JOÃO SUASSUNA: O ESPECIALISTA DO VELHO CHICO

 

Um dos mais antigos projetos brasileiros na área de recursos hídricos, a transposição do Rio São Francisco, idealizado para amenizar os problemas das secas na Região Nordeste, ainda é alvo de acalorados debates, mesmo no momento em que começa a sair do papel. Enquanto o governo sustenta que a transposição será um verdadeiro instrumento de transformação da realidade do semi-árido, muitos grupos da sociedade civil apostam que o projeto não beneficiará as populações locais, mas sim o agronegócio, empresários e latifundiários.

Um dos opositores da transposição, o pesquisador e engenheiro agrônomo da Fundação Joaquim Nabuco, de Pernambuco, João Suassuna, considerado atualmente um dos maiores especialistas do País em questões de hidrologia do semi-árido e conhecimento sobre o Rio São Francisco, afirma que o resultado final, efetivado o projeto, irá surpreender muita gente.

“Quem achar que a transposição vai resolver o problema da população difusa nordestina, e estou falando em termos de 10 milhões de pessoas que vivem nos pés-de-serra, nos grotões, nos pequenos lugarejos, em sítios, e estão sendo assistidas por frotas de caminhões-pipa, se engana. Tais pessoas não vão ver a cor da água do São Francisco”, sustenta Suassuna.

TRIBUNA DA IMPRENSA – Como o senhor analisa a questão da transposição do Rio São Francisco?

JOÃO SUASSUNA – O São Francisco é um rio de múltiplos usos, responsável por mais de 95% da energia que é gerada no Nordeste. Na beira do rio, nós temos um potencial de cerca de um milhão de hectares, dos quais 340 mil já estão irrigados, e isso já leva uma boa fatia das águas dele.

Em 2001 nós tivemos que racionar nossa energia aqui no Nordeste, tendo que adotar os feriadões. Caso isso não fosse feito, o sistema de geração de energia iria “apagar”. E é em um cenário de conflitos que o governo federal quer tirar a água para abastecer 12 milhões de pessoas no Nordeste. Colocarão em risco todos os investimentos que já foram feitos ao longo da bacia. Costumo dizer que energia é sinônimo de desenvolvimento, e a gente não pode estar brincando com isso.

Existe um grande movimento oposicionista por parte de diversos grupos da sociedade em relação ao projeto. Na sua opinião, por que o governo parece ignorar as manifestações?

Coube ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco a elaboração do Plano Decenal do uso das águas para fora de sua bacia, ou seja, águas de transposição. No plano ficou estabelecido que as águas do Rio São Francisco poderiam ser utilizadas para o abastecimento humano e o abastecimento animal, isso em caso de comprovada escassez. Isso que foi deliberado fere frontalmente as expectativas do governo, pois ele quer pegar as águas do São Francisco e usar no agronegócio. Quando as águas começarem a abastecer as principais represas do Nordeste, elas vão ser consumidas pelo grande capital, ou seja, serão direcionadas para criação de camarão, irrigação de frutas, para as indústrias.

Para se ter uma idéia, só no Porto de Pécem, próximo à Fortaleza, está sendo construído uma siderúrgica, a Ceará Still, que sozinha consome um volume equivalente ao de um município de 90 mil habitantes. Caso as águas do São Francisco sejam utilizadas para tais fins, vão acabar de matar o rio, que já está limitado hidrologicamente. Existe o conflito de usos.

Quem achar que a transposição vai resolver o problema da população difusa nordestina, e estou falando em termos de 10 milhões de pessoas que vivem nos pés-de-serra, nos grotões, nos pequenos lugarejos, em sítios, e estão sendo assistidas por frotas de caminhões-pipa, se engana. Tais pessoas não vão ver a cor da água do São Francisco.

Caso implantem o projeto da forma como está sendo divulgado para a sociedade, no meu modo de entender, é a perpetuação da indústria da seca no Nordeste.

Qual será o impacto da transposição do Rio São Francisco para as populações ribeirinhas?

O fato de uma população estar na beira do rio não significa que está com seus problemas resolvidos. Vou dar um exemplo de um município de Alagoas, chamado Traipu, e que está na beira do São Francisco. Mais da metade da cidade não tem água encanada nas torneiras. Isso mostra que não é preciso apenas estar ali, junto da água, para haver desenvolvimento. É necessário termos uma política para fazer com que a água chegue até as torneiras da população, e isso nós não temos aqui no Nordeste.

