Eternidade, duração e esquecimento – o pesadelo dos arquivos vivos e mortos

No arquivo dos vivos o conhecimento individualizado era um trabalho em progresso realizado de maneira automática. No arquivo dos mortos absolutamente nada poderia ser esquecido ou acrescentado em cada ficha.

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Eternidade, duração e esquecimento – o pesadelo dos arquivos vivos e mortos

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Essa noite eu tive um pesadelo extremamente elaborado, cujo roteiro é muito simples.

“Por razões que ignoro herdei uma loja. Mas nela não existem mercadorias, apenas pilhas e mais pilhas de documentos que precisam ser organizados e reorganizados constantemente de forma a possibilitar a rápida localização das informações que as pessoas encomendavam.

Várias pessoas trabalham no local. A minha rotina da maioria delas é circular entre as pilhas de documentos para garantir que elas não sejam derrubadas. Apenas eu e uma outra pessoa podem movimentar os documentos para consultá-los ou colocá-los em ordem.

Rapidamente percebi que minha obrigação poderia ser diferente da dela.

Minha sócia, era assim que ela gostava de ser chamada, era precisa e perversa como uma máquina. Quando alguém fazia uma encomenda ela se punha a trabalhar de maneira incansável. Se não fosse interrompida, ela rapidamente conseguiria reorganizar todo o arquivo em apenas alguns dias para poder localizar a informação desejada.

A minha função era semelhante à dela. Quando chegava na loja eu recebia um relatório sobre a natureza da encomenda e o método empregado para movimentar as fichas de documentos entre as pilhas. Minha sócia ia embora e eu continuava o que estava sendo feito até ela retornar.

Um dia fiquei sabendo que os compradores de informações podiam usá-las para prejudicar as pessoas. Então eu decidi fazer algo em segredo. A partir daquele dia eu passaria a sabotar o trabalho da minha sócia com ajuda de um amanuense que foi recrutado em virtude de ser maltratado por ela.

Sempre que minha sócia estava quase conseguindo obter a informação que seria traficada eu era avisado. Após substituí-la, eu perturbava de maneira indelével e imperceptível a organização dos documentos. O resultado final não poderia ser outro. Como a informação desejada não seria localizada todo o arquivo teria que ser revisto e reorganizado. E então eu poderia provocar uma nova perturbação impedindo a localização da ficha procurada.

As vezes, quando era substituída, minha sócia se despedia de todos com um sorriso intrigante que poderia ser interpretado ou não como uma sutil demonstração de cumplicidade. Ela sabia o que eu estava realmente fazendo?

Perturbar a organização aquele universo ilimitado de informações era fundamental. Caso contrário, a circulação externa delas poderia provocar danos terríveis as pessoas fichadas. Especialmente porque todos, sem exceção, eram registrados. Cada nascimento gerava uma ficha. Tudo o que as pessoas faziam ou desejavam fazer era automaticamente registrado nas fichas delas.

No arquivo dos vivos o conhecimento individualizado era um trabalho em progresso realizado de maneira automática. No arquivo dos mortos absolutamente nada poderia ser esquecido ou acrescentado em cada ficha. Como o esquecimento não era uma possibilidade, a preservação das pessoas somente poderia ser obtida através do sigilo.

O trabalho da minha sócia era localizar e vazar qualquer informação que tivesse sido encomendada. Concentrada em seu trabalho, ela não se importava com o dano que poderia causar. O meu trabalho era preservar o sigilo impedindo que as pessoas fossem prejudicadas em razão da circulação de informações que não precisavam vir a público.

A eternidade é diferente da duração. Tudo que perdura tem um início e um fim. Meu trabalho e o da minha sócia estava condenado a recomeçar sempre para que nunca pudesse ser terminado.”

Acordei muito abalado. Nunca havia tido um pesadelo tão terrível. No sonho eu havia sido levado a acreditar que estava beneficiando as pessoas impedindo a circulação de informações. Entretanto, se as informações pudessem ser usadas para ajudá-las eu estava prejudicando desconhecidos ao atrapalhar o trabalho da minha sócia. E como ela nada fazia para me impedir de continuar sabotando o arquivo nós dois estavamos fazendo a mesma coisa, mas apenas ela tinha consciência disso.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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