Memórias de um Mundo Moribundo, por Mordaz Moreira

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Memórias de um Mundo Moribundo ou 
 
Que fim levaram todas as cores!
 
(Um conto com dois títulos e uma advertência tardia, escrito por um professor doutrinador em História e Sociologia sob o pseudônimo de Mordaz Moreira, porque o mar aqui não está pra peixe).
 
A Brecht e Orwell 
 
A vitória foi épica, a posse apoteótica, e diante da dificuldade em resolver as chatices da economia e agradar de imediato aos anseios gerados na disputa, era preciso agir e responder com celeridade. Tarefa hercúlea que exigiu estabelecer em torno do Líder Supremo, que só abaixo de Deus estaria, o Comando das Pessoas de Bem, cujas primeiras incumbência foram  classificar  a sociedade por cores e implementar e conduzir as ações urgentes. Decidiu-se pelo caminho mais fácil: iniciar  uma guerra.

 
Primeiro passo: ocupar um país vizinho. Já lá se iam uns 200 anos que não se tentava nada assim, e na época os patrocinadores do conflito, que de longe assistiram a tudo sem sujarem as mãos, não permitiram ocupação efetiva da terra devastada, para não arriscar que uma nação levasse adiante a industrialização que se pretendeu impedir na outra. Nos século seguintes fomos meros coadjuvantes, quase figurantes, brincadeiras de criança das quais saímos de mãos abanando, sobretudo nas ilhas tropicais. Era urgente adotar uma  estratégia grandiosa e que não melindrasse a opinião pública. De nada adiantaria invadir pequenos territórios ao Sul ou a Oeste, que talvez nos privasse de gás e coca, proibida para todos, mas tolerada e que era sinal de prestígio entre os membros do Comado das Pessoas de Bem. Alguém lembrou de eleger como alvo um ‘vizinho’, mas  que fosse um com ‘V’ maiúculo, de ‘vermelho’, de ‘voraz’, de ‘velhaco’.
 
O Comando das Pessoas de Bem era expert na superação do obstáculo inicial: convencer a população da ideia apenas aparentemente controversa de ser um dever de todos proteger nossos vizinhos de sua própria gente. Foi fácil, por, internamente, o Comando, em sua campanha eleitoral exitosa, ter jogado uns contra os outros aos seus próprios cidadãos,   com a disseminação de notícias falsas em redes virtuais, falsas mas tomadas como  verdade por  ressuscitar velhos monstros, reassombrar velhos fantasmas.
 
Então saíram à cata de contingente inicial para enviar à frente de batalha contra os Vizinhos, e alguém se lembrou de convocar os Vermelhos, os primeiros a terem sido isolados sem mesmo que fosse preciso meter-lhes em guetos, já estavam todos reunidos desde o dia seguinte à grande vitória, quando bastou cerca-los nos assentamentos, aldeias, sindicatos e universidades em que se entrincheiravam, sendo-lhes facultada saída  apenas em extrema urgência, como ir ao funeral de um ente querido habitante em cercado distante, morto  acidentalmente – sempre era acidental, assegurava o Comando.Sim, seriam eles os primeiros o front. Afinal , conforme ficou provado na campanha ética e massiva há pouco encerrada, os Vermelhos eram a cor do Mal,  do inimigo a ser derrotado, tinham o dever de reparar os males causados à Nação, e deveriam ser gratos a oportunidade de fazê-lo com honra e louvor.
 
Aos Vermelhos foram dadas algumas hipóteses:  seguirem sobrevivendo nos cercados, nos quais o Comando planejava montar uns fornos caso o inverno fosse prolongado. Ou optar por temporadas de auto reflexão (não eram ‘prisões’, apenas as salas eram isoladas e trancadas a cadeado), com sessões periódicas de fisioterapias experimentais – alguns Vermelhos acusaram ‘tortura’, mas depois de algumas sessões se convenceram do contrário. Os mais relutantes foram enviados ao exterior, em intercâmbio compulsório de engrandecimento cultural, dispondo de  passagem de ida custeada pelo Comando, que logo decidiu interromper esse apoio ao ser criticado por, responsavelmente, tomar guarda de eventuais bens e propriedades deixados por esses viajantes, ação louvada pela maioria frente a absurdas acusações de ‘confisco’, ‘expropriação’, ‘exílio’ e, pior, ‘degredo’. 
 
