Intervenção federal (militar) no estado do Rio. Breves Reflexões, por Afrânio Silva Jardim

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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no Empório do Direito

Intervenção federal (militar) no estado do Rio de Janeiro. Breves Reflexões

por Afrânio Silva Jardim

Abaixo elencamos alguns singelos textos que escrevemos sobre esta atual questão que a todos interessa e preocupa.

São reflexões que não se destinam aos especialistas, mas ao público em geral. A linguagem é coloquial e os aspectos técnicos são abordados de forma bastante simplificada.

1 – E A VIOLÊNCIA NÃO CRIMINALIZADA? PARA ELA NÃO HÁ INTERVENÇÕES?

Na verdade, as classes sociais privilegiadas apenas se preocupam com a chamada “violência criminalizada”, vale dizer, aquelas condutas tipificadas como crime e que colocam em risco a sua segurança pessoal ou o seu patrimônio.

Entretanto, em uma sociedade injusta como a nossa, o que mais incomoda as pessoas pobres são outros tipos de violência, com as quais elas têm de conviver todos os dias.

Falo da violência da precariedade do transporte nas grandes sociedades; falo da violência de perder o seu emprego apenas pelo mau humor do patrão; falo da violência de ser revistada publicamente, de forma humilhante; falo de não ter residência própria e de não poder pagar o aluguel do quarto ou barraco, onde moram vários membros da mesma família; falo das filas e do precário atendimento médico nos hospitais públicos; falo da mãe que assiste à morte de um filho por falta de recursos financeiros para o seu tratamento; falo dos pais que não podem pagar os estudos de seus filhos.

Falo, enfim, de todos os dissabores por que passam as pessoas pobres em uma sociedade competitiva, dominada por pessoas egoístas e individualistas, indiferentes ao sofrimento alheio.

Como seria bom se tivéssemos uma intervenção federal nos Estados para “combater” esta violência não criminalizada e que “massacra”, oprime e humilha a maioria das pessoas em nossa sociedade!

Entretanto, chega a ser utópico pensar que os ricos estejam preocupados com a desgraça das pessoas pobres e que, com a exploração de sua força de trabalho, criam as condições econômicas e sociais para manter os seus privilégios. A mudança desta situação injusta pressupõe um outro tipo de intervenção, pois só a classe social oprimida pode livrar-se da opressão.

O primeiro passo para combater esta real violência, que pressupõe uma substancial transformação social, deve ser a conscientização das pessoas injustiçadas de que as coisas podem ser diferentes, como já foram no passado e serão no futuro. O medo da classe dominante é que os explorados tenham consciência desta exploração.

A história não pode ser paralisada pelas forças conservadoras, que serão atropeladas pela educação e cultura popular. Algum dia, a justiça vencerá !!!

2 – O NOME NÃO SERIA “MANDADO COLETIVO” DE BUSCA DOMICILIAR. O NOME CERTO DESTA MEDIDA INCONSTITUCIONAL SERIA MANDADO GENÉRICO DE BUSCA E APREENSÃO DOMICILIAR

A garantia constitucional da inviolabilidade dos domicílios é incompatível com mandados de busca e apreensão genéricos, onde não são minimamente individualizados os lares que serão submetidos a esta medida constritiva e incômoda.

Vale dizer, o mandado genérico de busca domiciliar esvazia a regra constitucional de garantia. Por outro lado, não se pode confundir mandado de busca e apreensão domiciliar com mandado de prisão.

Até aceitaria, porque razoável, que o mandado judicial pudesse abranger mais de um lar, todos situados em um mesmo local. Mas este local teria de ser especificado e ter uma limitação bem definida. Isto porque, em determinadas comunidades carentes, pode haver becos e vielas sem nome, bem como casas sem numeração.

Já o mandado judicial de prisão tem de individualizar a pessoa a ser presa, sendo irrelevante o local desta prisão, conforme texto legal que abaixo transcrevemos.

Assim, o argumento do Ministro de que o “marginal” a ser preso muda constantemente de residência não faz o menor sentido e mostra o despreparo técnico da autoridade. A prisão por mandado judicial pode ser realizada em qualquer local e abrange a busca domiciliar, devendo respeitar as regras constitucionais relativas à garantia dos domicílios.

À noite, não se entra em residências nem com mandado judicial, salvo para efetuar prisão em flagrante delito, no caso de desastre e para prestar socorro a quem dele estiver necessitado.

Vejam o que dispõe o atual Código de Processo Penal:

“artigo. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

§2° A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011)”.

“artigo 293: se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.

Parágrafo único. O morador que se recusar a entregar o réu oculto em sua casa será levado à presença da autoridade, para que se proceda contra ele como for de direito.”

Desta forma, esperamos que o Poder Judiciário não aceite esta violação ao Estado Democrático de Direito. Esperamos, ainda, que o Ministério Público seja um efetivo fiscal da correta aplicação da lei e da Constituição.

Como sempre digo, não é valioso punir a qualquer preço. No caso, a insegurança das pessoas, que moram em comunidades carentes, não pode decorrer também das forças do Estado. Seria trocar a insegurança criada pela delinquência pela insegurança decorrente das devassas de um Estado autoritário. Em outras palavras, como diz o povo: “seria trocar seis por meia dúzia”.

