ESTADO E MERCADO: A ALMA DO NEGOCIO

Estado vs. mercado: a falsa luta do século

Posted on Maio 18, 2010 by diretodeesquerda

 

Estado vs. mercado: a falsa luta do século

 

Uma ilusão a respeito das democracias contemporâneas que deve ser desfeita o quanto antes é a de que, nos nossos dias, existem apenas duas posições políticas possíveis: a da “esquerda progressista” e a da “direita (neo)liberal”. De um lado, teríamos os progressistas, defensores um Estado forte, controlador do mercado e assentado num nacionalismo popular baseado em samba, futebol, petróleo e tropicalismo. Inspirados por Boaventura de Souza Santos, entre outros, os progressistas apoiariam políticas como as cotas e o Bolsa-família como meio de emancipação social dos miseráveis e das “minorias”, e teriam como objetivo realizar a “autonomia popular” em um “Estado democrático de Direito”, rumo a uma sociedade mais justa etc. De outro lado, os “direitistas” ou “(neo)liberais” a la Roberto Campos, acreditariam que uma sociedade só pode ser justa se for adequadamente regulada pelos princípios do “livre-mercado” e da “livre-iniciativa”, os únicos capazes de garantir a igualdade de todos independente da classe, raça ou pertencimento ou não a uma ordem política particular. A contraposição entre os dois grupos seria algo do tipo Estado e igualdade versus mercado e liberdade. Ou, variando o mesmo tema: igualdade substancial versus igualdade formal, ou democracia versus liberalismo etc. Como exemplo de cada uma das posições, teríamos, de um lado, o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), caracterizado pelas privatizações, pela contenção nos gastos públicos e pela abertura econômica e, de outro, o governo Lula (2003-2010), caracterizado por um intervencionismo neokeynesiano e uma revalorização geral do papel do Estado na sociedade.

 

Todavia, existem lacunas realmente estranhas nas posições assumidas publicamente pela “direita neoliberal” e pela “esquerda progressista”. Tomemos, por exemplo, a questão do Estado. A “esquerda progressista” estilo petista geralmente afirma que a “direita neoliberal” endeusa o mercado que, na realidade, é um espaço regido por interesses egoístas que precisa ser disciplinado por um Estado forte, capaz de realizar o ideal ético da sociedade igualitária. Se o mercado for deixado sem freios, argumentam os progressistas, promoverá o caos social, lançando milhões às ruas, privilegiando o setor financeiro em detrimento do setor produtivo e sucateando o país. O papel da esquerda, portanto, seria o de criar um “colchão social” de verbas públicas para os mais pobres, amainando a barbárie gerada pela iniciativa privada através de programas como o Bolsa Família e o ProUni e, ao mesmo tempo, impondo limites ao sistema para que ele não destrua a si próprio. O “Estado mínimo”, portanto, seria uma política típica da direita, e o Estado forte e indutor do crescimento econômico, uma política característica da esquerda. Contudo, precisamos nos lembrar de que a Ditadura Militar brasileira, certamente um governo de direita e declaradamente anticomunista, foi fomentadora de um grande Estado – em fins da década de 70, cerca de 50% do PIB brasileiro provinha de empresas estatais, grande parte delas criadas pelo Governo Geisel. Como isso se explica? Era Geisel um soviético? Ou o estatismo, por si só, nada tem a ver com a esquerda?

