É importante entender que este princípio é muito mal aplicado no Brasil a não ser em alguns casos do direito criminal. Sua importância é que provas judiciais têm que convencer cidadãos comuns e não funcionários do estado antes que um indivíduo seja condenado. Em seguida, ainda nos séculos XVI e XVII, foi se estabelecendo o princípio do habeas corpus ainda que seja possível argumentar que, enquanto existiu a escravidão, o habeas corpus foi uma ficção. A contribuição Norte Americana à tradição de estado de direito se deu através de uma das emendas propostas por Lincoln após da guerra civil que criou a chamada “due process clause”, ou a clausula do devido processo legal. Por fim, a tradição alemã sistematizou, ao longo do século XIX, o que hoje entendemos como estado de direito. Alguns teóricos da Escola de Frankfurt, em especial Franz Neuman define o estado de direito de uma maneira mais ampla como uma articulação entre valores democráticos e justiça procedimental. Os valores passam a orientar uma forma de aplicação do direito que está acima do governo e dos juízes.

Entendido desta maneira o estado de direito anda está muito distante de ser aplicado no Brasil. O Brasil teve, historicamente, uma dificuldade muito grande em tornar o direito efetivo e submeter as instituições de governo à plena vigência do direito. Desde 1988, o STF conseguiu se fortalecer como poder, por meio tanto de ações jurídicas quanto políticas. Posicionamentos do STF em relação a direitos, tais como a garantia do acesso à serviços de saúde ou o reconhecimento da ação afirmativa e decisões importantes em relação a violações da lei o tornaram um poder bastante respeitado e com muita legitimidade frente a opinião pública. O julgamento da ação penal 470 tornou o STF o local do combate e da punição da corrupção e reforçou legitimidade, ainda que alguns princípios do direito de defesa tenham começado a ser violados naquele julgamento. Por fim, a própria Procuradoria Geral da República viu aumentada a sua legitimidade devido a sua participação em diversas ações contra a corrupção, desde a ação penal 470, até as ações contra políticos envolvidos na operação Lava Jato, como é o caso do deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados até há um mês atrás. No entanto, é preciso perceber que todas estas ações contra a corrupção que tem um forte apoio da opinião pública, estão quase sempre localizadas nos limites do estado de direito, seja no que diz respeito aos direitos e garantias individuais, seja no que diz respeito à própria obediência à lei. O risco de um processo quase substantivo de combate à corrupção é que, ao invés de ele gerar uma institucionalidade política menos corrupta, o que certamente é mais do que desejável, ele acabe gerando uma casta de membros do sistema policial e jurídico que a todos investiga, mas que se considera acima da lei. Temos indicadores de que caminhamos nessa direção no Brasil. Permitam-me fornecer alguns exemplos.

O primeiro e mais contundente exemplo é o da operação Lava Jato. Não tenho dúvidas que a Lava Jato cumpriu um papel importante no que diz respeito à investigação da corrupção sistêmica na Petrobrás. Ao prender uma série de ex-diretores e recuperar ativos da empresa no exterior, a Lava Jato se firmou na opinião pública e os seus membros ganharam forte legitimidade política e, principalmente mediática. No entanto, a entrada da Lava Jato no campo da investigação política e o uso que ela fez da delação premiada merecem reparos daqueles que prezam garantias individuais. Estou convencido que a forma como a delação premiada opera no Brasil hoje é altamente problemática para o estado de direito, já que membros pertencentes aos corpos político-judiciais do estado negociam a liberdade em troca de informações em relação as quais ele não tem provas e muitas vezes sabem que obtê-las pelas regras do estado de direito é praticamente impossível. Assim, inicia-se um processo no qual pessoas ameaçadas gravam outras pessoas sem o seu conhecimento e ao arrepio da lei, já que não existe autorização judicial para estas gravações e sim um ok de autoridades jurídicas, tais como a Procuradoria Geral da República para que elas sejam realizadas. Por fim, o terceiro elemento destas ações todas ao arrepio do que podemos chamar de devido processo legal são os vazamentos. Eles contrariam a normatividade por meio a qual operam todos estes membros dos corpos jurídicos do STF a Procuradoria Geral da República. Pior, juízes sustentam o segredo de gravações conhecidas por todos os brasileiros quando elas podem servir de ancoragem para a defesa de alguns réus. E, ao mesmo tempo, sustentam a posição contrária no caso de alguns réus. Não tenho dúvida que um processo assim, não tem absolutamente nenhuma relação com a tradição de estado de direito. Ele tem sim a ver com dois outros processos que podemos chamar de supremacia do judiciário e governo dos juízes. Acrescente-se a estes dois processos um terceiro cujo único qualificativo possível de atribuir-lhe é de “bagunça jurídica” quando vemos juízes se posicionando abertamente sobre questões políticas e um revertendo a posição do outro.

Vale a pena analisar quais são as consequências desse processo onde o judiciário deixa de ser parte da tradição do governo misto defendida tanto por Rousseau quanto pelos federalistas, e pretende se tornar abertamente um árbitro imediato de todas as decisões políticas. Dois episódios recentemente ocorridos no Brasil, envolvendo juízes de primeira ou segunda instância mostram o que está em jogo em relação ao estado de direito no país.