Para finalizar, vejam o que dispõe o Cod.Proc.Penal sobre a necessidade de não ser genérico (ou coletivo):

“Art. 243. O mandado de busca deverá:

I – indicar, o mais precisamente possível, A CASA EM QUE SERÁ REALIZADA A DILIGÊNCIA e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem;

II – mencionar o motivo e os fins da diligência;

III – ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir.

§1o Se houver ordem de prisão, constará do próprio texto do mandado de busca.

§2o Não será permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito.”

3 – O QUE PODEMOS ESPERAR DE POSITIVO DA INTERVENÇÃO FEDERAL ( MILITAR) NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO?

Pretendemos aqui refletir sobre que resultado prático se pode esperar da participação das Forças Armadas na repressão à criminalidade.

Lógico que não se pode satisfazer com um provável decréscimo, temporário, dos índices de criminalidade em decorrência da presença ostensiva do grande aparato militar e bélico, como em outras situações já ocorridas na cidade do Rio de Janeiro. Falamos de soluções e não de paliativos.

Vamos raciocinar, a partir da experiência do Rio de Janeiro. Partiremos de uma constatação evidente: os criminosos existem e são em grande número, espalhados por toda a nossa Região Metropolitana.

Por outro lado, parece que a preocupação maior da população e das forças de repressão do Estado é com os crime praticados com violência ou grave ameaça à pessoa e com o tráfico de armas e entorpecentes.

Como reduzir drasticamente esta criminalidade?

Que alternativas poderiam ser consideradas, por mais absurdo que possa parecer? Vamos a elas:

1) As forças armadas exterminarem a maioria destes delinquentes. Nesta hipótese de genocídio, teríamos, em um futuro breve, uma nova “Comissão da Verdade”, malgrado o desgosto do general Villas Boas …

2) A grande maioria destes criminosos fugiria para outros Estados. Neste caso, o problema não seria resolvido, mas transferido para outras cidades e as Forças Armadas passariam a perseguir, incessantemente, as quadrilhas e os membros do chamado crime organizado (organizado, “pero no mucho”) …

3) Tudo ocorreria de forma normal e natural. Haveria algumas poucas prisões em flagrante (poucas, porque os traficantes não ficariam na posse das armas e dos entorpecentes quando as forças policiais entrassem na comunidade) e seriam instaurados vários dos intermináveis inquéritos policiais. Em alguns poucos, o Ministério Público teria prova suficiente para oferecer a sua acusação formal em juízo (denúncia) e seriam instaurados os morosos processos (nem todos os indiciados estariam presos, pois não lhes fora decretada a prisão cautelar e, em caso positivo, estariam foragidos). Em conclusão: após cerca de um ano e meio, estes poucos réus seriam condenados de forma definitiva.

Pergunta-se: sendo a terceira hipótese a única adequada ao nosso sistema jurídico e com alguma (e pouca) eficácia jurídica, estaria justificada a intervenção das Forças Armadas para dar uma maior eficácia ao sistema de justiça criminal, com algumas e demoradas condenações nos processos penais?

Ademais, a população sentirá algum efeito concreto ou prático deste imenso aparato bélico? Será que as forças armadas saberão (ou gostarão) de desempenhar o papel de investigadores para viabilizar as acusações do Ministério Público Estadual?

Enfim, julgo que pouco resultará de concreto e positivo desta intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, sendo que os “danos colaterais” superarão, em muito, os parcos resultados em prol da pacificação da nossa sociedade.

A verdade é que uma sociedade estruturada de forma tão injusta terá de conviver, cada vez mais, com a criminalidade. O ataque aos sintomas desta “doença social” só é eficaz com a minoração das injustiças sociais, com educação e emprego, vale dizer, com vida digna para todos. [A1]

4 – O ESTADO MODERNO VIROU A EXPRESSÃO POLÍTICA DO PODER ECONÔMICO. A CORRUÇÃO FAZ PARTE DESTE MODELO PERVERSO

Há corrupção em sociedades não capitalistas, mas não há sociedades capitalistas sem corrupção endêmica.

Quase não são criticados os empresários corruptores. Pelas suas delações, chegam até a serem “venerados”. Os Procuradores da República da Lava Jato costumam dizer que a corrupção mata, mas os empresários corruptores eles deixam em prisão domiciliar …

Quase ninguém denuncia o perverso sistema econômico que serve de “pano de fundo” para toda esta corrupção.

Na verdade, estes corruptos não furtavam as chupetas dos bebês vizinhos nos berçários da maternidade onde nasceram… O que terá acontecido com eles???

O ser humano é produto não só dos fatores endógenos, mas também dos fatores exógenos. Como disse o grande pensador ORTEGA Y GASSET, “eu sou eu e as minhas circunstâncias”.

O fato é que o “poder econômico” sequestrou o Estado Brasileiro e a grande mídia é um de seus instrumentos.