Entre os vermelhos houve um ou outro a resistir a qualquer das oportunidades, e eram enviados a conversar na sede do Comando, que considerava mero detalhe ter sua sala de reuniões num porão. As conversas de certo foram intermináveis, porque delas ninguém retornava, um sinal da paciência, bondade,  sabedoria e da infindável capacidade de diálogo do Comando .
 
No front, os Vermelhos apresentaram nenhum combate,  se renderam à primeira chance que lhe foi dada, e todos, sem exceção, se deixaram cooptar pelos Vizinhos. Bando de traidores, disso sempre se soube, pelo menos deste mal nos livramos para sempre.
 
Então o Comado das Pessoas de Bem decidiu reunir novas tropas e enviar os Verdes – ecologistas, vegetarianos e veganos -, entre os quais muitos Vermelhos se infiltraram, tentando uma camuflagem improvável. Não deu certo: assim como os Vermelhos, os Verdes, sem pestanejar, aderiram ligeiro aos Vizinhos. O Comando supôs que a prolonga abstinência de proteína animal debilitou-lhes tanto aos músculos quanto aos cérebros, fraquejando-os diante da força e do poder de coação dos Vizinhos
 
O Comando das Pessoas de Bem não titubeou, tinha a seu dispor o imenso contingente de Azuis, descendentes de ítalos, teutos, eslavos. Enviaram os que aqui nasceram a partir da  terceira geração, eram já poucos os mais velhos que vieram trabalhar na terra – voluntariamente, é importante destacar, quase que banidos de seus países e aqui recebidos de braços abertos.
 
Tratou-se de  uma deferência aos que, vá lá, tinham já um pé na cova, e de atender aos  protesto dos Comandos estrangeiros que estavam no poder em algumas de  suas Pátrias-mães – bastantes, aliás, e não paravam de aumentar –   e se mantinham relações diplomáticas, mesmo camaradas, com o Comando das Pessoas de Bem. 
 
Sequer foram poupados os de terceira geração em diante retornados recentemente do exterior, os que antes tinham daqui partido por não suportar mais a convivência com os Vermelhos cá dentro, era revoltante ter que cruzar com eles o tempo todo, nos aeroportos, nos – pasmem – mesmos shopping centers, nas mesmas escolas antes vedadas aos Vermelhos e às suas crias.  A gritaria foi imensa, sim, argumentaram que os votos que lá fora deram ao Líder Supremo foram importantes para sua vitória, mas alguém do Comando lembrou que a experiência de sobrevivência no estrangeiro que tinha esse tipo de Azuis poderia ser importante para nossas tropas no território dos Vizinhos. 
 
Nesse momento o Comando teve de fazer alguns expurgos, expulsando, integrado-os imediatamente aos Azuis, três de seus membros que ousaram lembrar que o próprio Líder Supremo era descendente direto de velhos Azuis. Ora, e daí? Tinha ele imunidade e um precedente histórico ao seu favor: outrora , num país distante, o primeiro dos Líderes Supremos ascendera ao poder em um país  vizinho ao da sua pátria-mãe, e ninguém deu por isso, e só não estendeu toda a sua benevolência por todo planeta porque houve resistência ao sistema de cores que ele implantou e que hoje inspirava ao Comado de Pessoas de Bem, que o aprimorou, estendendo-o à toda população e não apenas a três ou quatro grupos – além do que aquelas estrelas coloridas usadas pelo primeiro dos Líderes supremos para separar os grupos sociais não assimiladas pelo Comando, alguém lembrou que, convenhamos, hoje seria um tanto démodée tais penduricalhos, e a forma geométrica ‘estrela’ poderia remeter à simbologia Vermelha. Foram os Azuis, portanto, os quem mais trabalho deram na triagem, por serem diversos e articulados que eram com suas origens.
 
