Lista de Livros: Investigação Sobre o Entendimento Humano (Os Pensadores) – David Hume

Lista de Livros: Investigação Sobre o Entendimento Humano (Os Pensadores) – David Hume

Editora: Nova Cultural

ISBN: 978-85-1300-852-2

Consultoria: João Paulo Gomes Monteiro

Tradução: Leonel Vallandro

Opinião: regular

Páginas: 352

     “O caminho da vida, o mais agradável e o mais inofensivo, passa pelas avenidas da ciência e do saber; e, quem quer que possa remover quaisquer obstáculos desta via ou abrir uma nova perspectiva, deve ser considerado um benfeitor da humanidade.”

*

     “O raciocínio exato e justo é o único remédio universal adequado a todas as pessoas e aptidões, o único capaz de destruir a filosofia abstrusa e o jargão metafísico que, mesclados com a superstição popular, se tomam, por assim dizer, impenetráveis aos pensadores descuidados e se afiguram como ciência e sabedoria.”

*

     “A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas e aparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição.

     Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas ideias compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude e podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosófica: todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas.

     Para prová-lo, espero que serão suficientes os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a ideias tão simples como eram as cópias de sensações precedentes. Mesmo as ideias que, à primeira vista, parecem mais distantes desta origem mostram-se, sob um escrutínio minucioso, derivadas dela. A ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investigação até a extensão que quisermos, e acharemos sempre que cada ideia que examinamos é cópia de uma impressão semelhante.”

*

     “O que se entende por inato? Se inato é equivalente a natural, então se deve conceder que todas as percepções e ideias do espírito são inatas ou naturais, em qualquer sentido que tomemos este último termo, seja em oposição ao que é insólito, artificial ou miraculoso. Se inato significa contemporâneo ao nosso nascimento, a discussão parece frívola, pois não vale a pena averiguar em que momento se começa a pensar: se antes, no, ou depois de nosso nascimento. Demais, parece-me que Locke e outros tomam o termo ideia em sentido muito vago, tanto indicando nossas percepções, sensações e paixões, como nossos pensamentos. Ora, neste sentido eu gostaria de saber o que é que se quer dizer quando se afirma que o amor-próprio ou ressentimento por injúrias sofridas ou a paixão entre os sexos não é inata?

     Mas admitindo-se os termos impressões e ideias no sentido exposto acima e entendendo por inato o que é primitivo ou não copiado de nenhuma percepção precedente, podemos então afirmar que todas as nossas impressões são inatas e que nossas ideias não o são.

     Para ser franco, devo confessar que em minha opinião Locke foi enganado sobre esta questão pelos escolásticos, que, utilizando termos definidos sem rigor, prolongavam cansativamente as discussões sem jamais atingir o núcleo da questão. Semelhante ambiguidade e circunlocução parecem estar presentes nos raciocínios deste filósofo acerca deste tema como também da maioria de outras questões.”

*

     “Como o homem é um ser racional e está continuamente à procura da felicidade, que espera alcançar para a satisfação de alguma paixão ou afeição, raramente age, pensa ou fala sem propósito ou intenção. Sempre tem algum objeto em vista; embora às vezes sejam inadequados os meios que escolhe para alcançar seu fim, jamais o perde de vista e nem desperdiça seus pensamentos ou reflexões quando não espera obter nenhuma satisfação deles. Em todas as composições geniais é, portanto, necessário que o autor tenha algum plano ou objeto; e embora possa ser desviado deste plano pela impetuosidade de seu pensamento, como numa ode, ou omiti-lo descuidadamente, como numa epístola ou num ensaio, deve aparecer algum fim ou intenção em sua primeira composição, senão na composição completa da obra. Uma obra sem um desígnio se assemelha mais a extravagâncias de um louco do que aos sóbrios esforços do gênio e do sábio.”

