IMPRIMA-SE A LENDA

Nos últimos dias a imprensa esportiva tem tratado a fundo o caso de doping de Lance Armstrong. Para quem não o conhece, trata-se do ciclista mais famoso do mundo nos últimos 20 anos, vencedor 7 vezes seguidas da Volta da França, após ter superado um câncer nos testículos.

Segundo a agência antidoping americana, Armstrong se dopou reiteradamente entre 1999 e 2006 (anos de seus títulos), se utilizando de um esquema sofisticado e plenamente organizado para burlar as leis de controle de dopagem, inclusive com ampla conivência de sua equipe. Para comprovar esse fato, a Agência se utilizou de uma amostra colhida em 1999 que fora congelada, e somente agora se conseguiu comprovar o uso da substância EPO, que melhora o desempenho físico. Além disso, foram colhidos diversos testemunhos de pessoas que trabalharam, assessoraram e correram com Armstrong nas Voltas, o que resultou em um imenso relatório condenando o ciclista, atualmente aposentado das competições.

Na semana passada a UCI (União Ciclística Internacional) decidiu pela condenação de Armstrong, cassação de todos os seus títulos e banimento do esporte. Vários membros de sua equipe já haviam sofrido punição semelhante, mas após os depoimentos de outros auxiliares e de ciclistas de sua própria equipe, o órgão optou por una punição exemplar. A decisão levou a quase todos os patrocinadores de Armstrong recindirem os seus contratos e a uma execração pública do atleta por parte de comentaristas esportivos, atletas, dirigentes esportivos e até pessoas que não tem nenhuma relação com o esporte. Ressalte-se que Armstrong optou por não colaborar e não se defender das acusações – ele já havia sido absolvido em 2005 de acusação anterior. Agora, condenado, resolveu não se defender. Mais detalhes aqui.

Em que pesem as acusações aparentemente contundentes, fica a dúvida se essa “limpeza”, quase 7 anos após a última vitória do norte-americano, é boa ou não para o esporte.

Pode-se argumentar que a busca pela limpeza esportiva é benéfica ao”proteger os atletas limpos”, tal qual reitera o Diretor da agência anti doping norte-americana. Também seria a confirmação da vitória do melhor sem ajudas ilícitas, o que a ética do esporte vem buscando há tempos. Seria a vitória do esporte contra “falsos super atletas”, apenas turbinados por substâncias que nos levariam de volta aos tempos da dopagem dos atletas membros dos países da cortina de ferro. E, punindo um ídolo como Armstrong, ficaria o recado da agência de que ninguém escapa ou foge do controle anti-dopagem, seja quem for. Essa tem sido a busca de muitos políticos e dirigentes do esporte, num mundo onde cada vez mais as substâncias se modificam, o controle é maior, mas a tecnologia avança a olhos vistos na procura pelo “atleta perfeito”, em detrimento da pureza esportiva. Por outro lado, qual o dano que tal escândalo produzirá no esporte?

Em primeiro lugar, trata-se de um ídolo de gerações de ciclistas e pessoas em geral, menos por suas vitórias na pista, mais por seu retorno vitorioso após um câncer quase terminal (é bom lembrar que Armstrong lutou durante 4 anos contra a doença). A vitória em um evento tão difícil como a Volta da França é um estímulo para milhares de pessoas que lidam com uma doença tão dura e mortal como o câncer, demonstrando que sim é possível não só vencer a doença como ter uma vida normal e vitoriosa depois dela. Um golpe como esse na imagem do ciclista pode não apenas enterrar a imagem de um vitorioso contra uma doença como também desestimular várias pessoas com uma auto-estima baixíssima a desistir da luta contra a doença por entender que, sendo Armstrong culpado e tachado de criminoso, não caberia a uma pessoa com câncer uma vitória limpa em qualquer situação sem uma trapaça. Ou, que tudo seria uma fraude, e que Armstrong não teria tido câncer sem doping, ou mesmo vencido o câncer sem o doping. Nunca é demais lembrar que há jornalistas e comentaristas que chegaram a insinuar que o câncer que teve foi resultado do uso indiscriminado de substâncias proibidas. Teoria estranha, uma vez que antes do câncer ele não teve vitórias marcantes e seu doping não teria sido muito efetivo. Em resumo, um desastre completo para a imagem de combate ao câncer.

