Entrevista a Renato de Moraes e João Marcos Coelho
Não se vê poeira sobre os milhares de livros que ocupam o pequeno e organizado ambiente que serve de biblioteca e sala de trabalho para o sociólogo Florestan Fernandes em sua casa. E não se trata de extremo zelo seu ou de asseio da empregada. Ele mesmo conta que uma momentânea desorganização dos títulos se deve à uma única intromissão desta durante sua recente ausência – de janeiro a maio últimos esteve lecionando mais uma vez na Universidade de Toronto. “Faço isso somente quando meu orçamento entra em crise”. A falta de poeira, concluo, é sinal portanto da febril atividade do ocupante que insiste num ponto: os cientistas e intelectuais dos país devem desenvolver seu talento, por menor que ele seja e enfrentar as dificuldades, por maiores que elas sejam, aqui. Aos 57 anos, aposentado compulsoriamente de sua atividade de professor da USP desde 69 e às vésperas de ter lançado seu vigésimo livro. Florestan jamais abandona o vigor das idéias, pensamentos e opiniões, de resto uma característica de sua obra. Espécie de mentor de um ativo grupo de sociólogos (Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Luiz Pereira, Francisco Weffort, entre outros), ele só mudou de tom em três momentos do nosso encontro: ao tecer uma fina ironia a respeito dos recentes movimentos estudantis (“Ah! Quer dizer que os pais já estão deixando seus filhos voltar a fazer revolução no campus?”), ao servir prazerosamente batidas por ele próprio preparadas e no final, ao portão, indagando: “Será que saiu como vocês pretendiam? Se não saiu, a culpa é de vocês que não perguntaram o que deviam perguntar”.
Seu único lamento: a restrita vida social a que se impôs, sem saber bem porque. Coisas de sociólogo.
RM – Coincidência ou não, fatos desencadeados nos últimos dias colocaram o cientista na pauta do dia. Que papel o senhor define para ele dentro da sociedade de hoje?
FF –
JMC – Como o senhor, que teve uma participação atuante nos anos 50 e 60, vê seu, digamos, processo de marginalização nesta década?
FF –
RM – Seria este na sua opinião o traço essencial da relação que se estabeleceu entre o intelectual e a revolução de 64?
FF – Ao mesmo tempo em que houve intelectuais que enfrentaram as perspectivas de aparecimento de um regime de exceção, houve por outro lado muitos intelectuais que disfarçadamente ou abertamente colaboraram para sua implantação. A frase famosa “sem teoria revolucionária não há revolução”, pode-se contrapor que “sem teoria contra-revolucionária não há contra-revolução”. Em média, os intelectuais falharam porque não ofereceram a resistência que deles se esperaria ante um regime de força. E sem muitas chances de desculpas: surgiram muitas oportunidades de lutar entre 64 e 68 e de 68 até 77. Todavia, ou elas foram perdidas ou mal aproveitadas.
JMC – Há quem se justifique afirmando que é preferível fazer um meio trabalho dentro da Universidade do que ser obrigado a sair dela por posturas mais radicais.
FF –
RM – Tal situação seria um sinal de que os tempos definitivamente mudaram?
FF –
JMC – A Universidade e os universitários, parecem estar sendo progressivamente impregnados pelo tecnicismo em detrimento da autêntica atuação…
FF – Uma grande parte dos que se formaram no Exterior, especialmente em ciências sociais, foi educada e treinada segundo a filosofia da “neutralidade ética”. Por essa razão atuam como se fossem cientistas de laboratório, acham que não se devem comprometer e que o trabalho deve ser, em essência, objetivo. E é uma massa que foi educada nos Estados Unidos e na Europa para se comportar assim, valorizar um erro que considero primário. Weber, que era um liberal, não um radical ou um revolucionário, dizia que o cientista não deve se confundir com o propagandista, mas também dizia que a ciência é incompatível com a irresponsabilidade. Como ser indiferente às bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki ou aos desrespeitos aos direitos humanos? Desde que se sabe que as descobertas feitas na área da pesquisa nuclear envolvem riscos muito graves para a humanidade e para o equilíbrio da vida, alterou-se profundamente a atitude do cientista de laboratório em relação ao uso prático da ciência, distinta, pois, da antiga ética liberal.
JMC – Falando em liberalismo: o senhor acha possível e defensável uma posição liberal no país, atualmente?
FF –
RM – O senhor se referiu à sua geração, formada sob o Estado Novo e à geração recente formada sob 64 e 68. Que paralelo se poderia estabelecer entre estes dois períodos de exceção?
FF –
RM – Temor a um pretenso populismo?
