José Eduardo de Resende: No capitalismo tecnológico o trabalhador continua totalmente dependente

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Desembargador José Eduardo de Resende Chaves Jr.: No capitalismo tecnológico o trabalhador continua totalmente dependente

por Rubens Goyatá Campante

O livro “Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano”, lançado recentemente, aborda uma questão crucial para o universo do trabalho: as novas formas de prestação de serviços por meio de plataformas eletrônicas, sob uma lógica descentralizada que promete cooperação social e autonomia para os trabalhadores. A obra foi organizada por José Eduardo de Resende Chaves Júnior, Bruno Alves Rodrigues e Ana Carolina Reis Paes Leme, Desembargador, Juiz e Servidora, respectivamente, do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, e apresenta textos de magistrados, professores, advogados e servidores sobre as novas tendências de organização do trabalho no capitalismo tecnológico.  Cumprirão, tais tendências, suas promessas emancipatórias?

Os textos reconhecem esse potencial nas novas tecnologias, mas advertem que elas também podem ser usadas como novas formas, mais sutis e efetivas, de exploração desenfreada do trabalho. Para evitar isso é fundamental que não só os trabalhadores, mas o Estado e o Direito, saibam distinguir o joio do trigo, como afirma o Desembargador José Eduardo de Resende Chaves Jr. O Direito do Trabalho atual enfrenta dificuldades nesse ponto, garante ele: “por um lado, sufoca as autênticas iniciativas de economia solidária que as novas tecnologias suscitam e, por outro, não tem instrumentos para reprimir a captura que o neocapitalismo cognitivo perpetra contra a colaboração social em rede”.

Separar o joio do trigo, porém, nem sempre é fácil. Os motoristas do Uber, por exemplo, caso típico desses “novos trabalhadores” via plataformas eletrônicas, são empregados ou autônomos?

Nas Varas do Trabalho de Belo Horizonte, neste ano, duas sentenças judiciais já consideraram os motoristas do Uber autônomos, sem qualquer vínculo empregatício com a mesma. Outras duas sentenças, uma delas revertida no julgamento de segundo grau, consideraram-nos empregados. Os argumentos que negam a relação de emprego salientam a liberdade dos motoristas para decidir sobre quando e quanto irão trabalhar e o fato de que são donos dos instrumentos de trabalho, o veículo e o celular. Os argumentos que reconhecem a relação de emprego sustentam que a empresa dirige, de fato, o trabalho, pois determina o preço e a forma de pagamento do serviço, o padrão de atendimento, centraliza o acionamento do condutor e recebe o pagamento, repassando uma parte definida por ela ao motorista. Ela também define, unilateralmente, as penalidades aos trabalhadores que infringirem suas normas de serviço.

Considerar que motoristas do Uber e trabalhadores assemelhados são, na verdade, empregados denota um raciocínio jurídico e social que não fica preso a doutrinas e interpretações estritas da ordem jurídica, as quais exigem uma subordinação explícita, literal, presencial, para reconhecer a relação de emprego. Tal subordinação clássica, típica do sistema de produção fordista, começou a ser relativizada, ainda na década de 1990, pelo sistema toyotista, que se norteava pela flexibilidade tanto da produção quanto do ordenamento trabalhista. E já não existe na chamada “empresa pós-material”, prestadora de serviços. Se não existe, o trabalhador dessas empresas seria, realmente, um co-laborador, um parceiro em igualdade de condições com a empresa? Certamente não.

Pois o cerne da relação entre trabalhador e empresa, no capitalismo de ontem e hoje, é a assimetria de poder entre ambos, a condição de dependência do trabalhador frente à empresa. A rígida subordinação de padrão fabril do fordismo clássico – que ainda predomina em certos setores da economia – é uma mera consequência, um mero encaminhamento histórico dessa situação de assimetria e dependência, a qual pode continuar sob outras formas, como acontece na conectividade reticular do neocapitalismo tecnológico e cognitivo. Para esse novo capitalismo, como bem lembrou o desembargador José Eduardo de Resende Chaves Jr. “não interessa a disciplina individual, que é cara e trabalhosa, pois é mais eficiente deixar um exército de mão de obra disponível, intermitentemente, convocável por um clic do aplicativo”.

Para os que alegam que o trabalhador é livre porque possui, teoricamente, a faculdade de não responder a esse clic, lembremos que, nos primórdios do capitalismo, o trabalhador não era mais, em termos legais, um servo ou um escravo, era “livre”. Livre para trabalhar 12 ou 14 horas por dia, 7 dias por semana, ou…..morrer de fome.

O Direito do Trabalho nasceu para fazer frente a esse discurso forçado de liberdade. Partiu do pressuposto de uma diferença de recursos real, inarredável, entre patrão e empregado, malgrado o formalismo jurídico excessivo enxergar o contrário, e propôs que cabia à Lei reequilibrar essa situação. Vejamos se fará jus à sua história e vejamos o que o Desembargador José Eduardo de Resende Chaves Jr tem a dizer sobre isso. (Rubens Goyatá Campante)

 

PERGUNTA: A tecnologia, de forma geral, pode ser utilizada tanto para a emancipação e colaboração sociais quanto para a opressão e exploração dos mais fracos pelos mais fortes. No caso dessas novas tecnologias de comunicação e compartilhamento, como fazer para, como dizem os senhores, “separar o joio do trigo”? O Direito do Trabalho, especificamente, está preparado para agir dessa maneira?

JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES JR.: É importante distinguir a mera economia de compartilhamento tecnológico do chamado consumo colaborativo. Economia do compartilhamento (Sharing economy) é um conceito que vem se disseminando de uma forma indiscriminada, muitas vezes sem o devido cuidado mais acadêmico.  Para esse novo mundo da produção existem várias designações, tais como, On-demand economy, Circular economy, Collaborative economy, Peer-to-Peer (P2P) economy, Net economy, Reputation economy, Trust economy, Hypster economy.

Essa ideia da economia do compartilhamento vem se expandindo e se beneficia de uma aura humanista e até civilizatória de solidariedade, de generosidade, de gentilezas, enfim de colaboração. Mas a dura realidade dos efeitos das novas tecnologias no mundo do trabalho revelam uma outra faceta, opaca e com aumento exponencial das formas de exploração do ser humano que trabalha.

Há de fato uma outra perspectiva de emancipação no uso das ferramentas tecnológicas de comunicação e informação, pois elas facilitam o acesso às informações e aceleram de forma exponencial a interação entre as pessoas e grupos de interesses.

Do ponto de vista do consumo, essas ferramentas permitem o compartilhamento social das sobras e excessos, otimizando o gasto e calibrando o uso dos produtos. Viabilizam um consumo mais consciente e uma economia responsável e sustentável dos recursos naturais.

Nesse sentido, o conceito de «consumo colaborativo» apresenta um potencial imenso, como crítica e alternativa concreta, perfeitamente viável, à sociedade de consumo. Os movimentos de software livre da informática precederam essa perspectiva.

A realidade de produção tecnológica, contudo, é bem outra. Energias de dominação têm prevalecido em relação às de emancipação. Sistemas de trabalho em plataformas on line, tais como, o Mechanical Turk da Amazon têm levado a escalas impressionantes de exploração a legião de trabalhadores arregimentados à distância, para execução de micro-tarefas repetitivas e mal remuneradas.

Lucarelli & Fumagalli observam que no capitalismo cognitivo, a acumulação é cada vez mais baseada na extorsão política do produto da cooperação social, como resultado do incremento da socialização da produção, principalmente pela atividade produzida pelas redes sociais. Nesse contexto, o capital apropria-se do “commons”, do conhecimento tácito e codificado da comunidade em rede e acaba por capturar as energias de emancipação que eclodem desse novo meio colaboração produtiva.

Uma alternativa vem sendo estudada pelo Professor Trebor Sholz da New School de Nova York, que identificando os problemas da economia do compartilhamento, apresenta alguns princípios para o que ele denomina de cooperativismo de plataforma, dos quais podem-se destacar os seguintes:(i) a justa remuneração dos trabalhadores, (ii) transparência e portabilidade dos dados dos trabalhadores e também dos usuários dos serviços da plataforma (iii) co-determinação das regras de uso, que devem ser definidas de forma participativa, democrática, com os trabalhadores e usuários, (iv) moldura jurídica protetora, (v) rejeição da vigilância excessiva e (vi) direito à desconexão do trabalho.

 

PERGUNTA: A referência principal para o Direito do Trabalho reconhecer uma relação de emprego e os direitos dela decorrentes é a subordinação, que significa, literalmente, estar sob ordens diretas de outros, ou seja, estar numa posição de assimetria e dependência, que o ordenamento jurídico buscava reequilibrar. As novas formas de trabalho, mediadas pelas modernas tecnologias, afastam aparentemente as ordens diretas e afastariam, assim, a subordinação clássica. No entanto, a assimetria e a dependência dos trabalhadores em relação à empresa continua. O senhor poderia explicar isso, e faço menção a uma frase sua: “para a produtividade da empresa-rede não é mais relevante a rigidez da jornada ou até mesmo a assiduidade individuais. A subordinação passa a ser estruturada de maneira coletiva”?

JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES JR.: O Direito do Trabalho no Brasil tem uma excessiva dependência do conceito de subordinação jurídica, contudo, esse conceito não era utilizado pela CLT, que optara pelo conceito de dependência em seu artigo 3°. A subordinação jurídica só foi positivada na CLT a partir da nova redação de seu artigo 6°, que recebeu o parágrafo único, com Lei 12.551 em 2011.

A doutrina tradicional sempre destinou à subordinação jurídica uma centralidade, que acabou na prática conduzindo a uma concepção autoritária de relação de emprego, em que a dependência social e econômica do trabalhador é adjudicada e legitimada juridicamente como subordinação.

Daí a uma desconexão entre a condição de empregado e à de cidadão titular de direitos fundamentais foi um salto simples, que começou na doutrina e atingiu o seu ápice nos anos 80 e 90 na jurisprudência conservadora do Tribunal Superior do Trabalho de então.

Esse estado de coisas somente começou a alterar-se partir da assimilação pela doutrina trabalhista dos influxos da Constituição de 1988, sobretudo da percepção, tanto no Direito Civil, como no Direito do Trabalho, de que a lei ordinária havia de ser lida a partir da Carta Constitucional – e não o contrário.

Foi longo o percurso ao entendimento de que trabalhador não perde sua condição de cidadão, ao ingressar na orla regulada pelo Direito do Trabalho.  Ao contrário, em sua condição de vulnerabilidade econômica, o cidadão-trabalhador desafia maior grau de tutela de seus direitos fundamentais do que o cidadão comum.

Mas na chamada industria 4.0, a internet das coisas, o algoritmo da inteligência artificial do sistema, oriundo do poder de direção do empreendedor, subordina todos os fatores relevantes para a produção contemporânea. A subordinação jurídica não é mais estratégica para capitalismo tecnológico, nem a disciplina do corpo, da jornada, senão e sobretudo o controle da criatividade, do entusiasmo e da alma do trabalhador.

Sem entrar no mérito da constitucionalidade do chamado contrato intermitente, criado pela reforma trabalhista de 2017, é oportuno perceber que para a produção contemporânea não é mais essencial a plena disciplina individual sobre a gestão do tempo ou da assiduidade do empregado, tanto, que de maneira perturbadora para a concepção autoritária de vínculo empregatício, a Lei 13.467/2017 institui a plena compatibilidade de recusa do empregado ao trabalho com a subsistência jurídica da relação de emprego (§ 3o  do artigo 452-A da CLT)

No capitalismo tecnológico o trabalhador embora tenha um grau maior de liberdade para ir ou não trabalhar, para gerir seu tempo, ele continua totalmente dependente do empreendimento alheio para conseguir trabalhar e sobreviver. Não interessa a disciplina individual, que é cara e trabalhosa, pois é mais eficiente deixar um exército de mão de obra disponível, intermitentemente, convocável por um clic do aplicativo. O controle coletivo, difuso, estatístico  substitui o sistema individualizado de subordinação.

 

PERGUNTA: O senhor já escreveu que, ao contrário dos que dizem que o motorista do Uber não é empregado porque é dono dos meios de produção, ou seja, do veículo e do celular, o verdadeiro meio de produção é o algoritmo do aplicativo, que não é concebido e controlado pelo motorista, mas pela empresa. Esse insight é muito interessante, e faz lembrar uma afirmação do professor José Reinaldo de Lima Lopes, de que a propriedade é, sempre, um regime de exclusão, mas que mudam, ao longo dos tempos, os fatores de quem é excluído, como é excluído, de que é excluído, etc. Será que estamos entrando em uma nova fase do capitalismo em que a propriedade e a exclusão são – senão unicamente pelo menos em boa medida – cognitivas e informacionais?

JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES JR.: A propriedade da terra e depois a do maquinário organizado já foram estratégicas para o capitalismo. Hoje não são mais meios de produção, são meras ferramentas de trabalho, tanto pela financeirização do capital, como pelo seu cognitivismo. São os afetos, as relações de cooperação, a criatividade, a gestão da inteligência coletiva os meios mais estratégicos para o capitalismo pós-industrial.

Para a economia do compartilhamento, no setor de transporte urbano por exemplo, a propriedade do veículo, do celular não tem qualquer relevância econômica. O que é determinante é a propriedade do código-fonte do algoritmo do aplicativo, da infraestrutura de rede,  da marca e o controle sobre a base de dados dos trabalhadores e usuários.

A autêntica reforma trabalhista, se tivesse por intento tornar a legislação mais contemporânea, não deveria ser aquela a desconstruir a progressividade centenária de tutela dos direitos fundamentais dos trabalhadores, mas sobretudo a que percebesse os rumos das novas energias de dominação econômica do capitalismo atual.

Imensas corporações planetárias dominam mercados e trabalhadores, aprisionam a energia da cooperação social, transferem os custos e internalizam de maneira assimétrica os ganhos, passando a atuar, em determinadas hipóteses, como verdadeiro empregador-nuvem.

 

PERGUNTA:  O livro traz vários artigos, não só de autores brasileiros como estrangeiros. Com base nesses artigos e em sua experiência como um magistrado que sempre se preocupou em se conectar em redes internacionais de colaboração científica, como está, de forma geral, o panorama dessa questão da exploração do trabalho humano pelas novas tecnologias de informação?

JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES JR.: A ficha já caiu tanto para a doutrina, como para a jurisprudência nos países centrais.  Por exemplo, tanto as Cortes Trabalhista de Londres, como a do Distrito Norte do Vale do Silício, de tradição fortemente liberal, já perceberam que é ilusória a autonomia que a economia do compartilhamento tecnológico propicia aos trabalhadores. A esperança que fica é que o complexo de vira-latas e colonialismo acadêmico possam favorecer, pelo menos quanto a este ponto, uma evolução em nosso país.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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