*

     “Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos raciocínios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra: a experiência. Mas, se ainda continuarmos com a disposição de esmiuçar o problema e insistirmos: qual é o fundamento de todas as conclusões derivadas da experiência? Esta pergunta implica uma nova questão que pode ser de solução e explicação mais difíceis. (…)

     Reconheço que, quando alguém conclui que um argumento não existe porque escapou de sua investigação, é acusado de imperdoável arrogância. Reconheço também que, apesar de várias gerações de sábios se terem dedicado infrutiferamente pesquisando um objeto, seria, talvez, precipitado concluir afirmando que ele ultrapassa toda compreensão humana. Mesmo se examinássemos todas as fontes de nosso conhecimento e concluíssemos que são inadequadas para um tal assunto, pode ainda perdurar a suspeita de que a enumeração não é completa ou o exame não é exato. Mas, em relação ao tema que nos ocupa, há algumas reflexões que parecem remover toda acusação de arrogância ou a suspeição de um equívoco.

     Certamente, os camponeses mais ignorantes e estúpidos — até os bebês e as bestas irracionais — se aperfeiçoam pela experiência e adquirem conhecimento das qualidades dos objetos naturais, observando os efeitos que resultam deles. Quando uma criança sentiu a sensação da dor ao tocar a chama de uma vela, terá cuidado de não pôr mais sua mão perto de outra vela, pois ela esperará um efeito semelhante de uma causa que é semelhante em suas qualidades e aparências sensíveis. Se afirmais, contudo, que o entendimento da criança chega a esta conclusão por algum processo de argumento ou de raciocínio, posso legitimamente pedir-vos que se mostre este argumento, e não tendes qualquer pretexto para recusar um pedido tão justo. Não podeis dizer que o argumento é abstruso e que possivelmente escapa à investigação, desde que confessais que ele é evidente até mesmo para a capacidade de um simples bebê. Se hesitais, contudo, por um momento, ou se, depois da reflexão, produzis um argumento complicado ou profundo, de certa maneira abandonais o problema e confessais que não é o raciocínio que nos induz a supor que o passado se assemelha ao futuro e a esperar efeitos semelhantes de causas que são, aparentemente, semelhantes.”

*

     “Tanto a paixão filosófica como a paixão religiosa parecem expostas — embora procurem extirpar nossos vícios e corrigir nossos hábitos — ao inconveniente, quando manejadas com imprudência, de servirem apenas para encorajar uma inclinação predominante e conduzir o espírito resolutamente na direção que previamente mais o atraia, devido às tendências e inclinações do temperamento natural. Certamente, enquanto aspiramos à magnânima firmeza do saber filosófico e tentamos encerrar nossos prazeres nos limites de nosso próprio espírito, podemos, finalmente, tornar nossa filosofia, como aquela de Epicteto e outros estoicos, num sistema mais refinado de egoísmo e persuadir-nos racionalmente de nos desligar de toda virtude como também de todos os prazeres sociais. Enquanto refletimos a propósito da vaidade da vida humana e pensamos na natureza fútil e transitória das riquezas e das honras, estamos, talvez, durante todo este tempo, lisonjeando nossa indolência natural que, por aversão à azáfama do mundo e à fadiga dos negócios, procura um pretexto racional para entregar-se completa e livremente à preguiça. Há, contudo, uma corrente filosófica que parece menos exposta a este inconveniente, pois ela não se liga a nenhuma paixão desordenada do espírito e nem se alia a qualquer tendência ou propensão natural: é a filosofia acadêmica ou cética. Os acadêmicos falam sempre da dúvida e da suspensão do juízo, do risco das resoluções apressadas, em confinar as investigações do entendimento a estreitos limites e em renunciar a todas as especulações que transbordam as fronteiras da vida e da prática cotidianas. Nada, por conseguinte, pode ser mais contrário a tal filosofia do que a indolente letargia do espírito, sua atrevida arrogância, suas elevadas pretensões e sua credulidade supersticiosa. Toda paixão é mortificada por ela, exceto o amor à verdade; e esta paixão não é jamais, nem pode ser, elevada a um grau demasiado alto. É surpreendente, todavia, que esta filosofia, que em quase todos os aspectos deve ser inofensiva e inocente, seja o objeto de tantas acusações e de tantas censuras infundadas. Mas, talvez, a própria circunstância que a torna tão inocente seja justamente o que a expõe ao ódio e ao ressentimento públicos. Porque ela não adula nenhuma paixão desordenada, não obtém muitos adeptos; porque ela se opõe a tantos vícios e tantas tolices, levanta contra si um grande número de adversários, que a estigmatizam como profana, libertina e irreligiosa.”

