Fábricas de desajustados (texto atrasado para o dia das crianças)

Passo o domingo preguiçosamente. Me propus não entrar no Fakebook, para evitar maior desgaste (é preciso um dia de descanso na batalha), e aproveitei a rede na casa da namorada para responder ao e-mail de um ex-colega da faculdade, um dos meus grandes amigos até hoje, que reside na Colômbia, onde mora com o marido (e o namorado de ambos). Sim, estou sempre na antepenúltima moda comunicacional: quando todos trocavam e-mail, eu escrevia cartas (parei apenas em 2010 com esse hábito); agora que todos mandam mensagens breves por Fakebook ou Whatsapp, troco e-mails (com a temporalidade de cartas, ainda por cima). Enfim, no e-mail me sinto quase Chico Buarque em “Meu caro amigo”, sem querer atiçar as saudades de meu amigo, ao menos não por esta terra, onde ele correria perigo, ainda mais, nos dias atuais – porque a saudade dele segue, e sei que a recíproca é verdadeira.
Enquanto escrevo, minha namorada e seu filho jogam o videogame que ele recém ganhou. O garoto tem oito anos, um pai que dá as caras (quando dá) a cada quinze dias, e serve apenas para prejudicar a educação filho, conforme queixa da mãe (e olha que ele sequer é dos piores, não só não aderiu ao fascismo como vota na esquerda), que eu mesmo já conferi – como o medo exagerado dele por certas situações, após ter assistido a um filme inapropriado para sua idade, para não falar do exemplo que o garoto acaba tendo. Não ajuda, e ainda atrapalha – como sói acontecer com tantos pais (ausentes ou presentes). Assim como outras mulheres, minha namorada ficou indignada ao ser acusada pelo general Mourão, candidato a vice presidente na chapa de Bolsonaro, de que, a despeito de todo seu esforço, dedicação e abnegação, estaria criando um desajustado. A indignação é justa, e a fala do general mostra bem a percepção que a chapa de Bolsonaro possui da presença feminina e seu papel na sociedade: a mulher, cuja função primordial seria a de criar os filhos e viver para a família, é de uma incompetência tamanha que nem isso sabe fazer, se não estiver sob a tutela de um homem. E pior que sei de mães solteiras de filhos negros que votam no fascista.
Mas ao ver a educação/formação que meu enteado recebe, e pensando também na de filhos de muitas amigas minhas (que os criam sozinhos ou com a presença ativa do pai, estejam casados ou não), alguém como general Mourão, como Bolsonaro dizer que fabricam desajustados não deixa de ser um elogio. O que seria uma pessoa ajustada, dentro da ótima desses neofascistas?
Ajustado seria aquela pessoa que não questiona, que não tem interesse real pelo mundo e pela vida; a pessoa adestrada feito um camundongo de laboratório, que aceita tudo, diz sempre sim; incapaz de refletir, incapaz de pensar, incapaz de sentir por conta própria – o mais profundo que alguém ajustado ao neofascismo conseguiria chegar seria um kitsch de segunda classe (conforme Kundera sintetizou o kitsch). Por isso o ajustado a Bolsonaro (como ele próprio) ama a morte: porque no fundo sabe, sente (mas precisa reprimir) que não vive de verdade, conforme seus desejos e seus anseios, que apenas segue a boiada, imita o que dizem que é bom, persegue objetivos que dizem que é bom, teme um deus que dizem que é bom (e nem nota a contradição), tenta ser alguém que dizem ser o bom – o cidadão de bem. O ajustado ao fascismo é alguém pobre de repertório, apto para acreditar em qualquer mentira, a seguir qualquer medíocre com o qual se identifique – Galvão Bueno ou Bolsonaro -, porque é alguém sem auto-estima, e reconhece o valor que essa sociedade ajustada de Bolsonaro e Mourão lhe dá: nenhum.
Às mulheres que criam seus filhos sozinhas, e aos pais que criam seus filhos em conjunto, minha sugestão, meu pedido: sejam fábricas de desajustados, de Mafaldas e Calvins (para usar meus heróis nos quadrinhos), de crianças que preferem aprender a pintar a atirar, que saibam amar e não odiar,  que toda forma de amor é válida, que tenham autonomia para dizer sim e não, e arcar com as consequências, se preciso, sem se esconderem covardemente sob a sombra de um líder de qualquer espécie; que se tornem independentes não porque pagarão suas contas, mas porque pensam (desde cedo) com a própria cabeça a partir de conhecimentos sólidos e experiências de vida ricas. Desajustados que experimentam, que vivem seus afetos sem preconceitos e com liberdade responsável. Desajustados que questionem tudo e todos, sem se apegarem desesperadamente a qualquer verdade pretensamente unificante e salvadora; que enfrentem com respeito as autoridades, os costumes, a moral e os costumes (em especial os bons), que respeitem as diferenças – mas sejam intolerantes diante do intolerável, a tortura, o racismo, o preconceito, o xenofobia, a misoginia, a miséria, a fome, o desrespeito aos direitos humanos. Desajustados que façam do Brasil um lugar onde ajustados com, ajustados como Bolsonaro, Mourão e seu séquito fascista sejam apenas fragmentos de um pesadelo que não se concretizou. Desajustados que façam o mundo todo caminhar para um lugar melhor – para si e para todos.

14 de outubro de 2018

Redação

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