E a abrangência da obra no contexto do semi-árido?

Vai ser pouca. Eu considero o governo federal o maior opositor da transposição do São Francisco. Digo isso porque ele (o governo) editou, por intermédio da Agência Nacional de Águas (Ana), o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Águas, no qual consta o preciso diagnóstico da real situação hídrica do Nordeste e faz um levantamento das regiões onde realmente existe a escassez. A proposta para solucionar o abastecimento de tais regiões seria através de adutoras, ou seja, o uso de tubulações. As águas viriam de represas, de poços e até do próprio São Francisco.

O projeto existe, e eu acredito ser a alternativa para se resolver de vez o problema, uma vez que é um trabalho que custa metade do que foi orçado para a transposição. Além disso, tem uma abrangência social muito maior. Com a transposição do São Francisco, até 2010, está previsto um orçamento de R$ 6,6 bilhõies de reais e o abastecimento de 12 milhões de pessoas. O Atlas Nordeste, com um orçamento de R$ 3,6 bilhões beneficiaria 34 milhões de pessoas. O curioso é que o que está previsto no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) é o projeto da transposição, e não o Atlas. Eu costumo dizer que o problema de nossas autoridades, hoje, passam também por deficiência matemática.

Então a transposição não irá trazer ganho social para as populações realmente necessitadas?

Não haverá ganho. Será zero. Existe uma instituição aqui no Nordeste, chamada Asa Brasil, que congrega cerca de oitocentas instituições não-governamentais que trabalham no Nordeste seco, levando tecnologias apropriadas ao convívio com o semi-árido. E a Asa está difundindo tecnologias de captação de água para uso, como é o caso das cisternas rurais, das barragens subterrâneas, dos barreiros-trincheiras, das mandalas, entre outros. E para as populações difusas existem essas alternativas de uso das tecnologias difundidas pela Asa.

Uma cisterna rural de 16 mil litros, por exemplo, reserva água para uma família de cinco pessoas durante uns 8 meses sem chuvas na região, com água para beber e cozinhar. O problema, assim, fica resolvido.

Nós não temos uma política para fazer com que essas águas que estão nas represas do Nordeste, que são cerca de 70 mil, cheguem até as populações. Não tem o menor sentido, não dispondo de uma política para fazer as águas chegarem às populações, querer se fazer um projeto faraônico para tirar água do São Francisco e levar a 500 quilômetros de distância do local do consumo. Isso é uma maluquice a toda prova.

Hoje, no Nordeste, não se cobra pela água bruta. Os custos da água para uso agrícola dizem respeito apenas ao bombeamento da fonte de suprimento até a área agrícola. Com a transposição, a situação irá mudar?

Vai mudar porque a água chega na ponta do projeto muito cara. Consta no estudo do impacto ambiental e social das obras que a água vai chegar em uma média de R$ 0,11 o metro cúbico bombeado, lá na ponta do projeto. Agora, para vermos como isso é caro, a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) entrega a água nas propriedades dos colonos a cerca de R$ 0,02 o metro cúbico bombeado. Ou seja, a água do São Francisco vai custar cinco vezes mais cara.

Para o governo federal tornar isso rentável, e isso vai acontecer, escreva o que estou lhe dizendo, vai fazer o que nós chamamos aqui de subsídio cruzado. Eu, que moro em Recife, e não vou ver a cor da água do São Francisco, vou ter a minha tarifa de água aumentada para possibilitar ao criador de camarões, lá no Ceará e no Rio Grande do Norte, trabalhar com as águas do rio.

E o que leva a crer que, a exemplo do que os contrários ao projeto afirmam, o projeto só beneficiará empresários e latifundiários?

Existe uma estatística que diz o seguinte: das águas de uma represa, ou de qualquer fonte hídrica, 70% dela é utilizada no agronegócio, 20% no uso industrial, e apenas 10% com o abastecimento humano. A estatística existe não só no Brasil, mas no mundo todo. Quando a água do São Francisco abastecer as principais represas do Nordeste, elas irão ter os usos que mencionei.

Quais são, na sua opinião, as propostas alternativas que permitiriam apontar uma saída para a seca do Nordeste?

