Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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“Lost River”: o estranho filme incompreendido pela crítica

Vaiado no Festival de Cannes e trucidado pela crítica, o filme de estreia na direção do ator Ryan Gosling, “Lost River” (2014), teve um destino injusto. Filmado em Detroit, Gosling transformou-a numa cidade gótica que lembra Louisiana pós furacão Katrina – crise econômica, ruínas e um mistério que envolve uma parte submersa pela construção de uma represa na fictícia cidade de Lost River. Por trás das camadas de estilizações da fotografia, personagens e cenografias (que fizeram a crítica chamar o filme de “um David Lynch de segunda mão”), estão alusões à crise econômica dos EUA pós explosão da bolha especulativa de 2008 combinados com misticismo gnóstico: qual o mistério que torna os protagonistas prisioneiros daquela cidade? O filme tem estreia prevista nos cinemas brasileiros em julho desse ano.

Recentemente poucos filmes foram tão destruídos pela crítica como Lost River, produção que marca a estreia na direção do ator Ryan Gosling –  A Passagem (2007) e Drive (2011). Quando estreou no Festival de Cannes em 2014 foi muito mal recebido pelo público: nos créditos finais a plateia respondeu com assovios e vaias como uma torcida irritada em um estádio de futebol. Depois disso Gosling e seu filme desapareceram e nada foi falado deles por dez meses. 

Mas agora Lost River reaparece com nova edição (foram retirados 10 minutos da edição original) para ser exibido em alguns cinemas selecionados em Nova York e Los Angeles, além de canais de TV pay-per-view e arquivos torrent na Internet – no Brasil é esperado nos cinemas em julho.

 

Ryan Gosling nasceu em Londres e cresceu no Canadá. Nas entrevistas sobre o filme, Gosling conta que, para ele, os EUA eram como “uma boneca pin up em cima de uma geladeira”. Ele então ficou fascinado pelas fotos da cidade de Detroit, fachadas de casas e prédios deteriorados ou em ruínas pela depressão econômica de um lugar que outrora foi a capital da indústria automobilística mundial.

Por isso Lost River, filmado naquela cidade, transformou-a em uma Detroit gótica misturada com uma atmosfera de Louisiana após devastação do furação Katrina em 2005 e depressão econômica dos EUA pós-crise do mercado imobiliário de 2008. Para Gosling, Lost River é uma “versão sombria do filme Goonies” (clássico infanto-juvenil dos anos 1980) com atmosfera e estética de David Lynch do filme Veludo Azul de 1986.

Por isso o filme é estranho e de difícil digestão para os críticos que acusaram Ryan Gosling de fazer um “Veludo Azul de segunda mão sem pé nem cabeça” – sobre esse conceito de “filme estranho” (weird movieclique aqui

Porém, para este blog Cinegnose a crítica foi apressada e não percebeu que Gosling fez uma atualização dos grandes arquétipos da cultura pop (os Detetives, Viajantes e Estrangeiros que povoam o nosso imaginário pelas suas conexões com a mitologia gnóstica), cujos mestres como David Lynch foram os primeiros a torná-los mais explícitos no cinema. 

O Filme

O título é o nome da cidade fictícia onde o filme passa. As estradas que saem de Lost River parecem terminar em vasta área que foi inundada para a construção de alguma espécie de represa. Vemos postes no meio do mato que terminam na água da represa como fossem pescoços esticados de plesiossauros, criando um sugestivo cenário.

E o que acontece? Encontramos uma mãe solteira chamada Billy (Christina Hendricks) que está prestes a perder sua casa depois de um empréstimo mal feito. Ela visita seu gerente no banco chamado Dave (Ben Medelsohn) implorando por uma suspensão da execução da dívida. 

A solução apresentada por Dave é emprega-la em uma espécie de clube fechado de cabaré gótico onde mulheres também endividadas atuam em shows eróticos que simulam automutilação com facas e baldes de sangue para a diversão de uma clientela formada por homens ricos.

Enquanto isso, o filho mais velho, Bones (Iain De Caestecker), entra em uma disputa com um gangster chamado Bully (Matt Smith – Doctor Who) por canos de cobre roubados em prédios abandonados.

Vizinho a Bones mora uma garota chamada Rats – chamada assim porque tem um rato de estimação. Ela mora com sua avó que passa os dias em silêncio olhando para um vídeo de casamento (seu noivo morreu durante a construção da represa) repetidas vezes enquanto os presentes em volta dela apodrecem. 

O ritmo lento da narrativa, os enquadramentos assimétricos e a fotografia estourada em cores translúcidas criam uma atmosfera estranha com momentos bizarros e altamente estilizados, lembrando os melhores momentos de David Lynch em Veludo Azul ou Twin Peaks. Tudo isso sugere que há um mistério naquela cidade: por que eles não saem dali? Billy fala, sem convicção, em “lugar onde tive meus filhos” etc. 

Mitologias gnósticas

Rat fala em algum tipo de “feitiço” que amaldiçoou a parte que restou da cidade após a inundação da represa. O fato é que todos parecem prisioneiros daquele lugar, sugerindo uma mitologia gnóstica parecida com o filme Show de Truman (o protagonista vive prisioneiro e cercado por um mar artificial) – isto é, a Terra como parte de uma prisão cósmica.

Todos prisioneiros: a avó obcecada pelo vídeo do casamento que passa em looping; Billy prisioneira do empréstimo bancário; Bones engalfinhado com a sua luta particular contra o gangster Bully e Rat morando em uma casa cheia de objetos do passado.

O gerente bancário Dave é uma espécie de arconte (na mitologia gnóstica, entidades auxiliares do Demiurgo – no filme, o próprio sistema financeiro) que conduz as mulheres em estado de insolvência para o clube gótico onde serão exploradas para a alegria dos demiurgos milionários.

Por isso Lost River parte de uma evidente crítica social (a crise econômica dos EUA provocada pela explosão da bolha especulativa financeira) mas com toques metafísicos da mitologia gnóstica: todos experimentam o mal estar dessa prisão como detetivesviajantes e estrangeiros – sobre esses arquétipos contemporâneos e suas conexões com a mitologia gnóstica clique aqui.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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