Lembranças de Rosário e Buenos Aires

A primeira vez que ouvi Ariel Ramirez, foi como se alguma laivo de memórias ancestrais penetrasse em meu cérebro. O mesmo impacto me causou Eduardo Falu e suas tonadas maravilhosas. E as peças de Gustavino, nas quais celebrava os personagens comuns da sua vida, com um toque de gentileza que lembrava meu pai.

Só algum tempo depois descobri que o monumental Ramirez, autor da Missa Criolla, era rosarino, nascido em Rosário, província de Santa Fé, na mesma cidade e no mesmo ano de meu pai. E rosarinos eram também Falu e Gustavino.

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Cerca de dez anos atrás passei um réveillon em Buenos Aires apenas pela possibilidade de conhecê-los pessoalmente. E a Félix Luna, o notável historiador, compositor e musicólogo que visitei pela primeira vez nos anos 80, quando a Argentina começava a despertar para a democracia. É dele e Ramirez uma das canções mais gravadas na história do continente: Alfonsina e yl Mar

[video:https://www.youtube.com/watch?v=KcC2YxzXdVQ

Encontrei Falu na festa de fim de ano da Ordem dos Músicos. E ele me apresentou Ariel Ramirez, de quem colhi os últimos momentos de lucidez, já com problemas sérios de memória.

Ariel morreria pouco depois. Falu e Luna, no ano passado.

Dias atrás, visitando o Museu Malba, em Buenos Aires, deparei-me com as obras de Antonio Berni, um misto de Portinari, Millor, Jaguar e muito mais. Nova emoção profunda que deixou sem fala, tal o impacto de seus quadros, colagens, bricolagens, esculturas.

Eugenia me despertou do impacto: Adivinhe onde ele nasceu. Em Rosário, respondi de pronto, sem nada saber sobre ele. E era.

No dia seguinte fomos até à Travessa Três Sargentos, de frente para o Porto Madero, ao lado do início da Avenida Córdoba. Lá meu avô Luiz instalou seu comércio no início do século.

Foi uma mudança drástica. Ele saiu do Líbano, no grande êxodo de fins do século 19. Passou pela Bahia, depois São Paulo, onde ficaram os seus irmãos. Seguiu para Rosário, onde instalou comércio, tornou-se próspero, espalhou vendedores pela Argentina comercializando o veludo e outros tecidos. Tornou-se o patriarca da colônia libanesa, mediando os conflitos. E muito amigo de um arquiteto de sobrenome Guevara que, anos depois, teria um filho bem encrenqueiro.

Anos depois conheceu Carmen Abdalla, de família de Mendoza. Muitos anos mais nova, vó Carmen foi acometida de tuberculose. E, com mais de 50 anos, vô Luiz vendeu seus negócios em Rosário e rumou para Buenos Aires. Montou comércio na região do Porto Madero e comprou uma chácara em Quilmes para vó Carmen se cuidar.

Tiveram cinco filhos e muitos abortos, por conta da doença. O caçula foi seu Oscar.

A morte de Carmen abalou vô Luiz, que entrou em depressão profunda. Do Brasil veio um primo, tio do Armando Bogus, para ajudá-lo nos negócios, enquanto se recuperava do baque. Jamais de recuperou. Anos depois, ele e os filhos chegavam ao Brasil, deixando na Argentina o apartamento de Buenos Aires, a quinta de Quilmes, a casa de Mar Del Plata, trazendo consigo apenas a senhoridade e uma aparência digna, até quando se dispunha a carregar sacas de café, enquanto não refazia a vida.

Chegou primeiro em São João da Boa Vista/ Tornou-se vizinho da família Rehder. Lá, a mais buliçosa das tias, a Tala, escandalizava os sanjoanenses andando de calças compridas com sua amiga Pagu, futura musa dos modernistas brasileiros. Ainda na adolescência, a tuberculose também a levou. E teria levado tias Marta e Rosita não fosse a descoberta da penicilina.

De São João foi para Poços, provavelmente devido à certa semelhança com Mendoza e também ao cosmopolitismo da cidade.