FF – Não seria bem ao populismo, cujo conceito, aliás, tem sido mal empregado. Nós nunca tivemos populismo, o que tivemos foi uma demagogia que manipulava as massas populares que passou a ser descrita por este termo. O temor, na verdade, é de sair de uma democracia restrita para uma democracia ampliada na qual, naturalmente, as minorias elitistas perderiam o monopólio do poder. Para preservá-lo, usam como subterfúgio o risco de uma propalada subversão comunista ou de uma tomada do poder pelas massas, coisas que não se concretizaram. Senão as coisas teriam tomado outros rumos que os verificados em 64. Voltando ao populismo, no Brasil jamais tivemos uma eclosão de um movimento popular autêntico com lideranças nascidas das classes populares. No máximo, líderes conservadores como Getúlio, João Goulart, Jânio Quadros, Juscelino e Adhemar de Barros, alguns até pessoas muito ricas que lançavam mão da demagogia, capaz de atrair o apoio popular. Resultava uma espécie de tentativa de barganha política, algumas concessões em troca do apoio de massa. Até o movimento em que a pressão popular pareceu ameaçar as classes conservadoras, quando se alterou o comportamento e se suprimiu o demagogo e sua função. Os que se aventuraram mais acabaram ou se suicidando, ou renunciando, ou fugindo do país ou traindo o pacto demagógico. Realmente, a demagogia aqui sempre foi um instrumental para a dominação burguesa e para o comportamento conservador de outro lado, as massas nunca conseguiram condições de formar suas próprias lideranças e meios de ação. Mesmo o PTB nunca deixou de ser um partido de manipulação das massas populares por políticos de classes média e alta.
RM – O “milagre econômico” se situaria dentro dessa linhagem demagógica?
FF –
RM – Compara-se muito o momento atual com o que se viveu em 68. Na sua opinião, quais seriam as semelhanças entre eles?
FF –
RM – Mas alguns indícios deixam perceber esta preocupação de abrangência nas movimentações atuais?
FF – Atualmente, os movimentos estão saindo de onde praticamente eles sempre saíram. Na história brasileira, as massas geralmente apoiam as ações das elites – neste momento começando uma nova oposição ao governo. Embora eu não saiba determinar a profundidade desta cisão, a verdade é que ela existe na medida que áreas revelam-se insatisfeitas com a política econômica do governo, com o crescimento da empresa estatal e neste sentido muito vinculadas com a pressão que as grandes corporações fazem contra este crescimento. Então, não há dúvida que por aí circulam uma porção de elementos em efervescência que podem dar margem a movimentos de oposição. Até agora, porém, o governo não parece ter perdido apoio da sociedade civil. O conflito restringe-se ao desejo de alguns setores em manter a ordem incorporando os atos institucionais à Constituição e o de outros que pretendem a volta ao chamado Estado de direito com pleno domínio dos setores privilegiados da população. Isso, é claro, significa que já não há unanimidade por parte das classes que articularam politicamente e legitimaram a contra-revolução. Quais são as consequências desta fragmentação? É difícil avaliar, por enquanto.
JMC – Poderíamos enquadrar o episódio da saída e também de atuação, do ministro Severo Gomes dentro deste prisma?
FF –
JMC – Especialmente agora, durante este governo, tem-se notado a presença proeminente dos liberais, pessoas que aprovariam e aprovam a mudança do regime em 64 e que hoje despontam como eminentes democratas, a última reserva da sociedade civil etc. Tudo isso parece estranho e distorcido diante da realidade política, já que tais figuras ditas libertárias continuam vinculadas ao chamado sistema aligárquico sem que se perceba nenhuma voz à procura de saídas.
FF –
RM – Apregoa-se muito o espírito popular e nacionalista dos militares através da História Brasileira. Seu comportamento recente faria concluir que sua postura é quase que oposta?
FF – O problema para o sociólogo, para o antropólogo, para o psicólogo é que existem várias concepções de nacionalismo. Difícil portanto, usar uma linguagem que não dê margem à confusão. Partindo para um outra suposição, pode-se confundir desenvolvimento econômico com bem estar da Nação. Isto é, pela hipótese de que se ela der salto econômico, ganha em seguida condições para se tornar uma grande potência, realizar um destino maior. E uma ilusão, uma utopia falsa, uma falsa consciência, como diriam certos sociólogos. Tenho a impressão que esta consciência equivocada alimentou a concepção nacionalista de muitos militares. Para mim, a surpresa é verificar que tudo isso aconteça no Brasil com os militares – senão com o monopólio do poder, com o da autoridade: articulações com as grandes corporações internacionais, o país aceitando uma política que coloca a periferia do mundo capitalista como plataforma de defesa dos interesses das nações capitalistas. E principalmente as concessões que foram e estão sendo feitas às grandes corporações, às grandes organizações financeiras internacionais, às superpotências capitalistas. Tudo isso me estranha e espanta. Nesse sentido, se a gente toma como paradigma o que é um espírito nacionalista exaltado tipo De Gaulle, nós não temos um exército de De Gaulles, sequer temos um pequeno De Gaulle. Aquela noção de que cabe ao militar ser o paladino da autonomia nacional não existe no país. Não existe porque isso seria incompatível com toda a filosofia de “desenvolvimento com segurança”. Ao aceitá-la, em 64, junto com a da interdependência, abandona-se esse espírito nacionalista. A partir daí eu não diria que não haja entre os militares nenhum tipo de nacionalismo embora não seja a pessoa indicada para definir que espécie os alimenta. Enfim, esse fenômeno de omissão ante os deveres com a Nação não é exclusivamente brasileiro. Ocorre também em outros países.