*

     “Nada é mais útil aos escritores, mesmo os que escrevem a respeito de temas morais, políticos ou físicos, do que distinguir entre a razão e a experiência e supor que estas classes de argumentação são inteiramente diferentes entre si. As primeiras são consideradas meros resultados de nossas faculdades intelectuais, as quais, ao considerarem a priori a natureza das coisas e examinarem os efeitos, que devem resultar de sua operação, estabelecem princípios particulares à ciência e à filosofia. As últimas são supostas derivar inteiramente dos sentidos e da observação, por meio dos quais sabemos o que é que resultou de fato da operação de objetos particulares e assim somos capazes de inferir o que resultará deles no futuro. Assim, por exemplo, as limitações e restrições do governo civil e de sua constituição legal podem ser defendidas tanto mediante a razão, que refletindo sobre a debilidade e corrupção da natureza humana nos ensina que a nenhum homem se pode confiar uma autoridade ilimitada, como mediante a experiência e a história, que nos informam dos enormes abusos que a ambição tem cometido em toda época e país, devido a uma confiança tão imprudente.

     A mesma distinção entre razão e experiência se verifica em todas as nossas deliberações acerca da conduta na vida. Deste modo, o estadista, o general, o médico e o mercador experientes são seguidos e inspiram confiança, enquanto o novato inexperiente é, por mais bem-dotado de talentos naturais, desprezado e desconsiderado. Embora se admita que a razão pode formular conjeturas mais plausíveis sobre determinada conduta em determinadas condições, supõe-se, todavia, que ela é imperfeita sem o auxilio da experiência, pois esta é a única via capaz de conferir estabilidade e certeza às máximas deduzidas mediante estudo e reflexão.

     Apesar da aceitação universal desta distinção, tanto nas etapas da vida ativa como especulativa, não terei escrúpulos em afirmar que é uma atitude errônea ou, ao menos, superficial.

     Se examinarmos os argumentos em uma das ciências acima mencionadas e supormos que eles são meros efeitos do raciocínio e da reflexão, verificaremos que terminam pelo menos em alguma conclusão ou princípio geral, aos quais não podemos alegar outra razão a não ser a observação e a experiência. A única diferença entre as máximas racionais e experimentais (estas vulgarmente consideradas resultantes da mera experiência) consiste em que as primeiras não podem ser estabelecidas sem algum processo do pensamento e alguma reflexão sobre o que foi observado, a fim de distinguir suas circunstâncias e traçar suas consequências; nas máximas experimentais, o evento experienciado é exata e completamente similar ao que inferimos como resultado de uma situação particular qualquer. A história de um Nero ou de um Tibério nos levaria a temer semelhante tirania se nossos monarcas estivessem livres das restrições do Senado e da Lei. Mas a constatação de qualquer fraude ou crueldade na vida privada é suficiente, com o auxilio de alguma experiência, para alertar-nos do mesmo temor, porque serve de exemplo da corrupção geral da natureza humana e nos mostra o perigo que poderíamos correr se depositássemos inteira confiança na humanidade. Nos dois casos a experiência é, em última análise, o fundamento de nossa inferência e conclusão.