Recomeçou, montou sua loja e alfaiataria. Mas um derrame o prostrou de vez.

Anos depois, tio Felipe voltou para a Argentina mas, depois da morte dos velhos, perdemos contato definitivo com os parentes, até o aparecimento das redes sociais.

Em cada ida à Argentina busco vestígios do início, dos momentos que fizeram vô Luiz juntar as tralhas e embarcar para o Brasil. Desta vez, na visita à velha loja.

Hoje em dia tornou-se estacionamento para os carros da presidência da República. Na garagem, me contou que o governo desapropriou os imóveis antes de 1920.

Como dizia Lindolpho Carvalho Dias sobre meu pai: Com nove anos ele era argentino; com nove anos e um dia de Brasil, tornou-se mineiro. Mas foi lá por volta dos meus 10 ou 12 anos, que tio Felipe enviou-nos um disco com Atahualpa Yupanqui tocando Zamba de Vargas. E aquele som me acompanhou a vida toda. Através dele – e com a ajuda da Internet – fui descobrindo Falu, Ramirez, Luna e, acima de tudo, Rosário.

[video:https://www.youtube.com/watch?v=jvGCVGqqh_U

Quando Libertad Lamarque foi se apresentar no cassino, o jovem farmacêutico e colaborador do Diário de Poços, telefonou para o Pálace e se apresentou como seu conterrâneo. Contam as lendas que dali nasceu um breve flerte.

Provavelmente, lendas urbanas. Dia desses recebi xerox do jornal da época, com a reportagem feita pelo jovem Oscar com a bela Libertad.

[video:https://www.youtube.com/watch?v=KAqCwEfZ9Kc

 

Luis Nassif

6 Comentários

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  1. kamel este é jornalista, este é jornalismo

    Tá vendo kamel, tá vendo a formação, tá vendo a dignidade. Você kamel é somente um fundamentalista raivoso e bastante obtuso, não conhece a serenidade, não conhece p.. ne…

  2. Nassif, sempre surpreendente…

    …Não tinha ideia desta origem santafecina. Tenho também um vínculo umbilical, por razões que desconheço, com a Argentina. Particularmente com Buenos Aires e Mendoza. Fruto, creio, das lembranças de uma infância de tanto ouvir Mercedes Sosa.

     

    Em casa ouvia-se muita música clássica, mas a peça que me fez definitivamente mergulhar nela foi Misa Criolla, quando tinha uns onze anos, num LP com a voz de José Carreras. O mesmo LP trazia ainda Navidad Nuestra, com seu “mi navidad, está metida en el veranos…papá Noel en mi país és un extraño!” e “Mi navidad…no llega nunca entre negros”.

     

    Tempos atrás, depois de ter resolvido ressuscitar e ampliar minha coleção de LPs, chafurdando num desses mercados de pulgas em San Telmo, creio, eis que encontrao duas preciosidades: María de Buenos Aires (Piazzolla e Ferrer) e “Los Caudillos”, um poema épico em forma de Cantata, para voz solo, coro e orquestra. Composta com Felix Luna, que traz cantos dedicados a Artogas, Güemes, Ramírez, Quiroga, Rosas, Alem e Varela. Assim como faria na Misa Criolla depois, cada canto representa um estilo regional argentino, como o Zamba Riojano, a Vidala Chayera, o Aire Sureño, o Candombe, a Chacarera e a Milonga. Precioso (ainda que não tão belo quanto a Misa Criolla).

     

    Obrigado por resgatar e compartilhar essa história!

     

     

     

  3. Se o Nassif for escrever a

    Se o Nassif for escrever a história de sua vida  um bom ponto de partida seriam suas referências musicais. Todas as suas histórias tem uma trilha sonora. E bem eclética. Das histórias que li aqui no blog tem guarânia, música caipira, música clássica, muito chorinho, bossa nova, mpb, agora tonada.

  4. Belo relato. Buenos Aires,

    Belo relato. Buenos Aires, como qualquer grande cidade, luta por seguir adiante, sem perder, no entanto, a grandeza de sua história. Bela cidade, grande povo, sigo devoto de Nuestra Señora del Buen Aire.

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