Eu participei de uma caravana onde foram visitadas 11 capitais brasileiras, nas quais foi levada a discussão das questões são franciscanas. Nós escrevemos uma carta para o presidente da República, encaminhada através do governador da Bahia, Jaques Wagner, e do governador de Sergipe, Marcelo Déda, ambos do PT, e que possui uma proposta alternativa para se resolver o impasse que está havendo aí, inclusive com a realização das greves de fome por dom Luíz Cappio.

Como nós sabemos que essa água vai para o agronegócio, principalmente o eixo norte do projeto, a proposta é que não se construa este eixo (norte), e que o canal leste seja substituído por uma adutora que leve as águas do São Francisco para as regiões agrestes dos estados da Paraíba e do Pernambuco, que o Atlas do Nordeste identificou como regiões que realmente têm problemas de escassez de água. E que esta adução seja num volume de 9 metros cúbicos/segundo e não os 28 metros cúbicos/segundo que estão sendo considerados nos canais do eixo leste. Isso resolveria tranqüilamente o problema de abastecimento dessas populações nos agrestes da Paraíba e de Pernambuco. Também propomos o apoio à Asa Brasil nas tecnologias de cisternas, de mandalas, barragens subterrâneas, etc.

Existe o programa de 1 milhão de cisternas em andamento, com mais de 200 mil já construídas, mas nós precisamos acelerar isso. É a nossa proposta, e é viável. Não deixaria de ser uma transposição do São Francisco, mas em volumes adequados à solução de um problema. Hoje, a nossa proposta ainda está em negociação com o governo federal.

E os riscos ambientais da transposição?

O estudo inicial de impactos ambientais, contratado pelo governo federal, feito por consórcios internacionais, levantou 44 vetores de risco, dos quais 11 apenas não deram risco. O resto deu. E o projeto, por incrível que pareça, foi considerado ambientalmente viável. É um absurdo. Foi divulgado, mas pouca gente sabe. Aplicou-se na brincadeirinha R$ 70 milhões. E isso foi feito na época do Fernando Henrique. Que delírio. O governo Lula simplesmente aproveitou um trabalho do seu antecessor e aceitou tudo numa boa.

Cerca de 80% das comunidades que vivem próximas ao Rio São Francisco são desprovidas de saneamento básico e despejam todo seu esgoto no próprio rio. Com a efetivação da transposição, essas pessoas teriam água em bom estado para utilização?

Com certeza não. Vão continuar sem assistência neste sentido. Não está previsto no projeto de transposição a unidade de tratamento do esgoto. Vão pegar a água como está no São Francisco e vão bombear para abastecer o Nordeste Setentrional. Quer dizer, vão levar uma água poluída para dentro dos açudes do Nordeste.

E quais seriam as principais erros da transposição do São Francisco?

O que a gente está precisando hoje é sentar com o governo federal. Negociar a gota d’água disponível. A coisa é muito séria e não se pode, em absoluto, colocar a vontade política acima das possibilidades técnicas. O rio está limitado hidrologicamente, mas há uma vontade do presidente Lula em levar água para o Nordeste Setentrional. E se o fizerem desta forma, volto a repetir, vão pôr em risco todos os investimentos que já foram feitos na Bacia do São Francisco.

O governo federal divulga que a prioridade será o abastecimento humano e animal. O senhor acredita que os verdadeiros objetivos sejam outros?

São outros, obviamente, relativos ao benefício do agronegócio. O grande problema foi que Ciro Gomes e Tarso Jereissati quando assumiram a política do estado do Ceará, em príncipio dos anos 80, estabeleceram um plano de desenvolvimento fantástico. Montaram o estado sobre siderúrgicas, estradas de ferro, indústria, irrigação, construíram um porto em Fortaleza, geograficamente bem localizado. E quando eles colocaram na mesa o plano de desenvolvimento e começaram a avaliar o que havia sido feito, observaram que o estado não tinha água suficiente para conduzir toda aquela estrutura. Aí a idéia foi buscar a água do São Francisco. A coisa foi pensada assim.

Tem que haver um planejamento. Essas vontades políticas não podem estar acima das possibilidades hidrológicas do rio em fornecer aqueles volumes que vão ser demandados. É evidente.