RM – Conclui-se então que esta filosofia de desenvolvimento seja frontalmente oposta aos ideais revolucionários?
FF –
RM – De que maneira então o senhor definiria o nacionalismo?
FF –
RM – A burguesia brasileira tem recebido especial atenção do senhor. Como o senhor a vê?
FF – Nós ainda não tivemos uma burguesia que cumpra seu papel, não pensando numa revolução para si própria apenas, mas também levando esta revolução para as outras classes. Nós tivemos uma burguesia especulativa que preferiu vender as fábricas quando teve oportunidade e partiu para outros negócios. Ou então associou-se às grandes empresas estrangeiras. Ou transferiu os riscos, que não pretendia correr, para o Estado. O fracasso do projeto de Volta Redonda, conforme palavras do próprio Getúlio e Roberto Simonsen, atesta bem sua timidez. Lembro-me de uma conversa por mim apanhada em 65/66: um certo dia estava eu engraxando os sapatos na rua Quitanda e ouvi a discussão de três empresários, algo como “ah, eu vendo na hora. Basta vir um americano com dinheiro no bolso. O que me interessa é o lucro”. Logo, não é uma burguesia conquistadora, como dizem os franceses, é uma burguesia dependente. As Forças Armadas que correspondem a essa burguesia têm a mesma mentalidade. Não podemos exigir do militar que ele seja discrepante. Ele segue o mesmo padrão cultural, uma mesma motivação, uma outra ordem que representa uma ruptura com sua imagem no século XIX. Hoje, o militar se vincula à defesa do capitalismo na periferia contra a expansão do socialismo e acha que, cedendo aos interesses internacionais está transformando o país em grande potência, enfim realizando funções patrióticas e nacionalistas. É uma confusão generalizada que no fundo mostra que a burguesia deixou de ser uma classe revolucionária. Mas esta é uma verdade que remonta ao século XIX, quando já fazem concessões para poder exercer a liderança nacional. Na verdade, a questão é complexa porque os ritmos do capitalismo mundial são atualmente muito intensos, rápidos e profundos. Acaba sendo impossível para países como o Brasil, a Argentina, o México, se defenderem destes dinamismos com base numa ordem capitalista.
JMC – Que saídas haveriam?
FF –
RM – Com relação ao poder e seus donos, há um conceito antigo de que ele sempre conduz à corrupção.
FF –
RM – A raiz dos males da história da sociedade brasileira parece estar nas nossas próprias raízes, até no controvertido “homem cordial” que o próprio Sérgio Buarque de Hollanda se encarregou de enterrar. Qual o ponto nevrálgico da questão a seu ver?
FF – Sem dúvida, no conservadorismo e na intolerância do seu obscurantismo. Tenho travado uma longa luta contra tal comportamento. Ele é monolítico e lança raízes por toda a sociedade. Por isso o liberalismo aqui foi postiço e falso, porque não penetrou nas consciências, não criou tolerâncias. As exceções aparecem sempre para confirmar a regra, o conservador que não admite uma brecha supondo que, com ela, acabou-se o mundo, que o Brasil mergulhará na completa anarquia. Tal postura é originário do mandonismo e do despotismo, enraizado desde o século XVI, crescendo com o país e não desarticulado até hoje. E vinculando ao machismo à idéia do poderoso e do adulto. Embuidas por esse conservadorismo reacionário, as classes dominantes não percebem a necessidade da mudança, que é possível ter crescimento econômico e instabilidade política. Cabe lembrar que a primeira grande greve presenciada pelo país, no começo do século XX, foi tratada como caso de polícia. Hoje, as greves estão proibidas. Ou seja, não se verificou progresso nenhum na mentalidade conservadora. E ao mesmo tempo absorvemos a ciência moderna e sua tecnologia, numa total contradição. Como conciliar as duas mentalidade e seus processos? Como conciliar o espírito crítico da filosofia, da literatura, da investigação sociológica com este comportamento conservador? É impossível. Criou-se a Universidade de São Paulo porque se pensou que ela iria ser instrumento para a dominação elitista: quando se descobriu que não ia ser o que se fez? Eliminou-se os professores que tiveram coragem de cumprir seus papéis e se submeteu a Universidade a um controle cego e externo. O que nasce de dentro da Universidade não representa o espírito dela; representa o espírito do profissional liberal, do médico, do advogado, do engenheiro, que não vive como professor, mas do seu consultório, do seu escritório. Ora, a mentalidade da Universidade é aberta à experiência nova, à imaginação criadora, à inovação que não precisa ser importada, que pode surgir aqui.
RM -Como o senhor se sente? Melancólico? Otimista? Cético?
FF –
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