Não obstante o aspecto da saúde, há a questão esportiva: como explicar que Armstrong venceu 7 vezes utilizando substâncias proibidas e nunca foi pego? Que fraude ocorreu nas Voltas para que ele vencesse e passasse no antidoping sem nenhuma acusação? Pode-se dizer que agora há metodos de controle que comprovam o uso da substância proibida, mas fica a pergunta: é certo, depois de quase 7 anos (ou mais no caso das conquistas anteriores a 2005) se cassar vitórias de um atleta? O crime (pois a imprensa e as agências anti-dopagem tem tratado a conduta do ciclista dessa forma) nesse caso é imprescritível? Fica a sensação de que o resultado sempre ficará passível de reversão, ou mesmo em dúvida se o vencedor se utilizou ou não de substâncias proibidas.

O próprio controle fica em xeque, assim como a organização da prova (segundo os dados da própria agência, 20 dos últimos 21 vencedores da Volta foram protagonistas de escândalos de dopagem). Em um esporte como o ciclismo, reiteradamente apontado como o campeão de dopagem entre atletas, a imagem fica pior que a própria ausência de punição, sobretudo por ocorrer tantos anos após as provas. Demonstra uma falha grave de controle, levanta uma suspeita de privilégios e não deixa claro qual é o critério das punições, ao suspender por 1 ano, por exemplo, Alberto Contador (que mal voltou venceu a Vuelta de España), mas retirar todos os títulos de Armstrong e baní-lo do esporte. Ficou a sensação de que Armstrong fez algo de muito grave contra os dirigentes da agência para ser punido de tal forma e Contador não.

Por isso que, avaliando os prós e contras de toda a repercussão do caso e os desdobramentos da punição exemplar dada ao ciclista, fica a impressão que a agência cometeu enorme equívoco. Note-se que não se defende a impunidade do atleta, sobretudo confirmada a dopagem como parece ter sido o caso. Mas a forma de punição e a própria ausência de mea-culpa por parte da agência, incapaz de detectar a dopagem na época das provas, cria uma ilusão de que o único culpado é o ciclista. Além disso, e mais grave, atinge um ídolo no combate ao câncer e pode acarretar uma grave consequência de forma indelével no desestímulo das pessoas que veêm em Armstrong o símbolo da luta e vitória contra o câncer, a curto e médio prazos. Num mundo onde a mídia tem papel imprescindível e em uma doença onde a auto estima e vontade de viver são determinantes, pode ser um duro golpe no tratamento. Por fim, o esporte não sai melhor do episódio, ao contrário: fica a impressão de que o controle é ineficiente, que há privilégios e de que todos os resultados estão subjudice. Pior: deixa a impressão mais uma vez de que quem vence nesse esporte são somente os dopados, não o contrário, o que encerra o desejo de gerações de jovens em aderir ao esporte.

A conclusão que fica é a de que alguns assuntos, por mais que tortuosos, merecem uma forma diversa de tratamento. Embora possa resultar em uma mentira, às vezes esta traz mais benefícios que a própria verdade. Lembra o clássico faroeste de John Ford, “O Homem Que Matou o Facínora”, de 1962. Na trama, o recém graduado advogado Ransom Stoddard, bela atuação de James Stewart, está chegando de carruagem a uma pequena cidade do “Velho Oeste”, quando é assaltado e espancado. Stoddard jura então colocar seu algoz, o líder dos ladrões, Liberty Valance, vivido por Lee Marvin, atrás das grades, atitude impensável na “terra sem lei”. Sua cruzada pela justiça o leva até a pequena cidade de Shinbone, onde conhece o machão Tom Doniphon, vivido pelo inesquecível John Wayne.  O cenário está pronto para a marca registrada de todo western que se preze: o duelo final. Porém, desta vez, o herói  de Stewart não tem mira nem para acertar um celeiro, nas palavras de um dos personagens do filme. Mesmo assim resolve enfrentar o bandido, levando a melhor e toda a fama. O que ele só saberia depois é que foi Tom, escondido atrás de uma casa, que matou Valance para protegê-lo. Seu tiro, como era de se esperar, errou o alvo. Stewart acaba se elegendo senador contra um candidato corrupto e autoritário justamente por ter desafiado e matado o grande encrenqueiro da área. A situação é bastante inusitada, ee Ford faz sua crítica velada, contrapondo o reconhecimento que o advogado tinha por ser um homem da paz, e o que conseguiu com a imagem oposta, ainda que infundada. A história é narrada pelo já senador e ex-governador Ransom Stoddard, que retorna à pequena cidade para o funeral de Tom Doniphon. Ao ser questionado por um jornalista sobre o motivo de sua ilustre visita, resolve contar a verdade sobre a sua fama de justiceiro e releva toda a verdade da história. A clássica recusa do repórter em publicar a matéria traz em si um paradigma da imprensa marrom: “Se as lendas tornam-se verdade, imprimam-se as lendas”.

Fica a dúvida se neste caso de doping, não teria sido melhor imprimir a lenda.

Redação

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