Hoje, Sobradinho, que é a represa que foi construída pela Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco) para regularizar a vazão do rio e não dar problema na geração de energia no Complexo de Paulo Afonso, está apenas com 13% do seu volume preenchido. Uma situação muito parecida com a que ocorreu em 2001. O governo federal, naquele momento, começou a torcer para que chovesse, só que não choveu o suficiente para elevar o nível dessa represa. Vamos estar na dependência novamente, este ano, de São Pedro. É rezar para que chova, porque senão vamos ter problemas sérios futuramente de energia.

Qual será o impacto na produção de energia?

Eu peguei um cálculo da própria Chesf que diz que para cada metro cúbico por segundo bombeado do rio, deixa-se de gerar no final de um ano, 22 mil megawatts, o equivalente ao abastecimento de energia de uma cidade de cerca de 30 mil habitantes.

O senhor acredita que novas manifestações possam fazer o governo voltar atrás com o projeto da transposição?

Já houve uma greve de fome do bispo diocesano de Barra (BA), dom Frei Luiz Flávio Cappio em 2005. O governo abriu uma negociação, pois estava em jogo, naquela ocasião, o segundo mandato do presidente. No ano passado, não teve mais isso não.

Eu acho que o governo, agora, não está querendo ceder às pressões. Tanto que o presidente disse, durante a segunda greve de fome do bispo, que ele estava em uma situação delicada, pois tinha que ver a situação da vida de um bispo, mas principalmente de 12 milhões de pessoas no Nordeste. Daí, conclui-se que ele (o governo) parece mesmo irredutível.

Fonte: Tribuna da Imprensa de 14/01/2008.

 


 

 

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João Suassuna estuda a questão hídrica do semi-árido/Foto: Divulgação/Fundaj

O engenheiro agrônomo João Suassuna é um dos especialistas mais respeitados do Brasil quando o assunto é a hidrologia do semi-árido, principalmente em relação ao Nordeste Seco do país, região que o também líder-parceiro da Avina estuda há mais de uma década. Nesta entrevista ao portal EcoDesenvolvimento.org, ele relata parte de sua trajetória como pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, defende a criação de cisternas e critica veementemente o projeto de transposição do Rio São Francisco.

EcoD: Como é que se deu a trajetória profissional do senhor até aqui?

João Suassuna: Eu terminei meu curso acadêmico em 1974. Depois trabalhei durante sete anos no Ibama. Já no início dos anos 1980, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) implantou em Brasília uma coordenação de energia (setor que do final dos anos 1970 até os 80 era prioridade nesse país…), e eu fui convidado a trabalhar nessa área com pesquisas sobre a biomassa, carvão e lenha vegetal, por exemplo. Então trabalhei em Brasília cerca de 10 anos, depois fui transferido para a Agência Nordeste do CNPq, em Recife, para trabalhar num programa de difusão de tecnologia em nível de produtores de baixa renda.

EcoD: É aí que começa o teu interesse pela água no Nordeste?

João Suassuna: Exatamente. Este trabalho junto aos pequenos produtores ampliou minha visão sobre as questões hídricas do Nordeste, como por exemplo levar a água para uma região onde aparentemente não tem. Foi aí que a minha trajetória evoluiu. Mas antes disso vale destacar que a Agência Nordeste do CNPq acabou extinta na gestão do então presidente Fernando Collor de Mello. Então, nos deram a opção de sair de Brasília e migrar para uma instituição federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), foi então que cheguei a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

EcoD: Que conta com pesquisas importantes sobre o desenvolvimento sustentável.

João Suassuna: Isso. O forte da Joaquim Nabuco é a área social. Lá, eu comecei a desenvolver um trabalho voltado para o convívio com o semi-árido e, numa dessas vertentes, tratamos das questões hídricas do Nordeste Seco, e mais especificamente da transposição do Rio São Francisco.

EcoD: E o senhor critica bastante esse projeto. Por qual razão?

João Suassuna: Porque o Nordeste tem muita água. Para você ter ideia, o Nordeste acumulou, em suas represas, algo em torno de 37 bilhões de metros cúbicos d’água – é o maior volume de água represada em regiões semi-áridas do mundo. O que nós não temos ao certo, é uma política específica que faça com que esta água que já existe seja distribuída para as torneiras das populações. E é nesse cenário que o governo federal quer trazer a água do São Francisco para abastecer as principais represas do Nordeste e fazer com que haja o que eles chamam de “sinergia hídrica”.

