Literatura negra brasileira, por Shirley Ferreira

Enviado por Felipe A. P. L. Costa

Literatura negra brasileira

por Shirley Ferreira

O surgimento de uma literatura capaz de desafiar a identidade branca hegemônica ocorreu após a formação de uma comunidade de escritores negros, os quais passaram a reivindicar não só um espaço próprio, mas também a demarcação de uma história da literatura negra. Foi nesse contexto que emergiu Luiz Gama, precursor de certas temáticas que serão abordadas neste capítulo. […]

Nos dias atuais, estaríamos vivenciando um movimento de ruptura de paradigmas, ou de “erosão do sistema literário” […]. O fenômeno estaria associado à ideia de romper com os cânones literários até então vigentes, uma possibilidade experimentada por alguns poetas.

Libertar-se dos cânones significou abrir espaço ao surgimento de divergências literárias, as quais, por sua vez, possibilitaram que novas e variadas vozes se manifestassem e fossem ouvidas. O que poderia ser entendido como um momento de crise é, a rigor, o desenho de novas possibilidades de criação poética, onde novos parâmetros são erigidos, contemplando sujeitos que até então estiveram à margem da cartografia do contexto literário.

Quando examinamos a história das gentes africanas e seus descendentes, temos chance de perceber como a narrativa dos fatos costuma ser organizada de modo tendencioso. Não é difícil apontar aspectos que mostram como essa história privilegiou um ponto de vista identificado com um modo ocidentalizado de compreender a história do Brasil, modo esse fortemente comprometido com os valores do ‘mundo branco’, a ponto de tramar uma identidade étnica que nos aproximasse mais de uma herança europeia. Essa movimentação ocorreu em diversos períodos históricos, tendo seus tentáculos estendidos também sobre o sistema literário. […]

O conceito de literatura negra

A partir da efervescência política, social e cultural que caracterizou os anos 60 e 70, aqui e alhures, atores sociais das mais diversas áreas ganharam a cena política, trazendo consigo várias reivindicações próprias. Foi o caso também de um número significativo de escritores negros, cujo pertencimento racial passou a ser reivindicado e anunciado. Suas produções acadêmicas e literárias tornaram-se explicitamente engajadas, denunciando a marginalização da população negra no Brasil.

Essas publicações surgiram ante a expectativa de formar um público receptor, interessado na construção da sua identidade étnica, ao mesmo tempo em que os movimentos sociais negros possibilitavam uma via de atuação organizada no cenário político. Os autores passaram a abarcar uma temática de protesto em suas obras, objetivando criar ou consolidar uma consciência crítica naqueles que estavam colocados à margem da cultura dominante. […]

Imagens distorcidas e a literatura oficial

Cabe indagar aqui o que, no contexto da literatura oficial, estava até então estabelecido, uma vez que a representação do negro devia-se a pontos de vista de autores brancos. A produção literária abrigava uma série de imagens distorcidas, moldadas pelo preconceito e retratando os afrodescendentes como sujeitos passivos, malandros ou criminosos. Essa representação preconceituosa perdurou por muito tempo, deixando marcas profundas no imaginário e na sociedade brasileira, a ponto de dificultar a nossa compreensão a respeito da diversidade étnica e cultural das gentes oriundas da África.

A situação desencadeou um processo complexo e duradouro de exclusão, cujos desdobramentos são ainda hoje vividos por parcelas expressivas da população afro-brasileira. Mas essa não é mais uma estrada de mão única: existem hoje diversas iniciativas que visam reparar as distorções históricas que os grupos dominantes propagaram a respeito dos povos africanos e seus descendentes. […]

No contexto da vida ordinária do homem branco, o negro era visto como um ser desprovido de importância ou de importância secundária, ocupando necessariamente posições subalternas e inferiores. Tal concepção contaminou a obra de Matos, Vieira e outros, nas quais o sujeito negro aparecia como personagem. No transcorrer desse processo, concepções negativas das gentes negras prosperaram no imaginário coletivo dos escritores, resultando em distorções na identidade dos seus descendentes. Conceição Evaristo (EVARISTO 2007, p. 7) acredita que, “a literatura, como um espaço privilegiado de produção e reprodução simbólica de sentidos, torna-se um lócus propício para enunciação ou para apagamento das identidades”. […]

Construindo uma identidade

Os processos de significação, ressignificação e construção da identidade vêm sendo amplamente discutido no âmbito das ciências sociais. No que diz respeito à identidade negra, em particular, algumas concepções de Stuart Hall (HALL 2006, p. 7-8) parecem ser extremamente apropriadas: “as identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno”. Segundo ele, as identidades são construídas de acordo com o “nosso pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais”.

Assim, quando grupos diferentes se unem para construir uma nação, o fazem a partir de identidades e pertencimentos que se baseiam em realidades diversas; não existindo, a priori, um sentimento nacional único. […]

O papel do Modernismo

Um dos primeiros indícios de mudança nessa consciência histórica, em particular no âmbito da literatura brasileira, ocorreu com o advento do Modernismo, nas primeiras décadas do século xx. Houve uma valorização das raízes culturais do país, ampliando a presença do negro não só na literatura, mas também na música e nas artes plásticas.