Num cálculo rasteiro,  pelo menos a metade dos selecionados se safou e regressou às terras  de seus antepassados, ingratos que eram. Da outra metade, enviada ao país dos Vizinhos, uns poucos se perfilaram ao lado do Vermelhos e dos Verdes, e a maioria debandou. Perdidos na floresta, preferiram arriscar morrer na goela dos bichos ou fuzilados sob acusação de desertores, caso conseguissem retornar, do que ter de se adaptar aos hábitos selvagens dos Vizinhos, notórios comedores de ovos de lagarto e de carne bovina putrefata, e, pior, aderir a um ovo país ao custo de ter de voltar a conviver entre  os Vermelhos que outrora tanto combateram cá dentro.
 
Para reforçar o contingente de Azuis alguém cogitou inserir entre eles os ibéricos, o que se mostrou inviável. Primeiro ,  por ninguém considerá-los como genuínos Azuis, o que iniciaria  debate extenso demais para o momento  tampouco parecia factível se chegar a definição de uma cor específica para eles. Segundo, por estarem diluídos entre membros do próprio Comando das Pessoas de Bem, sendo impossível extirpá-los sem cortar na própria carne.
 
Do grupo de Azuis também  foram excluídos os grandes irmãos do Norte, que compuseram uma categoria especial, a  Gold, alusão ao Gold Card que lhes foi atribuído pelo Comando, um visto de permanência e residência vitalício e hereditário que só não lhes concedeu nacionalidade porque a dispensaram, pois não viam porque lhes serem impostas fronteiras, portadores que eram da ideologia da fraternidade e liberdade que levavam mundo afora onde pusessem pés e mãos. Ademais, o Gold Card foi uma retribuição ao desprendimento e generosidade dos irmãos do Norte,  materializada em doação de armamentos, muitos de segunda mão, é verdade, mas longe de serem sucatas e com  peças de reposição à disposição por um precinho camarada, de banana mesmo, matéria prima que nunca faltou ao Comando. A compensar o Gold Card, os membros do Comando obtinham dos do Norte livre acesso as suas cidades hedonistas, coisa de gente civilizada de verdade, desde que se portassem passagem de ida e volta e muito dinheiro para lá torrar.
 
Alguns esticavam a viagem a pretexto de pós graduação, palestra em universidades – as melhores do mundo, justificavam o valor de suas taxas – , mas era só para causar inveja a num ou noutro membro do Comando metido a intelectual. Outra gentil  retribuição dos do Norte  foi instituição do  Olive Green Card, exclusivo para militares do Comando e seus familiares, desde que lá tirassem os sapatos ao entrar em qualquer edifício, público ou privado do país do Norte,  e que sempre batessem continência diante da bandeira listrestrelada, sendo dispensados de saber de cor e salteado o hino nacional do Norte e de levar a mão direita ao peito quando o escutassem, embora muitos o fizessem com desprendimento, orgulho e sinceridade comoventes, de umedecer aos olhos de quem os assistisse. 
 
Aos juízes do Comando, sobretudo os habitué ao Norte,  decisivos nos preparativos anteriores à Grande Vitória do Líder Supremo, confinado e silenciando o mais encanecidos dos opositores Vermelhos,  e depois  em nada obstaram nas parcerias dos Gold nas empresas nacionais, bastava o passaporte comum,  foram dispensados de qualquer chatice burocrática,  menos a exigência de retirar os sapatos.
 
Falhadas todas as tentativas anteriores, era a vez dos Amarelos, que aqui chegaram havia mais de um século. Como restavam poucos velhos da primeira geração, e como tanto os nipo, os ham  e os sino procriavam em demasia – era corrente no Comando a piada dos ‘dois pauzinhos’ –  não se aplicou aos Amarelos o critério da terceira geração adotado para Azuis,  indistintamente foram todos reunidos em tropa para combater no território dos Vizinhos, daqueles velhotes sererelepes que povoavam as feiras livres e as filas de supermercado de certo havia algo a se aproveitar.
 