EcoD: Qual é o significado dessa expressão?

João Suassuna: O impedimento de que as represas sequem. Mas o que precisa estar claro é que o Nordeste tem grandes represas que jamais secarão, mesmo com o uso contínuo dessa água. Então se a água do São Francisco abastecer as principais represas da região, ela acabará sendo usada de maneira errada.

EcoD: Por que?

João Suassuna: Porque essa água não vai resolver os problemas de quem mais precisa: a população difusa do Nordeste. E olhe que estou falando de algo em torno de 10 milhões de pessoas, que no exacerbar de uma seca passam sede e fome.

EcoD: Nesse caso, qual alternativa o senhor propõe?

João Suassuna: Para problemas difusos, você precisa de soluções também difusas. Ao cair nas grandes represas, a água do São Francisco vai favorecer ao grande capital. Lá em Fortaleza, o governo do Ceará está construindo uma siderúrgica que sozinha vai consumir um volume de água capaz de suprir a necessidade de um município de 90 mil habitantes. Então se a água do São Francisco cai na Barragem do Castanhão, que é a maior represa do Nordeste, e que já há um canal que a liga até o Porto de Pecém, lógico que esta água irá abastecer esta siderúrgica. É aí que entra o que nós consideramos como a “indústria da seca”. Estão prometendo abastecer 12 milhões de pessoas no Nordeste com a água do São Francisco, e não vai acontecer isso. Essa água será utilizada para o agronegócio, e é aí que temos investido o nosso trabalho. Nós temos 74 artigos publicados na internet denunciando essa realidade.

EcoD: A construção de cisternas é uma boa alternativa?

João Suassuna: Sem dúvida. Não é um canal de transposição que vai resolver os problemas socioeconômicos dos que mais precisam, no caso, a população difusa. Ora, se hoje, nas margens do São Francisco você já tem problemas de desabastecimento, não é um canal que vai receber tal impasse, porque nesse projeto não há a previsão de uma distribuição razoável dessa água para resolver o problema. Simplesmente não há.

Por intermédio da Agência Nacional das Águas (ANA), o governo federal editou o Atlas Nordeste de Abastecimento Humano de Água, que busca o abastecimento para 34 milhões de pessoas. Esta sim é uma grande ideia que está sendo implantada. Abrange um número muito maior de municípios e, pasme: custa a metade do que está previsto na transposição do Rio São Francisco. Esse projeto atende o problema de desabastecimento para os municípios até 5 mil habitantes. De que forma? Com a água que já existe na região, através da adução das águas já existentes nas represas, nos poços, enfim.

EcoD: E o que vem a ser a adução?

João Suassuna: Significa a utilização de tubulações para recalcar essa água, abduzi-la para as populações. Isso resolve o problema de 34 milhões de pessoas da área urbana. Para a área rural, referente às comunidades difusas, que moram nos pequenos lugarejos, grotões, pés de serra, existem alternativas, como as que vem sendo trabalhadas pela ASA Brasil – que desenvolve um programa de 1 milhão de cisternas na região seca do Nordeste. Esse programa já tem cerca de 300 mil cisternas implantadas. Uma cisterna de 16 mil litros resolve o problema de uma família de 5 pessoas durante os oito meses sem chuva na região. O Nordeste seco concentra suas chuvas quatro meses e nos oito meses restantes não chove, então, a cisterna rural abastece essas pessoas com água para beber e cozinhar durante oito meses. Nós temos que incentivar esse tipo de iniciativa, e não um projeto que vai trazer a água do São Francisco, que fica a 500 km do local de consumo, com preços exorbitantes.

EcoD: O senhor também é um defensor das fontes renováveis de energia. Já pesquisava a biomassa vegetal há 30 anos, não é mesmo?

João Suassuna: Verdade. É como eu disse, na época em que a energia era prioridade nesse país. Continuo defendendo essas alternativas aos combustíveis fósseis. O biodiesel também, já que ele também pode ser produzido a partir de oleaginosas como a mamona, a própria soja e o álcool combustível. Fui contra a proposta de implantação da cana de açúcar irrigada no Nordeste Seco para a produção de etanol. Caso acontecesse, seria um desastre. Ainda bem que houve o zoneamento da cana, o que isentou aquela região dessa proposta.