O primeira desses casos está relacionado ao juiz Marcel Montalvão de Sergipe que retirou o “whatsapp” do ar. Analisemos a lógica das ações desse juiz para perceber que ela é exatamente a mesma da operação Lava Jato. O juiz, certamente bem intencionado, investigava um caso de formação de quadrilha no estado com fortes suspeitas de envolvimento do PCC. Só havia um problema, ele não tinha provas. Não é difícil traçar um paralelo entre este juiz e Sérgio Moro, da 13ª vara da justiça federa de Curitiba. O juiz Marcel Montalvão agindo tal como Moro, a pedido da Polícia Federal que, como sabemos, tem pouquíssima ou nenhuma capacidade investigativa, procedeu a um pedido de informação de dados privados ao “whatsapp” sob pena de suspensão do serviço. Três coisas chamam a atenção, a operação de uma ideia de justiça substantiva, ou seja, a ideia de que a convicção a respeito do crime justifica quais quer meios, o desprezo por quaisquer garantias individuais ou de livre exercício da atividade econômica. Afinal o “whatsapp” é só um meio de comunicação e não pode ser responsabilizado pelo o que se comunica através dele. E, por fim, uma atitude coercitiva que transmite apenas uma mensagem: qualquer pessoa que se opuser ao poder judiciário no Brasil sofrerá consequências coercitivas independentemente do que está na lei.

Para quem tem dúvidas sobre esta afirmação vale a pena se informar sobre o caso de alguns jornalistas da “Gazeta do Povo” de Curitiba. Os jornalistas realizaram uma matéria sobre salários de magistrados do Paraná que estão acima do teto constitucional. Os dados são públicos, estão no Portal da Transparência e a matéria não contêm nenhum erro factual. Eles nem chegaram a tocar em uma questão fundamental, o número enorme de membros do poder judiciário que recebem acima do teto em função de decisões do mesmo poder judiciário. Eles apenas mostraram que com o conjunto de benefícios indiretos que permeiam os salários do judiciário, hoje quase todos os juízes recebem acima do teto. Também não tocaram no tema que diversas vezes esses benefícios acabam incorporados em aposentadorias. O que se seguiu mostra mais uma vez que os magistrados brasileiros se encontram acima da lei. Um grupo de 30 juízes apresentou ações idênticas em juizados especiais de diversas cidades do Paraná contra os jornalistas. Nas ações em juizados especiais é necessário a presença da pessoa e estes jornalistas passaram as últimas semanas comparecendo em audiências. Esta estratégia é semelhante à usada pela Igreja universal em um caso contra uma jornalista da Folha de São Paulo. Mas, o importante é que ela é utilizada por juízes, isso é, a estratégia da intimidação judicial de jornalistas é parte da ação do poder judicial. No caso do jornalista da Folha, o Supremo se pronunciou, o que parece difícil que ele faça no caso do Paraná. Portanto, mais uma vez chegamos à mesma conclusão: quem se opuser ao poder judiciário sofrerá consequências punitivas independentemente do que está na lei.É isso que caracteriza a supremacia do poder judicial.

O estado de direito é diferente do governo dos juízes por que ele garante procedimentos justos para aqueles que porventura sejam julgados pelo sistema. A tentativa de reduzir a impunidade no Brasil está sendo confundida com o fortalecimento não do estado de direito e sim de juízes que agem arbitrariamente e se consideram acima da lei. Um deles virou herói nacional. O governo dos juízes está em oposição frontal a tradição de governo misto e poderá comprometer de forma radical a democracia e o estado de direito. O papel do judiciário é permanecer como o poder oculto a ser acionado pelos outros poderes nos casos previstos em lei e não se posicionar sobre nomeação de ministros e remover presidentes dos outros poderes judicializando todas as questões políticas e se politizando. Nesse último caso, certamente as garantias individuais e o equilíbrio entre os poderes estarão fortemente ameaçados.

Leonardo Avritzer

3 Comentários

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  1. Acho que o Direito é uma

    Acho que o Direito é uma construção elitista e burguesa para validar suas falcatruas. É só achismo professor.

  2. Moro

    Aquela velha piada enquanto os médico acham que são deuses os juízes tem absoluta certeza em sendo assim tudo podem.

    É dái para pior a não ser que se dê um basta através do legislativo, mas não esse que aí está !!!!!! 

  3. Análise relevante e

    Análise relevante e atual.Destaco a frase a seguir que sintetiza de forma cabal o que ocorre de fato.

    Um dos fatores que impedem avanços é o desinteresse da sociedade pelo tema.

    Neste espaço mesmo, este á assunto pra mais de 100 comentários.

    Uma pena.

    “A tentativa de reduzir a impunidade no Brasil está sendo confundida com o fortalecimento não do estado de direito e sim de juízes que agem arbitrariamente e se consideram acima da lei. Um deles virou herói nacional. O governo dos juízes está em oposição frontal a tradição de governo misto e poderá comprometer de forma radical a democracia e o estado de direito.”

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