Evidente que houve protestos, principalmente dos sino,  que argumentaram serem os principais fornecedores dos eletrônicos de ponta usados nos computadores do Comando, mas pesou contra eles o fato de, primeiro, nada terem criado e copiado tudo do Norte, e, o mais grave,  por outrora  terem reivindicado que, já sendo tantos por cá,  mereciam ser homenageados pela ruborização de uma das estrelas bandeira nacional,  discussão que gerou indignação generalizada, a bandeira da Pátria jamais seria vermelha, e que foi celeremente superada e rechaçada pelo antigo Parlamento, a esta altura encerrado pelo Comando dada a sua desnecessidade e por servir somente para reverberar a  chiadeira da bancada então eleita pelos Vermelhos.
 
Alguém sugeriu ser ocasião para se aproveitar e superar antigo debate sustentado por de uma ala minoritária, porém ruidosa, do Comando,  que vira e mexe questionava “por que a listrelada bandeira do Norte podia conter o vermelho e a nossa, não?”.  
 
Enviados à frente de combate, nunca mais nada se soube dos Amarelos, e foram rapidamente esquecidos. Talvez por ninguém jamais  ter entendido o que de fato o que falavam ou escreviam  em suas línguas incompreensíveis, e, quando usavam de idiomas que não aos seus, aos ouvidos do Comando soava  como se tratassem sempre  e tão somente de frangos e frituras. E gente que se alimentava de carne de cachorro – que aberração – sobreviveria a qualquer ambiente hostil, na selva estariam em casa, mesmo lá não existindo bambu, quem não tem cão caçaria com taquara.
 
Apelaram então aos recursos dos Marrons, os inválidos, aleijados, mongolóides e alterados de toda sorte, inclusive os parcialmente cegos.  Os drogados, principalmente os maconheiros que por tempo demasiado se refugiaram num pseudo discurso científico medicinal para seguir com suas indecências. Os moradores de rua, os mendigos, nenhum escapou do recrutamento Marrom, exceto os loucos e os abirobados, e trabalhoso foi localizar e separar dentre eles os que doidices simulavam, quase todos Vermelhos, sempre eles, que, flagrados, eram imediatamente fuzilados para não se correr o risco de que, enviados à guerra,  mudassem de lado. Alguém sugeriu também  fuzilamento de todos os loucos, argumentado sendo bocas improdutivas a consumir mantimentos já tão escassos,  proposta não acatada pelo Comando, porque sob a devida vigilância, eram os loucos ainda úteis no reforço da limpeza urbana. 
 
Os que tinham dificuldade de mobilidade seriam jogados de para quedas em meio ao campo de batalha,  saberiam se virar, já o conseguiam fazer, adaptando-se com criatividade, habilidade e destreza ao dia a dia das nossas cidades acidentadas,  e estavam já habituados à  falta de medicação, muitos acostumados mesmo à dor já que se  auto mutilavam , voluntariamente, com piercings, brincos, agulhas, as de tatuagem ou de picos, e coisas do gênero.
 
Diabéticos, hipertensos e aidéticos também   engrossaram as fileiras Marrons, foram inseridos logo para evitar futuras redundâncias, desnecessidades, e, afinal, as cores escasseavam para emprestarem seu nomes a novos grupos.  Por exemplo: simultaneamente ao censo dos Marrons,  correu em segredo, guardado a sete chaves no Conselho,  debate tenso em torno de se criar ou não o grupo dos Cáqui, o dos velhos remanescentes de toda outra cor, ideia logo abandonada, o  envio desse grupo natimorto à guerra seria por demais dispendioso, também seus cuidadores teriam de ir, e mesmo  continuar bancando os acessórios dos quais careciam, como cadeiras de roda, bengalas, fraldas de custosa reposição, seria mais barato que o esforço de batalha.
 
Por pouco pouparam aos velhos, mas foi só porque a posição majoritária venceu por pequena margem  na votação,  placar apertado de 10 votos a 8 a 1 para hipótese de que seria uma questão humanitária não envia-los, afinal, era só questão de paciência e aguardar suas mortes. Um único membro que votou em sua proposta, era um  renitente munido de dados e estatísticas econômicas convincentes,e defendia que os velhos fossem logo reunidos aos Marrons e não se falava mais nisso. Os colostomizados foram poupados, mas só por deferência ao Líder Supremo, que, embora recuperado, sabia melhor do que ninguém o significado do ‘quem tem cu tem medo’, e que em quem cu não mais tinha, ainda mais medo havia. 
 