 

Inversamente, a direita liberal afirma que um grande Estado é uma ameaça à liberdade de empresa e ao próprio crescimento econômico capitalista. Mesmo entre os liberais mais “moderados”, como Roberto Campos, há um consenso quanto ao fato de que é preciso realizar um grande corte de gastos nos orçamentos públicos atuais, de modo a criarmos um Estado mínimo e deixar a maior parte dos serviços essenciais nas mãos do mercado, o verdadeiro guardião das liberdades individuais, das quais a livre-iniciativa é o pressuposto mínimo. O argumento, porém, não bate com a realidade: se o Estado é um inimigo dos empresários, por que, então, grandes empresas como a Odebrecht, a Andrade-Gutiérrez, a CSN, a Votorantim, a BrOi, a Perdigão, a Vale do Rio Doce etc. apreciam tanto os investimentos do BNDES em seus negócios privados? E, se o Estado é um elemento típico do socialismo anti-capitalista, por que o país que tem exibido as maiores taxas de crescimento no capitalismo mundial (desde que o gato mudou de cor), a China, tem como característica principal a grande presença de estatais na economia? Nos próprios Estados Unidos, a “Pátria-Mãe” do liberalismo, empresas como a Halliburton e a Blackwater Company dependem muito de verbas públicas para manterem seus lucros, destruindo e reconstruindo países como o Iraque o Afeganistão. Além desses exemplos clássicos, é sempre importante lembrar que a General Motors e as seguradoras Freddie Mac e Fannie Mae, entre outras, terminaram o ano de 2008 como empresas estatais. Longe de desagradar aos empresários que se dizem liberais, portanto, portanto, o Estado mostra-se seu mais fiel cão de guarda, sobretudo quando é “totalitário” ou “intervencionista”.

 

Essas inconsistências revelam que a oposição entre Estado e mercado, assim como a oposição entre a “direita liberal” e a “esquerda progressista” é muito menos evidente do que ambos os lados gostariam de admitir. Na prática, é como se Estado e mercado fossem apenas duas faces da mesma força social, que graças a um truque cenográfico consegue permanecer oculta nos bastidores, de onde comanda o desenvolvimento econômico. Será que a “direita liberal” é contra a atuação do Estado em todas as hipóteses ou apenas quando este realiza distribuição de renda e socialização da propriedade privada? Se realmente o intervencionismo estatal fosse o problema, os Estados Unidos deveriam impor um embargo econômico à China ainda mais severo do que aquele que impõem a Cuba. A China é REALMENTE um país totalitário, que esmaga diariamente a liberdade de empresa, a liberdade de expressão e o direito de ir e vir; estabelece o aborto compulsório, utiliza o trabalho escravo e é governada por um partido único – auto-declarado comunista –  há mais de setenta anos. E como os Estados Unidos, os grandes defensores das liberdades individuais e da economia de mercado, punem o governo chinês? Tornando a China seu segundo maior parceiro comercial! A esse respeito, mesmo a direita das direitas mundiais, o Partido Republicano, deve se calar: foi Richard Nixon o primeiro presidente americano a reconhecer o governo chinês como legítimo, ao visitar Pequim em 1972.

 

Da mesma maneira, será que a “esquerda progressista”, com suas políticas redistribuidoras de renda, pretende salvar a humanidade do capitalismo ou salvar o capitalismo de si mesmo? O Bolsa-Família, os gastos com infraestrutura realizados através do PAC e os investimentos em hotéis, hidrelétricas e metrôs feitos pelo Governo Lula em toda a América Latina são iniciativas “populares” ou apenas a boa e velha criação de mercados keynesiana, do tipo que Roosevelt, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel souberam tão bem fazer? Um exemplo que deve ser bastante ilustrativo é o programa “Minha Casa Minha Vida”, lançado pelo Governo Lula em 2009 (durante o Forum Social Mundial) como um grande avanço para a habitação popular. A proposta inicial era a construção de 1 milhão de unidades habitacionais através do financiamento público: 40% das casas seriam para a população que ganha entre 0 e 3 salários mínimos, 40% para a faixa entre 3 e 6 salários mínimos e 20% para a faixa entre 6 e 10 salários. Contudo, o déficit habitacional brasileiro é de 7,2 milhões de unidades, das quais cerca de 5,5 milhões atingem a população que ganha entre 0 e 3 salários mínimos. Assim, o verdadeiro problema da moradia não foi nem de perto sanado – menos de 10% das famílias miseráveis poderão morar em casas de 32(trinta e dois!) metros quadrados, projetadas pelas grandes empreiteiras, que morderão, com consideráveis lucros, 97% dos 34 bilhões de reais destinados ao programa. Os outros 60% das moradias, que atenderão à famosa “classe C”, não são propriamente uma novidade: o último ditador militar brasileiro, João Batista Figueiredo, construiu cerca de 3 milhões de casas “populares”  entre 79 e 85, que no fim das contas acabaram destinadas quase exclusivamente à classe média, em meio a inúmeras denúncias de corrupção e má-gestão do dinheiro público.

