Instituições dos brancos têm oportunidade histórica de fazer justiça aos indígenas

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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"Indígenas estão sendo dizimados e recorrem à Corte constitucional, que tem como função mais nobre a defesa das minorias", diz Daniel Sarmento sobre a ADPF 709. Confira o vídeo

Jornal GGN – Em entrevista exclusiva ao canal do GGN no Youtube, o advogado Daniel Sarmento disse que a ADPF 709, protocolada no Supremo Tribunal Federal no final de junho, é uma “oportunidade histórica” para que as “instituições dos brancos” façam justiça a povos nativos. Dizimados no passado, os indígenas brasileiros enfrentam agora a ameaça de genocídio em função da pandemia de coronavírus e da completa inação do governo Bolsonaro.

“Os povos indígenas estão sendo dizimados. Eles recorrem à Corte constitucional brasileira, que tem talvez como função mais nobre a defesa das minorias. A gente espera que o Supremo, dessa vez, esteja à altura do seu papel histórico e institucional”, disse Sarmento.

A ADPF é uma ação emblemática da APIB, a Articulação dos Povos Indígenas, que pela primeira vez na história move seus advogados – alguns deles, indígenas – e provoca o Supremo para garantir o direito constitucional à vida.

Eles querem que a União garanta barreiras sanitárias em comunidades indígenas mais sensíveis na Amazônia, expulse invasores de terras demarcadas, faça atendimento pelo SUS de todos os indígenas, e não apenas dos aldeados em territórios demarcados, e elabore e execute um plano de ações concretas para evitar o genocídio dos povos.

A entrevista foi gravada em 30 de junho. Acompanhe os principais trechos abaixo:

***

P: Poderia resumir o que consta na ação da APIB protocolada no Supremo Tribunal Federal?

R: O tema da ação é o efeito da pandemia sobre os povos indígenas do País todo e a absoluta insuficiência, a falta de políticas públicas do governo para isso. Em algumas dimensões pode ser algo culposo, vamos dizer assim, e em outras, até proposital. Porque a gente tem a convergência de um governo que é negacionista na questão pandemia e racista no tratamento dado aos povos indígenas. Sistematicamente o presidente fala que não vai demarcar nenhum centímetro de terra indígena, desvalorizando a cultura, às vezes equiparando indígenas a homens das cavernas. Barbaridades dessa natureza. E isso se reflete na falta de cuidado com povos indígenas no contexto da pandemia. 

Têm várias questões que são colocadas na ação. Uma coisa importante é que a ação evidencia o risco real de genocídio, de extermínio de povos indígenas inteiros. A gente não está falando apenas na morte de pessoas, que é algo já extremamente grave. A gente está falando que, além disso, há possibilidade de que povos indígenas, com as suas culturas, muitas delas que antecedem em muito a chegada dos ocidentais no Brasil, elas desapareçam. Isso é a uma perda para as futuras gerações do Brasil e do mundo. Esse é um risco real.

O que a gente pede: primeiro, que sejam colocadas barreiras sanitárias para impedir a entrada de pessoas em terras em que há povos indígenas isolados e em povos de recente contato, que são povos que não têm contato com a sociedade por escolha deles, ou que têm um contato recente muito esporádico, e que por conta disso estão muito mais expostos à pandemia. Quando pessoas desses grupos adquirem um vírus, morrem. A história brasileira está repleta de casos, desde o Brasil colônia até a história mais recente. A presença não indígena nessas áreas têm aumentado muito, sobretudo no governo Bolsonaro, com o estímulo ao garimpo e empresas madeireiras. 

O segundo pedido é para que as áreas identificadas como mais críticas, na Amazônia, em que não indígenas que estão lá dentro, invasores recentes, que foram fazer garimpo e extração ilegal de maneira, que eles sejam retirados dessas áreas indígenas. São 7 áreas, entre elas a terra indígena Yanomami. Existe hoje a estimativa de que lá existem 20 mil garimpeiros e a contaminação pode chegar a 40% da população Yanomami. Essa presença humana foi detectada. Há mapas e há dados de desmatamento nessas áreas. Além dos riscos à vida dos povos indígenas – e tem havido vários casos de homicídio por garimpeiros – e além do risco ambiental e o governo lavando as mãos, agora há também o risco sanitário muito grave, porque essas pessoas se transformaram no principal vetor de transmissão da Covid nessas áreas. 