Os Marrons foram seccionados ao ponto de só não darem mais trabalho do que a catalogação dos Azuis, porque estes pelo menos tinham a quem recorrer no estrangeiro, e os Marrons, ninguém  dava por eles. Não se soube o que houve com os Marrons após o envio ao front. Surgiu mesmo uma lenda de que os Vizinhos os acolhiam e tratavam, mas só podia ser mentira, evidentemente, imagina. Se nem o Comando das Pessoas de Bem o fez, logo os Vizinhos, aqueles bárbaros, seriam capazes de tamanho gesto de humanitarismo e solidariedade?
 
Foi a vez de compor o grupo Grená. Nele foram enfileirados os gays, travestis, lgbttqs e tudo o mais que desse pinta de ser diferente. Grená, denominação apropriada por ser cor paradoxal: perpassava todas as demais e a nenhuma especificamente.
 
Deveriam ter sido os primeiros, mesmo antes do Vermelhos, mas eram tantos, inclusive nos armários do Comando, que foram sendo tolerados, até que não deu mais, diversidade implica em responsabilidade e todos tinham que dar sua parte. E qual não foi o espanto  e a perplexidade de um grupo de estudantes pervertidos reunidos aos Grená ao cruzarem com um ex-professor deles entre os recrutados, a quem os estudantes outrora acusaram de  homofobia, e outros adjetivos impublicáveis, por conta de um comentário jocoso do professor proferido numa aula, que os jovens tomaram por ofensa, melindrosos que são os da Neve, e o acusaram violentamente quando supunham ter a liberdade de impune e ferozmente fazer o que bem lhes viesse à telha,  diante do que  o professor silenciou. Ficaram ainda mais surpresos por agora receberem do professor um sorriso que soou a perdão não pedido, como quem diz “deixa pra lá, acontece, pobres moços, vocês não sabem o que eu sei, o que os nossos já passaram,oxalá vocês também não passem”,  seguiram todos juntos para o embarque, professor e estudantes, como numa fúnebre excursão colegial, em silêncio absoluto. Enviados, também os Grená sumiram todos. Delicados que eram, não devem ter resistido aos rigores da selva, deduziu o Comando. 
 
“E os acinzenta….”…Teve calada a boca antes de completar a palavra o infeliz que cometeria o que era considerado uma heresia passadas logo as primeiras semanas de ação do Comado das Pessoas de Bem: pronunciar o nome dos esquecidos e proscritos. Tratavam-se dos Cinzentos, os fascínoras, os encarcerados, os ladrões, os traficantes de órgãos e de pessoas, os criminosos. Muito embora um dos temas principais da campanha do Líder Supremo era combatê-los e encarcera-los a todo e qualquer custo, apenas metade da promessa foi alcançada e cumprida, a do encarceramento. Os Cinzentos eram os únicos que tinham seus próprios Comandos, e operavam exatamente a partir das penitenciárias, nelas estavam seguros e protegidos uns dos outros, cada um no seu quadrado, e recebiam cada vez mais adeptos, com as prisões em massa efetuadas pelas  tropas e milicias do Comando das Pessoas de Bem.
 
Assim que percebeu que seria impossível eliminar os Cinzentos exatamente por ser o responsável pelo crescimento de suas fileiras, o Comando das Pessoas de Bem tratou de enviar emissários que negociaram com os diversas lideranças cinzentas o acordo que pôs fim à matança mútua entre eles,  e difícil era ocultar da população as baixas do Comando de Pessoas de Bem nos tiroteios contra os Cinzentos, mesmo contando com a simpatia e cordialidade da mídia, que, aliás, era uma antiga aliada do Comando, sempre foi. O acordo consistiu em os Cinzentos coibirem assassinatos nas ruas  e, em troca, iam gerir as prisões, se eles se matassem aqui acolá disputado território era problema deles.
 