O nosso Poder Judiciário é complacente com tudo isso. A maioria de nossos juristas se ausenta deste debate. Estão mais preocupados com suas teses “mirabolantes” e desconectadas da realidade e com seu sucesso pessoal do que com as questões mais amplas, com as questões de interesse da sociedade. O individualismo é “epidêmico” em nosso país …

O “poder econômico” se faz sentir em todos os poderes do Estado e em toda a nossa vida. Este modelo de sociedade nos faz de “idiotas” a serviço da cobiça de uns poucos.

Somos todos, cada vez mais, consumidores compulsivos que, para comprar, vendemos nossa força de trabalho para quem nos vende estes mesmos produtos e serviços. Somos “massa” de manobra neste “círculo vicioso”.

Nesta sociedade de massa e de consumo, não mais somos o que poderíamos desejar ser. Somos o que o “mercado” nos faz ser.

Somos “reféns” de uma organização social perversa, hipócrita, individualista, egoísta e desumana. Nunca vi tanto cinismo nos meios de comunicação.

Nossos valores de igualdade, solidariedade, liberdade social, educação crítica e justiça social estão indo, cada vez mais, “para o espaço”.

Por vezes fica a impressão de que temos de “jogar a toalha” e nos adaptar a esta desprezível sociedade, formada por pessoas incultas, raivosas, preconceituosas e até ingênuas. Acho que não consigo. Não estou conseguindo… Não quero me render !!!

Entretanto, as corretas ideias e as melhores teorias sociais não podem ser rejeitadas pela fracasso humano de bem aplicá-las.

Outrora, ficávamos na seguinte dúvida: virá um novo homem que criará uma nova sociedade, ou, primeiro, virá uma nova sociedade, que forjará o surgimento de um novo homem?

Hoje ficamos com a impressão de que veio sim uma velha sociedade, que ressuscitou um homem pretérito, trazendo de volta uma antiga e primitiva cultura, lastreada em valores reinantes em períodos próximos do século XIX.

Cada vez mais, somos menos humanos e mais instrumentos de um sistema econômico e social que ninguém entende e que ninguém consegue deter. Estamos sendo levados por um verdadeiro furacão tecnológico …

Em resumo, ouso dizer que existe corrupção em sociedades que adotam outros modelos que não o capitalismo, mas não há sociedade capitalista sem corrupção disseminada.

O poder econômico é inerente à própria sociedade capitalista. A corrupção é inerente ao próprio poder econômico.

Em algum momento, teremos que lograr uma outra forma de organização social, onde todos tenham, ao menos, as mesmas oportunidades de ascensão social e tenham as suas individualidades respeitadas.

Espero que meus netos participem da construção desta sociedade sem explorados e exploradores; sem corruptos e corruptores.

Afrânio Silva Jardim é Professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Um detalhe

    Somente para situar minha experiência acerca do que relatarei, Sou PCERJ há 23 anos e Comissário de Polícia.

    Concordo com QUASE tudo que o articulista mais que preparado e ousado para seu tempo nas hostes do MP relata, entretanto, uma observação: Quanto ao mandado genérico d ebusca e apreensão- Vejamos: O IBGE classifica favelas como AGLOMERADOS SUBNORMAIS DE CONSTRUÇÕES, sem base para individualização. Assim está em seus anais estatísticos e no manual de classificação de edificações. O “estado” permissivamente assistiu à favelização desenfreada das cidades, notoriamente no RJ, muitas vezes até mesmo concedendo títulos precários de posse ou propriedade. Os endereços em favelas são absolutamente inservíveis. Prova disso está em que a EBCT entrega correspondências em pequenos comércios ou associação de moradores, dada a imprecisão. 

    Outro fato é o comportamento dos narcotraficantes desorganizados que há no RJ…São senhores, reis e imperadores nas comunidades que habitam, nas favelas. Se cismam com algo, eles possuem. Se cismam com uma jovem menor de 18 e querem com ela sexo, ou terão consentido, ou à força, arrancadas de suas casas à frente dos parentes; Se desconfiam que algum morador tenha repassado informações à Polícia, microondas(dispensa detalhes). Se encurralados pelas Polícias obrigam moradores a guardar armas e drogas e permanecem até mesmo nas biroscas comendo e bebendo enquanto a Polícia faz seu pente-fino. 

    Estive em dezenas de favelas por motivos variados, Conheço de perto ! Não há razão fática para impedir ou obstruir um madado coletivo para áreas assim. Todos os executores de tais mandados tem cargo, nome e matrícula. Abusou de sua autoridade no local da busca, seja punido. Simples assim!  

    Intimamente torço para que algo de positivo resulte dessa atabalhoada intervenção, entretanto, criticamente ciente de que há mais do mesmo. Poderio bélico exposto, força, tropa e nenhum indício de se fortalecerem as estruturas de quem efetivamente poderia obter êxito a prazo médio e longo: Produção de conhecimento e inteligência em consonância com sua co-irmã, a investigação. Somente fortalecendo a investigação criminal, profissionalizando-a, seremos capazes de trazer o crime a níveis suportáveis no RJ e em todo o Brasil. Mas sobre este ponto ninguém quer falar, até porque uma Polícia de investigação forte e estruturada é capaz de exterminar o câncer da corrupção estatal por dentro. 

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