Futurismo

uma manhã clara despontando por trás dos pinheiros
gramado molhado de orvalho, cercas escorrem as horas escuras passadas
pinhas, galhos e pequenas pedras brancas distribuídas a sua sorte
o único comodo da casa de madeira tem as janelas escancaradas há dias, infiro, se pudesse contá-los

o fogão a lenha ali, companheiro quietinho, reanimando o braseiro noturno
uma velha caneca vermelha esmaltada já amassada pelo tempo se descasca como as árvores
acompanha os sinais de minha face

o coador de pano esfumaçante inaugura mais uma saída preguiçosa a varanda de madeira ruidosa
é sempre a última vez dessa mesma imagem
parece que são os meus ares quem muda
a neblina penetrante, cada vez mais rala, revela e confunde o que vejo com o que sinto

visto há semanas um calção recorte de calça antiga preso a cintura por arame
pode haver visita, sabe-se lá
os pés descalços já se misturaram com o solo indissolúveis
menos o abrigo é extensão de meu corpo
é certo que fui incorporado a ele
cheiro, cor, conservação e comportamento familiares

um cachorro vem em minha direção
dividimos a fria polenta, sentados ao chão
ao perceber que como com gosto passa a lambiscar com vagar gentilmente
corpo quente, expele um vapor ritmado, olhos quase fechados pela lágrima ressecada
esparramado, não se importa com meu abraço que ainda não acabou

minha memória vai dando conta dos dias mais remotos
salto o rebento e acabo n’outras eras longínquas, quiçá pré-históricas
assisto a atos de bravura, de conquistas, leio frases nas paredes da gruta
teriam a minha caligrafia

o tempo se esquece de passar por aqui
olho satisfeito a redondeza em movimento:
é formiga em fila, é joaninha no braço, é minhoca que não sei se vai ou se vem
é água descendo em riachinho fazendo barulho sem parar um minuto só

recosto-me intrigado vendo a natureza correr desenfreada
mas sem pressa
como se a partir de agora
fosse apenas a vez dela

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Da Academia dos Sonhos:

http://academiadossonhos.blogspot.com.br/2015/04/futurismo.html