Podiam também ter sua parcela no controle do jogo ilegal e do tráfico de drogas leves – o Comando se comprometeu em jamais legaliza-los para manter de pé esse item do acordo. Mantiveram-se leais uns aos outros, os Cinzentos e o Comando das Pessoas de Bem, e inclusive trocavam vez ou outra favores, sempre em sigilo, como foi o uso, pelo Comando, do destacamento de estupradores, que tocavam terror na consolidação dos primeiros cercamentos dos Vermelhos, terminando o serviço, seu codinome era “Destacamento Ultra”, e sempre que necessário era chamado à ação. E foi memorável aquela cessão de helicóptero de propriedade de um membro do Comando para uma carga de cocaína dos Cinzentos,  aeronave devidamente não identificada, ainda bem, pois o estúpido do piloto errou a rota e teve que descer em área pública, aos olhos de todos, ainda bem que a mídia, camarada de sempre, sabia que se tratava de uma estupenda apreensão efetuada pelo Comando, foi a versão oficial divulgada.
 
Os Cinzentos, portanto,  existiam, mas melhor seria deixá-los em paz. “Conheceis o Mal e dele te aproveitarás”, citava sempre o Líder Supremo, de certo que mais uma de tantas das passagens da Escritura Sagrada, a qual ninguém dominada melhor do que ele.
 
Portanto, restavam poucos recursos e alguém cogitou enviar aos Pretos. Outro debate extenso se inaugurou:  quem iria então cuidar do trabalho braçal? Os Pretos eram necessários para os serviços básicos- só não limpavam fossas, às quais eram destinados os loucos. E o Comando estava convencido de sua resignação e  dignidade ao vê-los trabalhar com afinco sem cobrar salário, do que não precisavam afinal, tinham assegurado teto e ração e roupas,  e o Comado lhes devotava ternura, castigo não havia, se hora ou outra alguém do Comando era mais rigoroso, era só por vocação educativa, pedagógica, afinal precisavam ser educados, pois  eram  considerados quase da família. 
 
Finalmente, pouco ou nenhum recurso restava. Alguém então sugeriu criar uma sub-categoria entre os membros do Comando, uma espécie de  “Sub Comando das Pessoas de Bem”, e que seus membros  fossem os próximos. O embate foi grande, ninguém se dispunha a ser rebaixado, afinal, eram todos iguais perante o Líder Supremo e Deus, acima de tudo e de todos, os olhava com a mesma benevolência.  Contudo, tratava-se de ou estabelecer o Sub Comado ou adotar escolha de Sofia, entregar os próprios filhos, a começar pelos primogênitos, estava escrito e às escrituras todos juraram obediência cega. Optou-se pela última estratégia, que se criasse o Sub Comando.
 
Decidiu-se que jogando dados ou retirados palitos mais curtos,  o acaso elegeria o Sub Comando. Porém, antes de tudo era preciso definir uma cor para esse grupo o que, segundo a nossa lei, era decisão que, por extraordinária e das mais importantes, era prerrogativa das Pessoas de Bem, e exigia a presença de todos os que integravam o Comando, inclusive a do Líder Supremo, que, onisciente que era,  acabara de adentrar no salão. Estranhamente, desta feita não ostentava o  brilho e o resplendor  característicos de suas raras entradas e  aparições públicas.
 
Só então perceberam que o Líder e todo o Comando evanesciam, não aparentavam mais ter cor alguma, estavam se tornando translúcidos, quase transparentes. De tanto aniquilar as cores, e depois de tudo o que fizeram, contrariando tudo o que prometeram,  deixaram de ser considerados  Pessoa de Bem, e perderam o poder de definir a cor de quem quer que fosse, tampouco o de reivindicar uma para si próprios. E desapareceram.  
 
Foi quando uns dos Pretos entraram para faxina rotineira no salão, estranharam o vazio e o silêncio e, ao abrirem as cortinas empoeiradas, miraram uma luz intensa que emanava do horizonte, e quanto mais se aproximava mais assumia a forma de um gigantesco Arco Íris. Eram todas as cores, retornando.
 