EcoD: Aquele anunciado pelo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, recentemente?

João Suassuna: Exato, em parceria com a Embrapa. Tive conhecimento que projetos nesse sentido seriam implantados no Oeste de Pernambuco, por exemplo, algo em torno de 80 mil hectares de cana de açúcar, com a água do São Francisco. Se hoje já não tem água do São Francisco para abastecer esse povo. Como é que eles querem tirar mais água para irrigar? E a gente sabe que a irrigação é que leva 70% do volume das águas extraídas dos rios. Seria um crime.

EcoD: João, o portal EcoDesenvolvimento.org agradece a tua entrevista.

João Suassuna: Eu é que agradeço.


 

 

Transposição do São Francisco. Uma obra desnecessária. Entrevista especial com João Suassuna

 

Envolvido em questões relativas ao Rio São Francisco há 15 anos, o pesquisador João Suassuna acaba de lançar o livro “A Transposição do Rio São Francisco na Perspectiva do Brasil Real”. A ideia da obra, segundo Suassuna, é esclarecer a existência do projeto para o centro-sul do país. Em entrevista à IHU On-Line, feita por telefone, o pesquisador fala a respeito da situação atual das obras do projeto. “O projeto da transposição do Rio São Francisco vai utilizar esses volumes para abastecer 12 milhões de pessoas no nordeste. Então, se já há um conflito, fisicamente será impossível a retirada desses volumes para o abastecimento do povo”, lamenta.João Suassuna quando recebeu o Prêmio Amigo das Águas em Campina Grande (PB)

Preocupado com o agravamento do processo de desertificação da região nordeste, Suassuna constata que no núcleo de Cabrobró, já existe um deserto praticamente formado, isso pela retirada da vegetação da caatinga para o fabrico de carvão. Este será um impacto crucial, e inclusive já está acontecendo. Sobre as possíveis obras de revitalização do rio, Suassuna garante que tudo não passa de falácia. “O governo Lula deveria apostar todas as suas fichas na revitalização, no replantio de árvores e na reconstrução de matas ciliares, que não existem mais”, diz.

João Suassuna é engenheiro-agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor está lançando este livro sobre a transposição do Rio São Francisco. Quais os aspectos positivos e negativos do projeto?

João Suassuna – 
O São Francisco é um rio com múltiplos usos, mas já houve prioridades dos usos ao longo do tempo. É um rio que tem um potencial gerador de energia elétrica importantíssimo. 95% da energia que é gerada no nordeste são do São Francisco. Ele também tem um potencial de irrigação muito importante. Nas margens do rio, temos cerca de um milhão de hectares para serem irrigados, dos quais 340 mil já estão irrigados, mas já há um uso muito conflituoso entre esses usos. Para termos uma ideia, em 2001, o Rio São Francisco correu com pouca água, e tivemos que racionar a energia no nordeste, onde a coisa foi mais grave, pois as autoridades adotaram os feriadões, já que não havia volume suficiente no rio para gerar energia elétrica. Existe um conflito enorme entre o uso da água do São Francisco para gerar energia e para irrigar. O projeto da transposição do Rio São Francisco vai utilizar esses volumes para abastecer 12 milhões de pessoas no nordeste. Então, se já há um conflito, fisicamente será impossível a retirada desses volumes para o abastecimento do povo.

Estou envolvido com essas questões há 15 anos, isso gerou uma quantidade grande de artigos, tenho cerca de 80 artigos publicados e circulando na Internet. Sabemos que o centro-sul do país desconhece totalmente a existência do projeto, não sabe nem do que se trata. Afirmo isso, pois participei de uma caravana, em 2008, que visitou onze capitais brasileiras, discutindo esse projeto. Da Bahia para baixo, o que observamos é que ninguém estava sabendo absolutamente nada sobre esse projeto. Reuni os 80 artigos que escrevi sobre o tema e transformei-os em um livro. Temos a ideia de divulgar esse livro para o centro-sul do país, para começar a esclarecer ao pessoal do sul a existência desse projeto. Uma coisa interessante é que, quando chegar a hora de pagar essa conta, todos irão pagar, do Oiapoque ao Chuí, pois fazemos parte de uma federação.