Esse processo favoreceu a busca de novos padrões estéticos, enaltecendo as características próprias das gentes brasileiras e contrariando os padrões eurocêntricos que foram importados e impostos. O negro e o índio, vistos até então como parcelas subalternas da sociedade, foram trazidos para o centro das discussões. Por isso, há quem afirme que, no Modernismo, ao contrário do que se passou no Romantismo, o negro foi incluído como elemento efetivo da cultura brasileira. […]

Polêmicas conceituais na escrita negra

Durante muito tempo, o alcance da influência da cultura negra foi inibido por um discurso que apresentava os afrodescendentes tão somente como tema/objeto. No entanto, para os autores que produzem a literatura negra ou afro-brasileira, o negro passou a ser o ator principal de sua história e não um mero coadjuvante, uma noção que se choca com as ideias tradicionais.

Durante o processo de revisão, vários debates surgiram entre os autores que integram essa vertente da literatura brasileira. Visando o desenvolvimento dessa literatura, têm sido adotados critérios estéticos, temáticos, ideológicos e até mesmo de cor de pele – i.e., se os autores são negros ou brancos. […]

No âmbito deste livro, vamos examinar os conceitos formulados por três estudiosos, Domício Proença Filho, Zilá Bernd e Cuti, pseudônimo de Luiz Silva. Para todos os três, a afirmação de uma identidade étnico-racial na literatura é importante, ainda que cada um deles apresente posições diferentes a respeito da denominação apropriada a ser dada a essa escrita. A escolha desses três nomes constitui uma pequena amostra do universo de estudiosos que, nos últimos anos, vêm se debruçando sobre essa vertente literária. […]

As polêmicas persistem

Dada a complexidade do assunto, não é de espantar que as divergências referidas anteriormente ainda perdurem. Em compensação, elas servem para destacar o papel dessa vertente literária, não apenas entre intelectuais negros, mas também no seio de toda a sociedade brasileira. Nesse sentido, as discussões a respeito de identidades étnicas, raciais e culturais devem ganhar cada vez mais relevância.

Comparando os conceitos propostos pelos três autores (Proença Filho, Bernd, Cuti), percebemos que, a despeito das divergências, existem algumas aproximações. A definição proposta por Proença Filho (2010), por exemplo, contempla as definições de Cuti (2010) e Bernd (2011), ao distinguir as duas concepções. A primeira, em sentido restrito, está ligada ao conceito de Cuti; a segunda, em sentido amplo, aos preceitos de Zilá. Todavia, ao recusar uma definição exclusivamente étnica de literatura negra, pois acredita que tal nomeação faria o jogo da sociedade etnocêntrica, Proença Filho se afasta dos outros.

Comparando os conceitos de Bernd e Cuti, notamos que eles adotam posições ora semelhantes, ora distintas. O conceito do ‘eu enunciador’ seria até certo ponto uma aproximação – i.e., os dois estudiosos argumentam que os autores poderiam ter consciência de sua identidade negra; todavia, as duas concepções se afastam quando uma delas passa a admitir, e a outra não, que pertencer ou não à vertente da literatura negra é uma questão de escolha.

Cuti sustenta que há uma distância entre a criação literária de um autor branco e a de um autor negro. Isso pode ser observado na historiografia literária brasileira. O negro sempre foi representado por uma imagem subjugada e limitada, mesmo entre aqueles que lhe “deram voz”. Por sua vez, ao assumir a negritude em sua escrita, o autor negro seria capaz de trazer toda uma subjetividade própria, reflexo dos dramas enfrentados por ele no dia a dia, além de conseguir enxergar com os olhos de um leitor negro. As expressões ‘literatura afro-brasileira’ e ‘literatura afrodescendente’ não seriam apropriadas a essa vertente literária, pois são amplas demais. A expressão ‘literatura negra’ seria então mais adequada. […]

Coda

Neste ponto, parece justo afirmar que, no âmbito dos precursores da literatura negra, havia diferenças não apenas literárias, mas também ideológicas – e.g., no que diz respeito ao modo como lidavam em suas obras com a discriminação racial. No caso de autores como Luiz Gama, Caldas Barbosa, Cruz e Sousa, Machado de Assis e Lima Barreto, esse tratamento podia ser ora mais sutil, ora mais explícito; ora mais brando, ora mais duro; ora mais sério, ora mais ameno. O olhar dos estudiosos contemporâneos a respeito de uma possível aproximação entre as obras de tais escritores tem nos levado a pensar melhor sobre eles, sobretudo a respeito da contribuição relativa de cada um deles na formação dessa vertente literária.

Os precursores da literatura negra, mesmo em um contexto social adverso, falaram, escreveram e publicaram suas obras – um legado valioso que nós herdamos. Essas obras serviram de inspiração a sucessivas gerações de escritores e muitas delas continuam sendo lidas nos dias atuais, contribuindo tanto para a afirmação cultural das gentes negras como para uma maior integração da sociedade brasileira.

[Nota: extraído do livro Luiz Gama e a identidade negra na literatura (2017, p. 83-120), de Shirley Ferreira.]

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