Matrizes e ancestrais

1. LIMA BARRETO. Há escritores brasileiros marcados profundamente pelo traço do preconceito de cor. Lima Barreto foi um deles. Nos últimos anos ensaiou-se um retorno as suas obras, uma compreensão, uma inclusão, mas tão tímido o ensaio que não consegue, ainda, se sustentar. Pobre e suburbano, sua escrita se viu alijada do movimento da Semana de Arte Moderna que estabeleceria o modernismo nas letras brasileiras. Militante político, transpôs para sua obra os subúrbios, os bêbados, os boêmios, os loucos. Assombrado pelo alcoolismo e pela depressão, Lima Barreto sofreu por sua condição de filho de escravos-libertos. Esse camarada foi um petardo. Creio que ainda o veremos alçado à categoria de fundador de nossa literatura de verdade. Existe uma fotografia asséptica dele, mas preferi essa que dá uma ideia mais clara de suas agruras. Viva Lima Barreto!

2. JACKSON DO PANDEIRO. Do lado da rua, do concreto, do asfalto, dos cabarés e arranca-rabos, reinou o Rei do Ritmo. Pois é: Zé Gomes Filho, o Jackson do Pandeiro. Do couro e dos guizos do seu instrumento vimos a professorinha Dona Filomena soletrando o Bê-a-bá, valentões acabadores de forrós amolando suas facas, gafieiras intermináveis pelos subúrbios do Rio de Janeiro, mulheres que trocaram de sexo numa viagem feita a Hollywood. O coração de Jackson pulsava saltitante e inebriava nossos tornozelos. O zabumbeiro desprevenido atravessava o rojão se não entendesse sua sincopagem. Dizia que todos os ritmos provinham do coco, inclusive o rock’n’roll. Jackson desafiou Tio Sam, traduziu o linguajar da saparia na Lagoa do Paó (às margens de onde nasceu), ofereceu tutano e xarope de amendoim pra quem andava caindo do banco. Teve até coragem de peitar Gonzagão, dizendo que seu baião, na verdade, era coco. Foi-se embora, encantado e jovem. Parece que ouço sua pergunta mais que atual: — Que briga é aquela que tem acolá?…

3. LUIZ GONZAGA. O Nordeste continuaria existindo caso Luiz Gonzaga não tivesse aterrissado por lá há cem anos. Teria a mesma paisagem, os mesmos problemas. Seria o mesmo complexo de gentes e regiões. Comportaria os mesmos cenários de pedras e areias, plantas e rios, mares e florestas, caatingas e sertões. Mas faltaria muito para adornar-lhe a alma. Sem Gonzaga quase seríamos sonâmbulos. Ele, mais que ninguém, brindou-nos com uma moldura indelével, uma corrente sonora diferente, recheada de suspiros, ritmos coronários, estalidos metálicos. A isso resolveu chamar de BAIÃO. Gonzaga plantou a sanfona entre nós, estampou a zabumba em nossos corpos, trancafiou-nos dentro de um triângulo e imortalizou-nos no registro de sua voz. Dentro do seu matulão convivemos, bichos e coisas, aves e paisagens. Pela manhã, do seu chapéu, saltaram galos anunciando o dia, sabiás acalentando as horas, acauãs premeditando as tristezas, assuns-pretos assobiando as dores, vem-vens prenunciando amores. O seu peito abrigava o canto dolente e retotono dos vaqueiros mortos e a pabulagem dos boiadeiros vivos. As ladainhas e os benditos aninhavam-se por ali buscando eternidade. Viva Luiz Gonzaga do Nascimento!

4. ANDRÉ REBOUÇAS. Olhou a vastidão do oceano e viu a imensidão do seu desespero. Passou a limpo suas dores, exilado, sem dinheiro e só. Fora o grande construtor do Brasil. Desenvolvera o Rio de Janeiro fundando-lhe as docas e resolvendo o problema de abastecimento d’água. Levara o trem para o Nordeste e projetara os mais importantes portos do país. Olhou novamente o mar de Portugal. Estava na Ilha da Madeira, no Funchal. Escrevia para o The Times, de Londres. Nunca um afro-descendente privara da amizade do Imperador: amigo, confidente e realizador. Mas agora suas entranhas rugiam. A lágrima formou-se tímida, mas tomou gosto e nublou-lhe o olho. Antes que ela descesse pelo rosto, resolveu acompanhar seu movimento e atirou-se do penhasco rumo às correntes marítimas. Era 9 de maio de 1898. Seu corpo navegaria no último barco de Caronte. Não se despediu, André Rebouças, o engenheiro do segundo império brasileiro.

5. JOÃO CÂNDIDO. Poucos saberão quem foi João Cândido Felisberto, o Almirante Negro. Vou tentar lembrar para as novas gerações. Em 1910 ele encabeçou a Revolta Contra a Chibata. A Marinha Brasileira, na época, tinha como costume e lei punir os marujos faltosos com solitária, pão e água, por 7 dias, as faltas leves; as graves com 25 chibatadas. Um movimento dos marinheiros já se formava no ano anterior, mas o castigo imposto a Marcelino Rodrigues Menezes foi a gota d’água: 250 chibatadas, até desmaiar e continuar recebendo o castigo mesmo desacordado. Claro que a marujada era negra e o oficialato branco. A Revolta obteve êxito, a chibata foi abolida. A promessa de anistia, oferecida pelo governo, revelou-se numa farsa e muitos foram punidos. João Cândido foi internado no Hospital dos Alienados em abril de 1911, como louco e indigente. Morreu só e desonrado. Em 2008 o governo Lula concedeu-lhe anistia post-mortem, mas negou indenização às famílias dos que ali sucumbiram. Observem a altivez do marujo, digna de um almirante de verdade.

Redação

1 Comentário

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  1. Muito Bem Lembrado!

    Eu só acrescento O Pixinguinha também como o fundador da musica brasileira e Machado. Sei ou sabemos se for postado vai melhorar a lista, Lima e Joao do Rio são certamente o que escreveu. Abs

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