     Não há homem tão jovem e inexperiente que não tenha formado muitos e corretos princípios sobre os assuntos humanos e a conduta na vida. Mas é preciso admitir que, quando um homem procura exercê-los, está mais propenso a errar, até que o tempo e experiências ulteriores lhe ampliem estes princípios e lhe ensinem seu uso adequado e aplicação. Em toda situação ou incidente ha várias circunstâncias particulares, aparentemente sem importância, que o homem mais bem-dotado está inclinado a princípio a desdenhar, embora dependam delas a exatidão de suas conclusões e, por conseguinte, a prudência de sua conduta. Sem mencionar que, para um jovem principiante, os princípios e as operações gerais nem sempre se manifestam em ocasiões adequadas e nem podem ser imediatamente aplicados com a devida calma e distinção. A verdade é que um homem que raciocina sem experiência não poderia raciocinar se olvidasse inteiramente a experiência; quando designamos alguém com esta característica, fazemo-lo somente em sentido comparativo e supomos que possui experiência em grau mais ou menos imperfeito.”

*

     “A diferença entre a ficção e a crença se localiza em algum sentimento ou maneira de sentir, anexado à última e não à primeira, que não depende da vontade e não pode ser manipulado a gosto. É preciso que a natureza a desperte como os outros sentimentos; é preciso que ela nasça da situação particular em que o espírito se encontra em cada conjuntura particular. Todas as vezes que um objeto se apresenta à memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a natureza da crença.

     Digo, pois, que a crença não é nada senão uma concepção de um objeto mais vivo, mais vivido, mais forte, mais firme e mais estável que aquela que a imaginação, por si só, seria capaz de obter. Uso esta variedade de termos, embora tão pouco filosófica, com a única intenção de exprimir este ato de espírito que nos revela realidades, ou que se considera como tal, mais presentes a nós que as ficções, que as faz pensar mais no pensamento e lhes dá uma influência superior às paixões e à imaginação. Desde que concordamos no tocante à coisa, é desnecessário discutir acerca dos termos. A imaginação governa todas as suas ideias e pode uni-las, misturá-las e variá-las de todas as formas possíveis. Pode conceber objetos fictícios em todas as situações de espaço e de tempo. Pode colocá-los de certa maneira diante de nossos olhos com suas próprias cores, exatamente como se houvessem existido. Mas, como é impossível que essa faculdade da imaginação possa jamais, por si mesma, converter-se em crença, é evidente que a crença não consiste na natureza particular ou na ordem das ideias, mas na maneira como o espírito as concebe e as sente. Confesso que é impossível explicar com perfeição este sentimento ou esta maneira de conceber. Podemos usar palavras que expressam algo parecido. Mas o seu nome verdadeiro e próprio, como já dissemos, é crença: termo que cada um compreende suficientemente na vida corrente. Em filosofia, não podemos ir além da seguinte afirmação: crença é qualquer coisa sentida pelo espírito, que distingue as ideias dos juízos das ficções da imaginação. Ela lhes dá maior peso e influência; as faz parecer de maior importância; as reforça no espírito e as estabelece como princípios diretivos de nossas ações. Ouço agora, por exemplo, a voz de uma pessoa conhecida, e o som parece vir do quarto contíguo. Esta impressão dos meus sentidos conduz imediatamente meu pensamento à pessoa e, ao mesmo tempo, a todos os objetos circundantes. Eu os pinto para mim mesmo como existentes atualmente e com as próprias qualidades e relações que já sabia que possuíam. Estas ideias se apoderam de meu espírito mais depressa que as ideias de um castelo encantado. Sinto-as de modo muito diferente, e sua influência é bem maior, em todos os pontos de vista, tanto para produzir prazer e dor como alegria e tristeza.

     Consideremos, pois, esta doutrina em toda a sua extensão e concedamos que o sentimento da crença nada mais é do que uma concepção mais intensa e mais firme do que aquele que acompanha as puras ficções da imaginação, e que esta maneira de conceber nasce de uma conjunção costumeira do objeto com alguma coisa presente à memória e aos sentidos. Não será difícil, creio eu, com estas conjeturas, encontrar outras operações do espírito que lhe sejam análogas e ascender deste fenômeno a princípios ainda mais gerais.”