IHU On-Line – Qual a situação atual das obras de transposição do rio São Francisco?

João Suassuna – Os eixos leste e norte do projeto, que vão retirar água do São Francisco, da represa de Itaparica e de Cabrobró, em Pernambuco, e levar essa água para o setentrional nordestino, na Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, para abastecer as principais represas do nordeste, já estão com as construções bem adiantadas. Estes canais irão ter 25 metros de largura, 5 metros de profundidade e algo em torno de 700 km de extensão. No final de 2010, com o fim do governo Lula, ele promete que a água do eixo leste chegue à Paraíba. O eixo norte, cuja água será retirada de Cabrobró e vai para o Ceará, será concluído lá por 2012. Essa é a estimativa das autoridades.

IHU On-Line –
 Até esse momento, quais são os impactos sociais, econômicos e ambientais que a obra já causou?

João Suassuna – Os eixos estão saindo do nordeste, uma região semiárida, onde já foram identificados alguns núcleos de desertificação. No núcleo de Cabrobró, já existe um deserto praticamente formado, isso pela retirada da vegetação da caatinga para o fabrico de carvão. O que o exército brasileiro está fazendo com a construção dos canais naquele ponto é agravar o processo de desertificação que já está em curso. Este será um impacto crucial, e inclusive já está acontecendo. Futuramente, teremos impactos na geração de energia e na qualidade da água que irá chegar ao nordestino. A água do São Francisco hoje está muito ruim, em termos de qualidade biológica. Para termos uma ideia, a cidade de Januária, no norte de Minas, está à margem do Rio São Francisco, e sua população bebe água de poços tubulares, cavados pela prefeitura local, pois a qualidade da água do rio está imprópria para o consumo humano. É com essa água, com essa qualidade, que querem abastecer as principais represas do nordeste. Se fizerem isso, levarão um problema de saúde pública enorme. Teremos problemas de hepatite, esquistossomose, xistossomose, entre outras doenças veiculadas pela água.

IHU On-Line – As obras de revitalização do S. Francisco, conforme o prometido, estão em andamento?

João Suassuna – Isso é uma falácia. Inclusive, o programa de revitalização deveria ser a “menina dos olhos” do governo Lula, e não está sendo. O governo Lula deveria apostar todas as suas fichas na revitalização, no replantio de árvores e na reconstrução de matas ciliares, que não existem mais. O São Francisco é um rio de barranco, e um rio sem mata ciliar sofre com um desabarranqueamento natural, e esse material será carreado para a calha do rio, irá assorear tudo, irá impedir a navegação, como já está impedindo, e irá diminuir a vazão do rio. Deve haver um trabalho sério no tratamento dos esgotos, que estão sendo lançados in natura para dentro da calha do rio. O governo Lula deveria estar apostando todas suas fichas neste tipo de obra e não está. No Orçamento Geral da União, no ano passado, foram reservados um bilhão de reais para o projeto da transposição do Rio São Francisco. Para a revitalização, 100 milhões, dez vezes menos. Não consigo acreditar num programa desses.

IHU On-Line – E aí entram projetos de saneamento básico?

João Suassuna – 
Existem muitas cidades na orla do São Francisco onde já se começou alguma coisa neste sentido. É um trabalho que está sendo iniciado agora, mas já existe uma preocupação. Porém, a bacia do São Francisco são 640 mil km². Existem trabalhos pontuais e que precisam ser acelerados e implementados, pois ainda é feito muito pouco.

IHU On-Line – Existem alternativas à transposição?

João Suassuna –
 Existem sim. O próprio governo federal apresentou esse tipo de alternativa através de um trabalho da Agência Nacional de Águas (ANA), que editou em dezembro de 2006, o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água. O governo e as autoridades mostram que é possível resolver os problemas de abastecimento de município com até cinco mil habitantes, com água de boa qualidade, que já existe na região nordeste. Temos 70 mil represas no nordeste, que acumulam um potencial de cerca de 37 bilhões de metros quadrados de água. É o maior valor represado em regiões semiáridas do mundo. Existem regiões sedimentares onde é possível perfurar poços e obter água de subsolo. Tudo isso está sendo previsto pela ANA, que colocou isso no Atlas Nordeste, para resolver os problemas de 34 milhões de pessoas no nordeste. Inclusive, é um programa bem mais abrangente do que o da transposição do Rio São Francisco, que visa o abastecimento de água para apenas 12 milhões de pessoas, e com a metade dos custos previstos pelo programa da transposição. Para a transposição, está previsto um custo de 6,6 bilhões de reais, na primeira fase. O Atlas Nordeste prevê a metade disso, 3,3 bilhões de reais, para ter um programa de abastecimento bem mais abrangente, abastecendo cinco vezes mais pessoas no nordeste.

Porém, também temos uma população que chamamos de difusa, falo algo em torno de 10 milhões de pessoas, que vivem nos pés de serra e nos pequenos vilarejos. Para esse tipo de população, a solução é através de um programa que está sendo desenvolvido pela Articulação no Semi-Árido Brasileiro, ASA Brasil, uma ONG que congrega 600 outras ONGs que trabalham a convivência com o semiárido. Essas ONGs estão propondo alternativas interessantes de abastecimento através de barragens subterrâneas e de cisternas rurais. Só de tecnologias na área hídrica, a ASA Brasil tem mais de quarenta. O trabalho da ASA Brasil resolveria os problemas dessas populações difusas do nordeste. Nossa visão é que, para a solução dos problemas de abastecimento do povo nordestino, teríamos que contar, necessariamente, com o trabalho da ANA e da ASA Brasil.

A transposição do São Francisco seria desnecessária para o nordeste. Não tem o menor sentido, tendo água na região, abdicar o uso dessa água na região e ir buscar água do São Francisco, há 500 km do local de consumo. Isso mostra que a água do São Francisco, ao cair nas principais represas do nordeste, será utilizada no agronegócio, na criação do camarão e no uso industrial. No Porto de Pecém, em Fortaleza, está sendo construída a Ceará Steel, uma siderúrgica que, sozinha, irá demandar volumes equivalentes a um município de 90 mil habitantes. Se a água do São Francisco cair nas principais represas do nordeste, não terá o uso de abastecimento do povo, que é o mais necessitado. Hoje, esse povo, que está sendo abastecido por frotas de caminhões pipa, vai continuar assim. É aí que reside a indústria da seca.

IHU On-Line – A resistência contra a obra cessou?

João Suassuna –
 Não acabou não, a resistência continua, e essa situação irá se agravar porque, neste ano, teremos eleições. É possível que os candidatos utilizem essa obra como a panacéia da solução de tudo, e não será. Nossa preocupação é essa, é que isso sirva como moeda de troca para voto. Isso, certamente, irá acontecer. Eles irão centrar as campanhas no nordeste para o abastecimento das pessoas, e utilizarão como pano de fundo o projeto da transposição. Mas sabemos que isso terá um engodo, porque o abastecimento das populações não irá se proceder com esse projeto, que vai se utilizar da água para o agronegócio.

IHU On-Line – Em sua opinião, quem vai se beneficiar com a transposição do São Francisco?


João Suassuna –
 Os beneficiários da transposição do São Francisco serão as empreiteiras, os industriais, o grande capital. O povo está sendo iludido, não terá acesso a uma gota d’água sequer da transposição. Não está claro no projeto como essa água sairá das grandes represas para abastecer o povo. Está claro que a água irá caminhar nos 700 km de canais e abastecerão as principais represas do nordeste, para promover aquilo que as autoridades estão chamando de sinergia hídrica, que é a forma dessas represas não virem a secar. Mas essas represas foram dimensionadas para nunca secarem, porque elas têm volumes suficientes para aguentarem secas sucessivas, mesmo com o uso continuado de suas águas.

IHU On-Line – O senhor considera que essa obra aumentará no futuro a popularidade de Lula no Nordeste ou funcionará ao contrário, ficará como uma herança maldita do seu governo?


João Suassuna –
 Do jeito que está sendo construída, ela está sendo orientada ou divulgada para resolver o problema de abastecimento do povo. Futuramente, quando o povo começar a raciocinar no sentido de as águas do São Francisco estarem sendo utilizadas para o agronegócio, e não para o abastecimento, haverá uma espécie de revolta popular no nordeste.

 

Publicado originalmente no site Racismo Ambiental em 27/07/2010

 

 

 

 

 

Redação

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