 

A ascensão dessa “nova classe C” à sociedade de consumo, aliás, longe de ser uma política emancipadora em relação à barbárie que o capitalismo provoca por toda parte, se mostra apenas uma política de inclusão de ex-miseráveis no circuito da produção capitalista, como consumidores de produtos que as empresas precisamvender. Não é a toa que o Brasil é um dos queridinhos do mundo pós-crise: seu mercado consumidor não pára de crescer (com base, é claro, em um intenso endividamento privado). Enquanto o mercado automobilístico entrava em uma crise quase terminal nos Estados Unidos e na Europa, o presidente da Volkswagen do Brasil (outra grande aliada de Geisel, aliás), saudava o Governo Lula e previa a venda de 3 milhões de veículos da marca até 2012, ao lado de mais 5 ou 6 milhões de carros postos em circulação pelas suas concorrentes. O presidente do Bradesco, senhor Trabuco Cappi, diz que Lula promoveu uma “revolução silenciosa”, ao transformar os pobres em consumidores. O banco, antevendo no Brasil lulista um surto de crescimento “semelhante ao dos EUA nas primeiras décadas do século XX”, não hesitou em abrir uma agência em Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo.

 

É claro que essa bolha de crescimento não vai durar para sempre: a crise que se arrasta cada vez mais sombria pela Europa e pelos Estados Unidos, provocando desemprego, depressão, miséria e o conseqüente ressurgimento de propostas fascistas – leis anti-imigração etc. – teve origem em um surto de crescimento semelhante. Os consumidores “subprime” norte-americanos, apontados como bodes expiatórios da crise de 2008 pelos financistas, não eram nada além da classe C criada dos Estados Unidos, isto é, pessoas que trabalham 10 horas por dia sem direitos trabalhistas, não têm acesso às universidades e a um serviço de saúde pública adequada, mas que têm um carro zero e uma TV de plasma na parede de casa. A “classe C”, embora deseje e precise, não pode consumir saúde, educação e lazer, mas cerveja, carros e futebol, já que seu presente e futuro estão submetidos ao lucro das empresas.

 

Desse modo, precisamos superar as idéias ultrapassadas de “Estado” e “mercado” como esferas independentes e autônomas, que se contrapõem em busca de serem uma o complemento ético da outra. Na verdade, como ensina o bom e velho materialismo histórico-dialético, Estado e mercado são apenas os fenômenos visíveis da dominação de uma classe que se beneficia de ambas as esferas: a burguesia. O Estado funciona como um grande mecanismo de extração de impostos das classes mais baixas – trabalhadores informais e assalariados, profissionais liberais, servidores públicos, pequenos agricultores e pequenos empresários – e financiamento das grandes atividades produtivas, controladas por uma classe de figurinhas bem conhecidas – metade delas escreve na página 2 da Folha de São Paulo. Quando esse Estado cresce demais e fortalece as classes intermediárias, que se aliam às mais baixas na exigência de maior democracia e direitos sociais, a classe burguesa passa a exigir “cortes nos gastos” e a acusar as demais classes de quererem promover um “totalitarismo”. De fato, isso se explica pela evidência de que à burguesia não basta dominar; é preciso dominar cada vez mais, pois a competitividade do capital não permite vacilos (afinal, a China está na frente não apesar do trabalho escravo, mas justamente por causa dele…). Portanto, não basta que a maior parte dos recursos públicos seja destinada ao pagamento da dívida que o governo tem com os bancos; é preciso cortar ainda mais, retirar ainda mais verbas da saúde e da educação, e a justificativa, como sempre, é a de que “não há almoço grátis”.