Há também um pedido muito importante, que é do subsistema de saúde indígena, conduzido pela Sesai, vinculado ao Ministério da Saúde, que ele passe a atender todos os indígenas. Hoje a Sesai só quer atender aos indígenas aldeados e que estejam em terras homologadas. Isso é uma discriminação e gera vários problema, o não atendimento de índios que vivem em cidade. E tem outra questão séria, que é a seguinte: o governo decidiu não fazer nenhuma demarcação. Então os indígenas que estão em terras que vivem esse processo também não são atendidos. 

Outro pedido importante é de formulação de um plano com medidas concretas de atuação. O governo está inerte. A Sesai fez um plano de contingência absolutamente vago, genérico, que não vem sendo cumprido e sem nenhuma participação do povo indígena, o que viola várias normas constitucionais nacionais e internacionais. Então a ideia é que o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, que é independente, e tem representantes do governo e sociedade civil, formule esse plano com participação dos povos indígenas e ajuda técnica de especialistas da Fiocruz, que tem uma equipe especializada nisso. A ideia é ter um plano e que depois, assim que homologado pelo Supremo, passe a ser implementado sob monitoramento do STF e do CNDH.

P: É uma ação da APIB histórica e simbólica.

R: Isso é muito importante. É a ideia de que os povos indígenas são protagonistas das suas lutas. Eu sempre digo que nesse processo o advogado principal é o Eloy [Terena], eles que são os principais. Os partidos políticos são importantes, mas são coadjuvantes. O autor principal é a APIB. A gente tem uma questão jurídica delicada. A jurisprudência do Supremo até então vinha dizendo que entidade de classe nacional que pode propor ação no Supremo é entidade que represente categoria profissional ou econômica, o que excluiria os índios, o que é um absurdo, não tem nenhuma justificativa. A gente busca superar essa jurisprudência num caso emblemático. Quer dizer, se os índios não podem entrar com uma ação no Supremo para defender o seu direito de não serem exterminados, será isso razoável? O ingresso dos partidos políticos nesse caso desempenha duplo papel. Primeiro para mostrar o apoio jurídico aos povos indígenas. Em segundo lugar, funciona como um seguro também, para que a ação não deixe de ser julgada por questões processuais. Então se o Supremo quiser insistir na sua jurisprudência retrógrada e não admitir a APIB, ele mesmo assim vai ter que discutir a ação dos partidos políticos que têm essa legitimidade garantida. 

Além da questão emblemática de ser a primeira vez que a APIB provoca o Supremo, é emblemática também porque a peça foi assinada por advogados indígenas e inclusive declinando a sua etnia, isso está lá no final da petição inicial. Isso tudo foi para reforçar a dimensão de protagonismo indígena nesse caso.

P: A depender do curso da pandemia e da ação no STF, a APIB estuda representar contra o presidente Bolsonaro pelo genocídio dos povos indígenas no contexto de pandemia?

R: A APIB pode falar melhor das decisões políticas. O que posso dizer é que, juridicamente, para mim, cabe. Entre as várias razões que, por exemplo, podem justificar o impeachment de Jair Bolsonaro, uma delas é a violação frequente, sistemática, grave e racista do direito dos povos indígenas.

P: Gostaria de acrescentar algo?

R: É uma oportunidade histórica para a instituição dos brancos fazerem, uma vez que seja, na nossa história, justiça aos povos indígenas. Os povos indígenas estão sendo dizimados, eles recorrem à Corte constitucional brasileira, que tem talvez como função mais nobre a defesa das minorias. A gente espera que o Supremo, dessa vez, esteja à altura do seu papel histórico e institucional.

Leia também: 

Uma ação histórica: povos indígenas vão ao STF para evitar genocídio na pandemia

 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

1 Comentário

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  1. Finalmente alguém lembrou dos Direitos Humanos dos Indígenas, sobre seus Territórios desde Parelheiros no extremo sul da cidade de São Paulo, até o extremo oeste no Jaraguá. Além de todos seus territórios na Serra do Mar entre Ubatuba e Vale do Ribeira. Paulistanos estão dizimando estas Pessoas e sua Cultura, enquanto não aceitam devolver as suas terras. Pode haver crime maior que a grilagem de terras e genocídio praticado e documentado desde as Capitanias Hereditárias até os textos de Anchieta?

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