ADVERTÊNCIA TARDIA
Esta narrativa tem dois títulos, aqueles leitores que vêem uma miragem de esperança contida em seu último parágrafo podem ficar à vontade para optar pelo segundo, os demais, como este autor, pelo primeiro
 
PEQUENO GLOSSÁRIO
-“Já lá se iam uns 200 aos que não se tentava nada assim, e na época os patrocinadores do conflito, que de longe assistiram a tudo sem sujarem as mãos, não permitiram ocupação efetiva da terra devastada, para não arriscar que uma nação levasse adiante a industrialização que se pretendeu impedir na outra.” Referência a participação do Brasil na Guerra do Paraguai, séc. XIX e a pressão inglesa para que brasileiros, argentinos e uruguaios devastassem o Paraguai (quase toda a população masculina adulta foi aniquilada) e cessasse com a industrialização incipiente que almejava o Paraguai. 
 
-“No século XX fomos meros coadjuvantes, quase figurantes, brincadeiras de criança das quais saímos de mãos abanando, sobretudo nas ilhas tropicais”. Na II Guerra Mundial o Brasil integrou as forças Aliadas tardiamente, e suas tropas – mal preparadas e mal equipadas – se limitaram a combates em território italiano. A referência ao Caribe é pelo apoio, ainda que velado, da ditadura militar brasileira à invasão de Granada pelos EUA (1982) e pelo comando militar brasileiro da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) (2004-2017). 
 
– “Comandos estrangeiros que estavam no poder em algumas de  suas Pátrias-mães”: Crescentes  na Itália, na Polônia, na Hungria, na República Tcheca, na Áustria, na Holanda, na Suécia…..
 
– O “V” maísculo, os ovos de lagarto, são alusões diretas à Venezuela, o “Vizinho”, objeto de ódio da direita brasileira.
 
– A “exigência de retirada dos sapatos”: em  2002, o embaixador Celso Lafer, então ministro das Relações Exteriores do Brasil,  foi obrigado a tirar os sapatos durante revista, ao desembarcar nos aeroportos de Miami, Whasington e Nova Iorque,  onde esteve em missão diplomática oficial e, teoricamente, seria dispensado de submeter-se a revista.
 
– “ A bandeira da Pátria jamais seria vermelha”: um dos motes da campanha fascista, ante comunista e anti socialista da disputa presidencial no Brasil em 2018.
– ” O mais encanecido dos opositores Vermelhos”: Lula.
 
– Os Azuis retornados: Bolsonaro recebeu 71% dos votos de eleitores brasileiros que vivem em outros países.
 
– “O primeiro dos Líderes Supremos ascendera ao poder em um país  vizinho ao da sua pátria-mãe”: Hitler era austríaco .
 
-“Destacamento Ultra”, referência  ao torturador Brilhante Ulstra, ídolo de Bolsonaro. 
“Os da Neve”: a tal ‘geração floco de Neve’, que, talvez por falta de conhecimento teórico e por experiência real de vida,  se melindra diante de qualquer questionamento a seus ativismos neófitos.
 
-“Deus acima de todos”: parte do slogan da campanha bolsonarista (também da hitlerista).
 
-” A nossa lei”. Em fala a apoiadores nas ruas, Bolsonaro chegou a ameçar opositores de prisão ou exílio se não concordassem com o que chamou de ‘a nossa lei’. 
 
Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

1 Comentário

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  1. Texto bastante criativo.

    Texto bastante criativo. Seria interessante que se fizesse uma pesquisa sobre uma possível guerra do Brasil contra a Venezuela, principalmente entre as pessoas de bem. eleitores do Bozo. Exemplo:

    1 – Você apóia uma declaração de guerra contra a Venezuela ?

    2 – Você está disposto a pegar em armas na guerra contra a Venezuela ?

    3 – Você concorda em entregar seus filhos para o exército que irá lutar na guerra com a Venezuela ?

    4 – Você apóia a convocação de seus pais para a guerra contra a Venezuela ?

    5 – Você está disposto a morrer na luta contra os comunistas venezuelanos ?

     

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