*

     “Quando lanço ao fogo um pedaço de lenha seca, meu espírito se vê obrigado imediatamente a conceber que ela aviva em vez de extinguir a chama. Esta transição do pensamento da causa ao efeito não se baseia na razão. Sua origem deriva completamente do hábito e da experiência. Visto que a transição se origina de um objeto presente aos sentidos, este incorpora à ideia ou à concepção da chama mais força e vivacidade do que qualquer devaneio vago e flutuante da imaginação. Esta ideia nasce imediatamente. E o pensamento converge instantaneamente para a ideia, transferindo-lhe toda a força conceptual que deriva da impressão presente aos sentidos. Se uma espada estiver apontada para o meu peito, as ideias de ferimento e dor que a acompanham não me atingem com mais força do que se me apresentam um copo de vinho, e mesmo supondo que por acaso esta ideia surgisse após o aparecimento do último objeto? Mas, o que é que causa uma concepção tão forte, senão unicamente a presença de um objeto, e a transição costumeira para a ideia de outro objeto, que nos acostumamos a juntar com a primeira? Eis toda operação do espírito em todas as nossas conclusões referentes às questões de fato e de existência; e já é uma satisfação encontrar algumas analogias que podem explicá-la. A transição a partir de um objeto presente dá, em todos os casos, força e solidez à ideia com a qual está relacionado.”

*

     “Podemos definir uma causa como um objeto seguido por outro, de tal forma que todos os objetos semelhantes ao primeiro são seguidos de objetos semelhantes ao segundo. Ou, em outras palavras: se o primeiro objeto não houvesse existido, o segundo nunca haveria existido. A aparição de uma causa sempre faz convergir o espírito, por uma transição costumeira, à ideia do efeito. Disto também temos experiência. Podemos, pois, de acordo com esta experiência, formular uma outra definição de causa e denominá-la um objeto seguido por outro e cuja aparição faz convergir o pensamento sempre para aquele outro.

     A ideia de poder é tão relativa como a de causa: ambas dizem respeito a um efeito ou a um outro evento unido constantemente ao primeiro. Quando consideramos a circunstância desconhecida de um objeto, que fixa e determina o grau e a quantidade de seu efeito, denominamo-la seu poder. E é do consenso geral entre os filósofos que o efeito é a medida do poder.”

*

     “Toda ideia é copiada de uma impressão ou de uma sensação precedentes; se não podemos localizar a impressão, podemos assegurar-nos de que não há ideia. Em todos os casos isolados da atividade dos corpos ou espíritos, não há nada que produza uma impressão, nem, por conseguinte, que possa sugerir uma ideia de poder ou de conexão necessária. Mas quando aparecem vários casos uniformes, e o mesmo objeto é sempre seguido pelo mesmo evento, então começamos a admitir a noção de causa e de conexão. Nós sentimos então um novo sentimento, ou nova impressão, ou seja, uma conexão costumeira no pensamento ou na imaginação entre um objeto e o seu acompanhante habitual; e este sentimento é a origem da ideia que procuramos. (…) Em todos os raciocínios abstratos há um ponto de vista que, se afortunadamente o alcançamos, nos ilustra mais acerca do assunto que mediante toda a eloquência do mundo. Devemos aspirar a este ponto de vista e reservar os floreios da retórica para oportunidade mais adequada.”

*

     “O predomínio da doutrina da liberdade pode ser explicado por outra causa, ou seja, uma falsa sensação ou aparente experiência de liberdade ou indiferença que temos ou que podemos ter em muitos de nossos atos. A necessidade de uma ação da matéria ou do espírito não é, propriamente falando, uma qualidade no agente, mas em qualquer ser pensante e inteligente que pode considerar a ação, e ela consiste principalmente nas determinações de seus pensamentos para inferir a existência desta ação a partir de alguns objetos precedentes. De modo que a liberdade, quando oposta à necessidade, não é senão a ausência desta determinação e a presença de certo abandono ou indiferença que sentimos ao passar ou não passar da ideia de um objeto à de outro que o sucede. Podemos, assim, observar que, mesmo ao refletir sobre os atos humanos, raramente sentimos esse abandono ou indiferença, mas somos geralmente capazes de inferi-los de seus motivos e das disposições de quem os realiza; sem dúvida, ao realizar estes mesmos atos, notamos frequentemente algo parecido a isto. E, como é fácil confundir todos os objetos semelhantes, isto tem sido usado como prova demonstrativa e mesmo intuitiva da liberdade humana. Sentimos que nossos atos estão sujeitos à nossa vontade na maioria dos casos e imaginamos que sentimos a vontade como não subordinada a nenhuma coisa porque, quando por afirmação contrária somos provocados a tratar de fazê-lo, sentimos que ela se move facilmente em todas as direções e produz uma imagem de si mesma (ou uma veleidade, como tem sido denominada nas escolas), embora sem decidir para que lado ela se dirige. Esta imagem ou débil movimento nesse momento poderia (estamos persuadidos disto) haver chegado a ser a própria coisa, porque, se isto fosse negado, veríamos, numa segunda tentativa, que agora pode chegar a sê-lo. Não consideramos que o fantástico desejo de mostrar a liberdade é aqui o motivo de nossas ações. Parece certo que, qualquer que seja a maneira pela qual sentimos em nós a liberdade, um espectador pode geralmente inferir nossos atos de nossos motivos e do nosso caráter, e mesmo quando não pode conclui geralmente que poderia se conhecesse perfeitamente todas as circunstâncias de nossa situação e temperamento e as fontes mais secretas de nossa disposição. Esta é, portanto, a verdadeira essência da necessidade, segundo a doutrina anterior.”

*

     “Por liberdade, então, podemos apenas entender um poder de agir ou de não agir segundo as determinações da vontade.”

*

     “Admite-se universalmente que nada existe sem uma causa de sua existência e que a palavra ‘acaso”, se examinada com cuidado, é puramente negativa e não designa nenhuma força real que exista em qualquer lugar na natureza. Mas se se pretende que algumas causas são necessárias enquanto outras não o são, vemos então a vantagem das definições. Se alguém definisse uma causa, sem compreender, como elemento da definição, a conexão necessária com o seu efeito, e se mostrasse distintamente a origem da ideia expressa pela definição, desistiria prontamente de toda controvérsia. Mas, se se aceita a explicação anterior do assunto, isto deve ser absolutamente impraticável. Se os objetos não tivessem entre si uma conjunção regular, nunca formaríamos qualquer noção de causa e de efeito; esta conjunção regular produz a inferência no entendimento, que é a única conexão da qual podemos ter alguma compreensão. Quem pretender definir a causa, excluindo estas circunstâncias, será obrigado a empregar termos ininteligíveis ou dar sinônimos do termo que se tenta esforçar por definir*. Se se admite a definição acima citada, a liberdade, oposta à necessidade e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo que não existe.”

*: Assim, se uma causa fosse definida como o que produz algo, é fácil observar que produzir é sinônimo de causar. Do mesmo modo, se se definisse uma causa como aquilo por meio do qual algo existe, esta definição está sujeita à mesma objeção. O que se entende pelos termos por meio da qual? Se se houvesse dito que a causa é aquilo depois do qual algo existe constantemente, teríamos entendido os termos. Porque isto é, em verdade, tudo o que sabemos acerca do assunto. E esta constância constitui a verdadeira essência da necessidade, já que não temos outra ideia dela.

*

     “Não há método mais comum de raciocinar — e não obstante nenhum mais censurável — do que refutar as hipóteses nas discussões filosóficas sob pretexto de conterem perigosas consequências para a religião e a moral. Quando uma opinião conduz ao absurdo, é certamente falsa, mas não é evidente que uma opinião seja falsa porque suas consequências são perigosas. Devem-se evitar inteiramente tais lugares-comuns, pois eles em nada auxiliam na descoberta da verdade, servindo apenas para tornar odiosa a pessoa de um adversário.”

*

     “A necessidade pode definir-se de duas maneiras, de acordo com duas definições de causa, da qual ela constitui uma parte essencial. Consiste, ou na conjunção constante de objetos semelhantes, ou na inferência que faz o entendimento de um objeto a outro. Ora, a necessidade, nestes dois sentidos — que, certamente, em essência são a mesma coisa — é reconhecida por toda a gente, embora tacitamente, nas escolas, no púlpito e na vida diária, ela pertença à vontade humana; jamais alguém pretendeu negar que podemos tirar inferências das ações humanas, e que estas inferências se baseiam sobre a experiência da união de atos semelhantes com motivos, inclinações e situações semelhantes.”

*

     “Nenhuma fraqueza da natureza humana é mais notável e mais universal do que a que denominamos credulidade”. (Tratado, I, iii, p. 112).

*

     “O fato de que os relatos sobrenaturais proliferam principalmente entre as nações ignorantes e bárbaras constitui forte suspeita contra eles; e se um povo civilizado tem admitido alguns destes relatos, decorre do fato de tê-los recebido de ancestrais ignorantes e bárbaros, que os transmitiram com a sanção e a autoridade invioláveis que sempre acompanham as opiniões recebidas. Quando examinamos as primeiras histórias de todas as nações, sentimo-nos inclinados a imaginar-nos transportados a um novo mundo, onde toda a trama da natureza está desarticulada e todos os elementos efetuam suas operações de uma maneira diferente que fazem na atualidade. As batalhas, as revoluções, a peste, a fome e a morte não são nunca efeitos de causas naturais que experimentamos. Prodígios, presságios, oráculos e punições divinas ocultam completamente os poucos eventos naturais que se misturam a eles. Mas, como o seu número diminui a cada página, à medida que nos aproximamos das épocas das luzes, rapidamente compreendemos que não há nada de misterioso ou de sobrenatural no assunto, mas que tudo decorre da tendência natural dos homens para o maravilhoso, e que, embora esta inclinação às vezes possa ser refreada pelo bom senso e pela instrução, não pode ser jamais extirpada da natureza humana.

     É estranho, tende a dizer um leitor judicioso, depois de ler atentamente estes historiadores maravilhosos, que tais eventos prodigiosos não ocorram jamais em nossos dias! Mas creio eu que não há nada de estranho que os homens mintam em todas as épocas. Deveis, certamente, ter encontrado muitos exemplos desta debilidade. Haveis, vós mesmos, ouvido muitos destes relatos maravilhosos que, desprezados por todas as pessoas sábias e sensatas, têm sido finalmente abandonados até pelo homem comum. Podeis estar seguros de que estas famosas mentiras, que se têm difundido e florescido até alcançarem uma altura tão monstruosa, tiveram origens análogas; mas, como foram semeadas num solo mais propício, cresceram até se tomarem prodígios quase tão grandes como os que aqueles narram.”

*

     “A velhacaria e a leviandade humanas são fenômenos tão normais, que prefiro acreditar que os eventos mais extraordinários tenham aí sua origem, a admitir uma violação tão marcante das leis da natureza.

     Mas, se este milagre fosse atribuído a um novo sistema religioso, é preciso considerar que os homens, em todas as épocas, têm sido ludibriados por ridículas histórias deste gênero, que precisamente esta circunstância seria uma prova completa da impostura, e suficiente para levar todos os homens de bom senso, não apenas a rejeitar o fato, mas mesmo a rejeitá-lo sem mais exame. Embora o Ser ao qual o milagre é atribuído seja, neste caso, Onipotente, o fato não se torna, por esta razão, nem um pouco mais provável, visto que nos é impossível apreender os atributos e os atos de um tal Ser, senão através da experiência que temos de suas produções no curso ordinário da natureza. Isto nos subjuga às observações passadas e nos obriga a comparar os exemplos de violação da verdade graças aos testemunhos humanos com os da violação das leis da natureza devido aos milagres, a fim de julgarmos qual das duas é mais plausível e mais provável. Como as violações da verdade são mais comuns nos testemunhos concernentes a qualquer outra espécie de fatos, isto deve diminuir bastante a autoridade do primeiro tipo de testemunho e deve nos levar a formular a resolução geral de não lhes prestar nenhuma atenção, mesmo quando protegidos pelos mais plausíveis pretextos.”