 

Aqui, a hoje controversa categoria marxista de luta de classes é capaz de desfazer as distorções liberais e keynesianas a respeito do processo histórico. A alternância de poder entre “liberais” e “progressistas” na gestão do Estado de maneira alguma é um processo infinito, que persistirá indefinidamente sem qualquer contratempo. A burguesia, já ensinava Leão Trotsky, não governa sozinha, mas precisa de aliados, que podem ser encontrados tanto na social-democracia quanto no fascismo. Em tempos de estabilização econômica e cooperação dos dirigentes operários e pequeno-burgueses (representantes da classe média) com a ala mais “avançada” da burguesia, a social-democracia torna-se o melhor governo para o capital, pois une patrões e operários com o objetivo comum de manter a exploração capitalista, mas de maneira atenuada. É nesse período que crescem os salários, os mercados consumidores e, com eles, a própria produção capitalista, conforme ocorreu na Alemanha de Weimar ou no New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Durante essa época, e somente durante ela, a social-democracia pode disputar sua hegemonia política em eleições pacíficas, tendo como oponentes sérios apenas partidos burgueses liberais ou democratas-cristãos. Nessas condições, os fascistas são marginalizados pelo discurso político dominante, como mostravam, até quinze anos atrás, os retumbantes fracassos eleitorais de Jean-Marie Le Pen na França, Haider na Áustria e do Israel Beitenu.

 

Contudo, conforme a crise econômica e a desilusão com a atuação social-democrata afastam os trabalhadores de seus dirigentes “progressistas”, levando-os à radicalização do discurso em direção ao socialismo, a burguesia volta a pôr em pauta a opção fascista. Procura e logo obtém o apoio dos antigos marginalizados, a classe média reacionária receosa de perder o pouco que conquistou durante os anos de crescimento econômico. Com sua ajuda, a burguesia cria partidos de massa e pelotões da morte da noite para o dia e, se não for derrotada pela revolução socialista, promove a destruição da ordem liberal-democrática, a dissolução do parlamento, a intervenção nos sindicatos e a suspensão dos direitos e garantias fundamentais, com eliminação física e política dos oponentes, estacionando a humanidade em mais uma era de obscurantismo e destruição.

 

Dessa maneira, enquanto Serra e Dilma consideram os problemas sociais brasileiros resolvidos pelo crescimento econômico capitalista e navegam nas águas calmas dos 83% de aprovação de Lula, com a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 à vista; enquanto Eros Grau vota contra a revisão da lei de anistia alegando um “acordo político” da sociedade e enquanto o Valor Econômico elogia diariamente a estabilidade democrática brasileira, surge uma forte ilusão de que esse clima de paz e amor (apesar dos 50 mil assassinados por ano) permanecerá para sempre em terras tupiniquins. É por conta desse triunfalismo que o principal blogueiro progressista, Luís Nassif, dedica quase tanto espaço em seu blog à postagem de músicas e manifestações culturais quanto à publicação de notícias e análises políticas, e é por isso que Lula afirma que “não há candidatos da direita nessas eleições”. Contudo, a história se desenrola em vários níveis e, no mais profundo, o do ventre da produção capitalista, gesta-se a crise que em algum momento porá abaixo tamanha estabilidade. Os socialistas devemos ter a clareza de que somente aí nosso inimigo dará as caras. A opção pelo socialismo em 2010, portanto, não é apenas uma oposição a Dilma e Serra, mas também ao lado oculto e bestial do grande crescimento econômico que os engendra, que somente se apresentará completamente daqui a dez ou vinte anos.

Redação

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