Depois da medalha de ouro da Rafaela, vai chover matéria emocionante falando em superação. Pode esperar no Fantástico. É um discurso fácil de aceitar, mas que me incomoda bastante. Ele diz assim pra você: se deseja algo na vida, corra atrás, lute, esforce-se, pois você conseguirá. Tudo bem, como discurso motivacional, até que é bonitinho. Acontece que nem tudo depende só da gente.
Tive algumas conquistas importantes na vida. Poderia dizer que lutei para alcançá-las. Um banho de mérito faz um bem danado ao ego de qualquer um. Mas, peraí: teria eu conseguido essas coisas se não fossem outras pessoas, se não fossem oportunidades oferecidas, se não fosse alguma vantagem inata minha? A mãe que me educou não merece crédito? A bolsa de estudos para alunos carentes que recebi não valeu nada? Uma cabecinha mais esperta para raciocinar também não ajuda? Um gesto humano em um momento crucial, idem? O mérito e a superação baseiam-se apenas no indivíduo, deixam de lado uma porrada de outras “variáveis sistêmicas” que, se ignoradas, podem nos tornar insensíveis e alienados. É muita egolatria, não?
Tem muita gente que se esforça pra caramba e fracassa. E se um ferrado acreditar nos mantras da superação, vai pensar: foi tudo culpa minha. Talvez seja esta a conclusão que desejam plantar nos ferrados. Pode ser culpa e pode não ser, oras. Pode ser que vocẽ tenha feito corpo mole. Pode ser também que uma série de “variáveis sistêmicas” tenham sido pedras no seu caminho. Se achar que a superação resolve tudo, perde a visão do todo. Mais que isso, perde o desejo de consertar o mundo, nome que damos aos nossos ideais.
Rafaela lutou, teve mérito pessoal. Chorei com sua vitória (sim, ando cada vez mais emotivo). Com grande mérito, superou a pobreza, o racismo, o sexismo. Mas também teve o apoio da família e dos amigos, provavelmente nasceu com uma compleição física privilegiada. E recebeu uma bolsa para atletas. Enfim, lute e conseguirá, uma meia verdade perigosa.
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