*

     “A principal fonte de equívocos neste assunto e da ilimitada liberdade de conjeturar que toleramos decorre do fato de que tacitamente nos colocamos no lugar do Ser Supremo e concluímos que em todas as ocasiões observará a mesma conduta que nós mesmos, em sua situação, teríamos aceito como razoável e conveniente. Mas, além de que o curso ordinário da natureza pode convencer-nos de que quase tudo se regula por princípios e máximas muito diferentes das nossas, além disto, digo eu, deve parecer evidentemente contrário a todas as regras da analogia raciocinar a partir das intenções e projetos humanos para os de um Ser tão diferente e tão superior a um grau tão alto.”

     Na natureza humana há certa experimentada coerência de desígnios e de inclinações, de modo que, quando um fato nos permitiu descobrir uma intenção de um homem, pode ser frequentemente razoável, a partir desta experiência, inferir uma outra e tirar uma longa cadeia de conclusões sobre sua conduta passada ou futura. Mas este método de raciocínio não pode jamais intervir em relação a um Ser tão longínquo e tão incompreensível, que tem muito menos analogia com um outro ser do universo que o sol com uma vela de cera, e que apenas se manifesta por alguns traços pálidos ou vestígios, além dos quais não temos nenhuma autoridade para designar-lhe qualquer atributo ou qualquer perfeição. O que imaginamos ser uma perfeição superior pode ser realmente um defeito. Ou, se é no ponto mais alto uma perfeição, atribuindo-a ao Ser Supremo, em caso de não se ter realizado completamente em suas obras, parece mais adulação e panegírico do que raciocínio correto e sã filosofia.”

*

     “Um ceticismo moderado pode ser aceito como bastante razoável, pois afigura-se como atitude prévia e indispensável ao estudo da filosofia, mantendo adequada imparcialidade em nossos juízos e apartando nosso espírito de todos os preconceitos adquiridos pela educação e precipitação. Iniciar com princípios claros e evidentes por si mesmos, avançar com passos prudentes e seguros, repassar frequentemente nossas conclusões e examinar rigorosamente todas as suas consequências são os únicos métodos que nos podem levar a aspirar à verdade e lograr uma adequada estabilidade e certeza em nossas conclusões, embora reconhecendo que assim nossos sistemas progridem pouco e lentamente.”

*

     “A natureza sempre é mais forte que os princípios.”

*

     “Os raciocínios morais referem-se tanto a fatos particulares como gerais. Todas as deliberações da vida dizem respeito aos primeiros, bem como todas as investigações da história, da cronologia, da geografia e da astronomia.

     As ciências referentes aos fatos gerais são a política, a filosofia natural, a física, a química etc., nas quais se investigam as qualidades, as causas e os efeitos de toda uma espécie de objetos.

     As ciências religiosas ou teológicas, enquanto visam a provar a existência de Deus e a imortalidade das almas, compõem-se em parte de raciocínios baseados em fatos particulares e, em parte, de raciocínios baseados em fatos gerais. Fundam-se sobre a razão, na medida em que se apoiam na experiência. Mas seu melhor e mais sólido fundamento é a fé e a revelação divina.

     A moral e a crítica não são propriamente objetos do entendimento, porém do gosto e do sentimento. A beleza, moral ou natural, é antes sentida que propriamente percebida. Ou, se raciocinamos a seu respeito, e tentamos estabelecer sua norma, consideramos um novo fato, derivado do gosto geral dos homens, ou algum fato análogo que pode ser objeto do raciocínio e da investigação.

     Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos:

     Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões.”

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador