Filósofos da marginal, por Shellah Avellar

Este conto, na categoria Lenda Urbana, ficou dentre os 10 selecionados de 600 trabalhos do Departamento de Letras, do Núcleo de Estudos Linguísticos da FURB

do Blog Sensorion

Filósofos da marginal

por Shellah Avellar

Eram 10 horas da manhã de um sábado ensolarado.

E então, partimos, os quatro cavaleiros apocalípticos em sua jornada mítica em busca de nosso herói de cada dia.

Desafiando a carga da semana que trazíamos nas costas, desfilamos a pé pelas entranhas da Paulicéia.

Pelas calçadas múltiplas adormeciam embolados sob cobertas improvisadas, panos e mantas rotas-os invisíveis- homens, mulheres e crianças que sonhavam a sono solto em pleno dia, num repasto de reis, posto que recolhiam da vida suas últimas gramas.

Como num trem-fantasma, silenciosos, prosseguíamos em nossa cavalgada a pé, como observadores privilegiados das misérias humanas, num retrato sem retoques.

Tentamos o Terraço Itália, sem sucesso, num átimo de fugir do rés do chão e ampliar a perspectiva para tornar microscópica aquela dura realidade.

Nos distraímos com a majestade das velhas construções revitalizadas e evocamos o espaço dos apartamentos e seus pés direitos quase imperiais, comparando às ínfimas caixas de fósforo em que hoje nos amontoamos, imposição da moderna engenharia urbana.

O ir e vir dos cidadãos se atropelando para consumir os preços módicos do comércio do centro, atrasou nossos passos. Enfim, o Teatro Municipal, o Viaduto do chá e tudo parecia simples e corriqueiro.

De repente, o coração sonhava, atraído pelos arranhados toscos de um violino ao longe.Um homem, sentado num caixote, com um chapéu no chão, onde descansava algumas parcas moedas.

A imagem se precipita na paisagem corriqueira. Paramos. Seu nome? José Rosa, que paradoxo. Num cenário de vida tão cinzento a nossos olhos desavisados- lá está ele: José Rosa,80 anos. Abre um sorriso que ilumina qualquer desesperança.

Desata numa prosa simpática, floreada de rompantes filosóficos a invejar qualquer simples mortal.

José Rosa se destaca. Desandou a falar de sua vida: “Enviuvei duas vezes”.

Hoje, mora, de favor, numa Kombi velha estacionada no estacionamento de um de seus dez filhos que botou no mundo para cirandar a vida.

Os olhos brilhantes de um ancião cuja sabedoria foi garimpada nos tempos de “carreto humano” hoje substituído pelos instrumentos musicais por conta do peso dos oitenta anos. Autodidata, aprendeu a tocar violão, acordeão e violino. Marqueteiro por excelência, astuto como ele só, percebeu na excentricidade do instrumento o violino o diferencial nas ruas, para chamar a atenção dos transeuntes, já viciados nos sons dos violeiros da cidade.

A alegria no seu semblante, intriga a todos nós. Ele reforça:” A música é divina- a alegria diária da ausência de revolta, da aceitação da própria condição, traz a paz. O sofrimento é objeto de nossa relação com o conhecimento. A resignação com a própria condição faz o coração se aquietar.”

Envergonhados nos despedimos e continuamos nossa jornada, com um gosto de saudade daqueles olhos feiticeiros do José Rosa, que nos embebedou com o suave licor da cana daquele moinho de energia.

Alcançamos a Praça da Sé e um pregador da Igreja Pentecostal, entre outros oito pregadores, nos fez estancar por ali.

Francisco Alves, de terno cinza e gravata azul marinho. Bíblia na mão, dedo em riste, caminha em círculos, vociferando os versículos e salmos com uma convicção inabalável.

O que parecia mais um daqueles cegos fanáticos, nos surpreende ao discorrer sobre Política, Mídia e os Illuminati.

Chegamos mais perto e Alves nos conta de sua vida. Mora na Vila Nova Cachoeirinha e sai para pregar a palavra na Sé aos sábados. Novo, por volta dos 30 anos, trabalha como porteiro em alguns prédios e é separado da mulher e filhos.

Sua verborragia nos intriga. Há uma lucidez em seu discurso “hipnótico”….

É um daqueles oradores que catalisam  seu público. Faz da calçada seu púlpito e da bíblia sua batuta, qual maestro exímio, orquestra os passantes num banho harmonioso de fala e busca por coerência. Olhar vivo e penetrante, apesar da baixa estatura ele se destaca e discorre seguro sua argumentação.

Sob a égide de dos parâmetros da Igreja Pentecostal, ele se derrama ao exibir seus conhecimentos de informática, YouTube outras redes sociais, que embasam o testemunho sobre as verdades que acredita e prega.

Mas, particularmente, a mim, interessa seus eflúvios sobre os Illuminati, sociedade secreta da era do iluminismo, hoje referência de uma suposta Organização Conspiratória. O estabelecimento de uma nova ordem mundial, que controlaria os assuntos universais com o objetivo de unir o mundo em uma única regência que se baseia em um modelo político onde todos são iguais.

 Sou abalroada por pensamentos e sensações desencontradas e vislumbro o Alves, em veste de linho branco, descalço pelos pavimentos da Sé. E o som de sua voz, dá lugar às pítias e outros gregos do Oráculo de Delfos,que desfilam em minha visão onírica- Filósofos da Marginal – Rosa, através do seu violino. Alves através de sua “pretensa” crença.

Ambos portam “muletas” a justificar nossa jornada mítica do herói.

Não foi em vão. Rosa e Alves, nos salvaram da mesmice dos sábados paulistanos e nos transportaram para lugares inimagináveis.

Arrancaram à fórceps, qualquer preconceito ou estereótipo cristalizado em nossas células que explodiriam num tsunami de emoções desenfreadas.

A partir dali nada mais fazia sentido em nossa caminhada.

O nosso periscópio congelou na imagem “entusiasmada” de nossos sábios urbanos.

Entramos na Catedral da Sé, em busca de algum vestígio ou fagulhas daqueles olhares incandescentes.

Tateamos pelos jardins do Pátio do Colégio em busca de nossa salvação.

Batemos o sino várias vezes para nos lembrar da nossa inocência do passado em que a fé se acendia nas velas das procissões do santíssimo.

A fome bateu e nos valemos de São Jorge e tentamos nos anestesiar na cerveja original, daquela estranha filosofia que nos contaminou. E, seguimos, rumo à estação da Luz, ainda esperançosos de que lá encontraríamos algo que superasse o impacto daqueles encontros inusitados.

Descansamos um pouco no Parque, tentando nos maravilhar com as esculturas bizarras que se esparramaram pelos jardins.

E, desalentados e exaustos, voltamos para casa.

Não éramos mais os mesmos. As partituras de um violino perdido na multidão esvoaçavam em nossas mentes.

O farfalhar seco das folhas amareladas de uma bíblia gasta, estalava em nossos ouvidos como um bate-estacas.

Nascia um rio, em nossos corações, de uma hidrografia incomensurável, regada a sangue, suor e lágrimas, congelando as nossas veias e desencadeando em nós um céu de arco-íris em tons cinzentos, pelas lembranças dos filósofos da marginal e das armaduras que criaram para se proteger da morte e das profecias que anunciavam.

E, que, ao que tudo consta, estão “prestes” a se realizar.


O CONTO FILÓSOFOS DA MARGINAL, NA CATEGORIA LENDA URBANA, FICOU DENTRE OS 10 SELECIONADOS DE 600 TRABALHOS DO DEPARTAMENTO DE LETRAS, DO NÚCLEO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS (NEL) DA FURB (FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BLUMENAU), SANTA CATARINA.

O TRABALHO CONTOU COM 42 AVALIADORES (38 deles Professores Universitários).

Redação

12 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Muito bom e interessante para refletir, adorei a crônica da “Marginal”, descrição realmente muito poética da realidade em um siter na Cidade Grande, muito legal, parabéns pela boa literatura filosófica, um grande abraço

    1. Kerido Dirceu!OS INVISÍVEIS são sempre surpreendentes.Infelizmente,positivamente para nós e não para eles.
      Ao dar ouvidos a alguns que encontro pelo caminho,sempre saio fortalecida e aprendo muito.Como diria Exupéry,”o essencial é invisível para os olhos”.Abs kósmikos!#oAmorSIM

  2. Li, e me vi caminhando pela Paulicéia nos fins de semana onde o povo se amontoa pela região da Paulista em busca de lazer, mas pouco observa sobre os seus iguais. Gostei muito. E o narrador parece mesmo você se deleitando com o inusitado que surge do asfalto. Continue. Escreva. Sempre. Abraço querida.

    1. Kerida Hira!Sua opinião é muito importante pq sei k vc é uma “devoradora” de livros.Grata pelo mimo.Só para esclarecer ,a região citada não é nos arredores da Avenida Paulista e sim do centro histórico de São Paulo.bjkas kósmikas!

  3. Imagino os outros… mas tá valendo…
    Perdoem a minha grosseria, mas sou vacinado em concursos literários. Já vi muita coisa boa ser descartada por mero capricho dos avaliadores…

    1. Karo,Roberto Monteiro!Em primeiro lugar,muito prazer.Grata por ter se dado ao trabalho de comentar poraki. Creio que os outros deverão estar disponíveis a partir do dia 30 de outubro no site da FURB. Embora eu não tenha entendido se vc gostou ou não do texto,uma vez que está mais preocupado com os critérios de avaliação,do que com o texto em si.Já tenho outros textos publicados aqui no GGN,que não foram concursados.Estou muito feliz com este teor, por conta de estar afinado com a situação política vigente no país e no mundo.E,principalmente por ter um texto selecionado por catedráticos e profissionais de literatura de uma Instituição séria como a FURB. Mais ainda, por fazer parte dos 10, entre os 600,que vc tem razão..devem ser extremamente superiores em qualidade literária.E, pela gentileza do JORNAL GGN ao abrir este espaço para publicá-lo, para que eu possa ter a oportunidade de dialogar com pessoas que desconheço,mas ,que certamente,se é um leitor do GGN, já teremos um ponto positivo em comum,para iniciar um debate,ao vivo e em cores..Boralá em frente!#oAmorSIM

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador