Junho de 2013 e suas adjacências, dois anos depois, por William Nozaki

Junho de 2013 e suas adjacências, dois anos depois, por William Nozaki

Projeto de desenvolvimento e novos atores

No final da década de 1980, início do período da abertura democrática, o sociólogo Eder Sader publicou seu impactante estudo sobre os movimentos sociais e populares da cidade de São Paulo, “Quando novos personagens entraram em cena”. Tratava-se de tematizar a emergência de novos sujeitos coletivos à partir do novo sindicalismo, das comunidades eclesiais de base, das organizações de esquerda, dos movimentos contra a carestia e das associações de bairro. Guardadas as devidas proporções e o necessário cuidado com as aproximações históricas, algo análogo pode se observar atualmente com o avanço de movimentos como o MTST, o MPL, os diversos coletivos de intervenção urbana nas ruas ou de articulação política nas redes, as estratégias grevistas que ultrapassam a representação sindical ou mesmo as táticas violentas de atuação de grupos black blocs.

Nos últimos anos, um novo padrão de desenvolvimento resultou no crescimento dos mercados de trabalho e de consumo, na melhora da distribuição de renda e na redução da pobreza e da miséria. A mobilidade social resultante desse processo criou condições para que, assim como nos anos 1980, novos personagens entrassem em cena, com novas demanda urbanas, novas expectativas sociais e novos desejos individuais. No entanto, o esgotamento relativo e as contradições desse projeto explicitaram, em 2013, uma nova agenda de demanda por direitos.

De alguma maneira, a potência dos milhares que ocuparam as ruas e se expressaram nas redes se inscreve em uma trama mais ampla que envolve a criação de um novo tecido social e no surgimento, uma vez mais, de novos personagens entrando em cena. Talvez seja lícito supor que tais manifestações são, a um só tempo, a resposta e o resultado das contradições de uma democracia que se consolida no momento de consolidação da própria economia do consumo de massa. Nesse sentido, Junho de 2013 é uma espécie de momento de síntese e de condensação das mudanças na estrutura social que vieram ocorrendo ao longo do último período. Vejamos.

A criação de uma nova linguagem política

As manifestações de Junho de 2013 levaram às ruas uma multidão não organizada, ao invés de microfones e carros de som observavam-se baterias e gritos difusos, feito posts vocais pululando no facebook; no lugar de bandeiras unívocas tremulando havia pequenos cartazes subindo e descendo como tags que se alternavam em um twitter; as manifestações não paravam em um ponto a fim de pedir negociação, mas circulavam feito um imenso fluxo de informações; em igual medida, não haviam roteiros claros e ordenados previamente, mas rotas difusas e variadas que se encontravam e desencontravam à moda de uma rede virtual. Mas tal efeméride, cabe atentar, pôde produzir tanto a fluidez do movimento quanto a fugacidade do projeto político por ele expresso, na medida em que estratégias políticas pareciam ceder lugar à táticas de publicidade, propaganda e marketing.

O que foi o fenômeno dos “rolezinhos”, em São Paulo, se não o sintoma da ausência de espaços públicos de sociabilidade e o desejo legítimo de integração ao espaço privado do consumo? Aquela camada periférica outrora excluída do mercado de consumo agora demandando seu quinhão no estilo de vida da nossa elite ostentação, nesse caso: a positiva ressignificação do shopping center, que deixava de ser mero templo da mercadoria e passava a se transmutar em espaço de convivência entre pessoas, ombreia com a problemática demanda por um sociabilidade que negocia a cidadania em troca do consumo.  

De forma análoga, o que foi a greve dos garis, no Rio de Janeiro, se não a expressão do descaso com os serviços urbanos e do esgotamento das formas tradicionais de organização dos trabalhadores? Aquele grupo de profissionais antes inauditos e alijados dentro do mercado de trabalho, agora apresentava sua própria voz sem intermediários ou representantes, conquista salarial e organização sindical não necessariamente se articulavam de forma diretamente proporcional, uma passagem louvável, mas tênue entre a recusa do coletivismo e a defesa das vozes individuais, à moda da equivocada fórmula liberal onde a sociedade é tratada como a simples soma dos indivíduos.

O que tem sido a intensificação das ações black bloc se não uma contrarreação violenta contra a própria violência do Estado e do mercado? Mas, nesse caso, o direito organizado à voz e à identidade de outrora perdem lugar para o gesto caótico e o anonimato mascarado. Do mesmo modo, a consolidação do Movimento Passe Livre enfatiza a centralidade da agenda urbana, para além da agenda trabalhista, e conforma um esboço de organização horizontal, tentando ultrapassar a verticalidade das representações. Mas nos dois casos, a recusa contra a democracia representativa desagua em posturas de falta de diálogo e de repulsa à negociação com o Estado, tratando o poder constituído como uma espécie de serviço de atendimento ao consumidor, que precisa responder imediatamente uma “troca de produto” ou uma “melhora no serviço”.

A lista de exemplos poderia avançar, de norte a sul, com as manifestações ocorridas contra as obras da Copa, ou com as greves selvagens realizadas por trabalhadores nos canteiros de obra dos grandes empreendimentos do PAC, ou ainda com os exemplos de diversos coletivos urbanos que, a partir da micropolítica, tem experimentado diversas formas de ressignificação do espaço público e de tentativas de promoção do “bem comum”, para não mencionar as diversas iniciativas e ensaios de articulação em redes sociais digitais. Mas, para todas essas experiências cabe uma pergunta legítima: qual o limite entre o avanço da politização social e o enraizamento de uma sociedade do espetáculo?    

Essa coleção de exemplos revela inequivocamente um momento histórico de surgimento de novos sujeitos coletivos. Tratam-se de novos atores sociais, com uma nova linguagem política, expressando uma nova ortografia de organização e uma nova sintaxe de mobilização. Sendo assim, uma nova agenda emerge dessa gramática: o direito à cidade, a defesa das liberdades, a ampliação da participação, assim como a criação de uma nova política de segurança pública e de uma nova política de comunicação são pautas vocalizadas de forma recorrente. No entanto, vale perguntar: uma nova linguagem política teria produzido, no mesmo compasso, uma nova cultura política?

As contradições de uma nova cultura política

Não há dúvida sobre a legitimidade e a importância desses atores sociais e de suas agendas políticas. No entanto, é preciso observar com mais atenção suas formas de organização, articulação e mobilização. Há uma linha bastante tênue entre a defesa da nova democracia radical e a atuação com base em práticas do velho liberalismo clássico. Afinal, vale reiterar, as críticas às instituições da democracia representativa podem tanto desaguar na construção da utopia de uma sociedade diversa quanto podem redundar no puro ataque contra o Estado que serve à defesa, ainda que indireta, da lógica do mercado.

Esse conjunto de manifestações assumem seu caráter democrático, mas rechaçam os partidos e a polícia com a mesma veemência, tratando ambos como a mesma representação do Estado; tais grupos trazem consigo muitas ideias acerca do que não se quer, mas não deixam claro qual é sua definição estratégica e programática; tais ações congregam ideias evidentemente conservadoras com propostas essencialmente progressistas, mas nem sempre as incoerências são enfrentadas; a ocupação das ruas produz euforias e catarses, mas o êxtase coletivo passa fácil da politização para a espetacularização; enfim, está clara a existência de um ambiente propício para a mudança, mas não está clara a existência de um projeto explícito de transformação. Muitas vezes o Estado é tratado não como um agente capaz de arbitrar ideias e de negociar interesses, mas como um “Grande Pai” que precisa atender aos desejos e mimos de um “filho insatisfeito”.  

Tais atores tem mais do que razão quando sinalizam para a necessidade de repensarmos e recriarmos nossas instituições políticas, já carcomidas pelos jogos de interesse do patrimonialismo, do patriarcado, do privatismo, e, por isso mesmo, incapazes de expressar o desejo de renovação da sociedade. No entanto, há que se atentar para que a defesa da individualidade não se torne individualismo, para que o horizontalismo não se torne desorganização, para que o estetismo não vire dilentantismo, para que a participação não repudie a representação, para que a falta de líderes não se converta na ausência de projetos, enfim, para que a renovação da política não se transforme em recusa do político. Mas é importante destacar: se tais atores manejam a caixa de ferramentas da política e da vida estetizada e espetacularizada isso se dá, sobretudo, como um sintoma das contradições da própria estrutura social que os possibilitou a existência.

Tais contradições se revelam na complexa conexão entre os resultados obtidas nas ruas de 2013 e nas urnas de 2014. Associar o conservadorismo do parlamento eleito a um suposto conservadorismo das manifestações é um erro, trata-se de confundir causa e consequência, o resultado das eleições proporcionais, na verdade, confirma o diagnóstico daqueles manifestantes que apontavam para o esgotamento das instituições políticas tradicionais. Mas, supor a existência de uma verve puramente transformadora e progressista nas manifestações é também um equívoco, pois muitos dos que defenderam as inovações da micropolítica das ruas em 2013 reproduziram os piores atavismos e arcaísmos no processo eleitoral de 2014.

Por um lado, analisar Junho de 2013 como um acontecimento inédito e isolado, responsável pelo surgimento de um espírito radical de mudança, traz o risco de leituras românticas, com muita utilidade para juntar nano-confrarias laudatórias e pouca serventia de interpretação; por outro lado, avaliar Junho de 2013 como mais um capítulo do avanço conservador das classes médias, produz a distorção de leituras ressentidas, marcadas por resmungos e muxoxos que turvam a capacidade de leitura do que de mais importante há nesse novo cenário: a criação de um novo tecido social no país.

Distâncias entre novos e velhos atores sociais

A produção de interpretações dicotômicas tem feito com que a esquerda tradicional trate essas novas manifestações políticas como ações de anões manipulados, ao passo que os novos personagens tratam relevantes atores de esquerda como tiranos anacrônicos, com isso as forças transformadoras e progressistas se dispersam abrindo espaço para o avanço do regresso conservador.

Nesse cenário, vale reiterar: a crítica contra os limites da representação se transforma em rechaço contra a democracia em geral; a demanda por universalização de direitos se transmuta em disputas individuais pelo acesso ao consumo; a ampliação de serviços e equipamentos públicos se equipara à crítica contra o Estado e em favor do mercado; a construção da sociabilidade coletiva cede espaço ao avanço da meritocracia individualista; a justiça é substituída por linchamentos públicos acompanhados de todo tipo de violências físicas e simbólicas; as políticas sociais perdem espaço para as diversas formas de criminalização e naturalização da pobreza; a fé e a igreja deixam de ser mecanismos de promoção da solidariedade para se tornarem espaços de perpetuação da intolerância e a luta contra a corrupção se converte na repulsa contra a política em geral.    

Enquanto isso a nova direita avança criando um clima político insalubre de virulência e ódio. A barreira de contenção para o avanço do conservadorismo depende de pelo menos dois fatores: que os novos atores sociais se articulem em redes tornando sua micropolítica um macropoder mais robusto, com capacidade de pressionar e influenciar na grande política; e que os atores da política institucional compreendam que suas ações e formulações não comportam mais a nova dinâmica social e que, portanto, se abram para o novo e para as novas formas de se fazer política. A estrutura social segue em permanente movimento, o sentido do seu deslocamento será sempre uma disputa incessante.

 

William Nozaki

6 Comentários

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  1. Mais um que acredita que

    Mais um que acredita que junho 2013 teve sua importância…

    Junho foi nada x nada!

    Um niilismo total! só serviu para derrubar a popularidade de dilma que antes de junho era de 65%, endurecendo assim as eleições e como barriga de aluguel para as manifestações do impeachement!

     

    Não se mudou nada em relação a politica brasileira. Pelo contrario piorou!

    1. Nem tanto, nem tao pouco

      Achei até o texto equilibrado, nao caiu no endeusamento das manifestaçoes, como alguns iludidos daqui, criticou os pontos fracos delas e as consequencias que ajudaram a criar, mas viu ao mesmo tempo viu a legitimidade das demandas subjacentes e o novo quadro social por tras delas. O fato do movimento ter sido instrumentalizado e manipulado nao impede que eletenha representado tb, sobretudo no início, novas vozes oriundas de mudanças sociais importantes que precisam ser vistas.

    2. Concordo. E acho também que

      Concordo. E acho também que teve o dedo da CIA e outras organizações estrangeiras aí. Foi tudo muito estranho, e agora os EUA indo para cima da FIFA..eles mataram dois coelhos com uma cajadada só, prejudicaram o Brasil e a FIFA ao mesmo tempo, dois que estão ameaçando a hegemonia deles. Ficou tudo muito parecido com a primavera arabe, a revolução na Ucrânia…

  2. “As manifestações de Junho de

    “As manifestações de Junho de 2013 levaram às ruas uma multidão não organizada”… É, claro, todo mundo teve a mesma ideia por acaso. Mera coincidência. Desde o primeiro momento esteve claro que aquilo serviria à direita mais radical. O objetivo velado era o de sempre: detonar o PT e, de quebra, a esquerda.

  3. A velha e conhecida análise do fim do século XIX.

    Atribuir os movimentos de 2013 um caráter especificamente endógeno da população brasileira é ignorar o que ocorreu pelo mundo em movimentos de contestação com muita semelhança a este.

    Ignorar que as ditas “redes sociais” como Facebook, YouTube e outras não são manipuladas externamente é de uma tal ingenuidade e não conhecimento de todos os estudos sobre o uso destas para influenciar a política e o descontentamento das populações via redes que foi transparecido claramente em “Experimental evidence of massive-scale emotional contagion through social networks“, onde mostra claramente e explicitamente que há condições de manipular a opinião pública incutindo nestas sentimentos de descontentamento difuso claramente detectado nas manifestações de 2013.

    Este artigo despertou na comunidade científica mundial um interesse espantoso, em ano e meio de sua publicação ele já gerou mais de 200 referências em as mais diversas publicações científicas, vendo-se que a manipulação dos sentimentos difusos das populações é um assunto que assume vital importância na realidade política nos dias atuais.

    Por exemplo, quando se abre o YouTube para qualquer coisa, são propostas doze sugestões de vídeos que muitos deles não correspondem ao seu perfil. Se o internauta tiver assistido um vídeo de tendência da direita as sugestões serão somente deste tipo de manifestação. Experimentem assistir um vídeo de uma das preciosidades brasileiras, como um dos vídeos do Olavo de Carvalho e vinte vídeos de apoio ao governo federal. Pela lógica deveriam vir vídeos de acordo com a maioria dos vídeos assistidos, porém se tentarem verão que não é bem assim.

    Por estes motivos digo que a velha e conhecida análise do fim do século XIX que procura buscar uma lógica pré-manipulação maciça da informação não serve para nada, estamos em outra era e temos que adaptar as análises levando em conta novos parâmetros.

  4. o retorno do reprimido
    o x desta questão sobre junho de 2013 e as manifestações subseqüentes do “NãoVaiTerCopa” é: eu estava lá? eu vivi aquilo? ou minha informação é indireta? sendo uma informação indireta, eu a obtive acompanhando a transmissão ao vivo da Mídia Ninja? eu assisti os inúmeros vídeos produzidos pelos mídia ativistas?

    ou seja: como formei minha opinião? por contato direto? por contato indireto? ou sem nenhum contato? não se trata de desqualificar a opinião de quem não teve contato com as manifestações. mas sim de qualificá-la: opinião de quem não teve contato direto ou indireto, formada por intermediação posterior.

    o texto do post é legal justamente porque não é unilateral e sim reflexivo. busca se relacionar com o assunto e não ser apenas conclusivo e taxativo. mas não me parece também ter sido elaborado por alguém de acompanhou de perto as manifestações, principalmente o “NãoVaiTerCopa”. não me parece também ter tido muito contato como os manifestantes. e para esta impressão tenho como referência exclusivamente o próprio texto.

    este é um tema complexo e absolutamente imprescindível para compreender todas, absolutamente todos, as grandes questões atuais. como tudo que foi suprimido, irá retornar, não apenas como sintoma (com a Esquerda expulsa das ruas, a Direita ocupa o vácuo em 15/03 e 12/04 de 2015) mas para ser resgatado.
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