Meta e o efeito do quebra-cabeça de Jane Austen, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No Meta, pessoas que vivem em diferentes espaços geográficos e pertencem a diferentes universos simbólicos podem supostamente viver no mesmo espaço virtual.

Meta e o efeito do quebra-cabeça de Jane Austen, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ao lançar o Meta, Mark Zuckerberg provocou um grande debate. Os negócios em torno desse novo produto estão começando a crescer. Espaços são comprados e vendidos, uma nova civilização que mimetiza a nossa está sendo construída no mundo virtual. 

Eu nasci na cidade de São Paulo em 1964. Dos 3 aos 10 anos fui criado na pequena Eldorado SP, cidade cercada pela Mata Atlântica, rios, córregos e lagos. Quando voltei a morar na cidade grande, me perguntava: As pessoas que vivem em cidades desérticas de concreto conseguem se adaptar à vida natural?

Como eu mesmo me adaptei à vida na cidade, minha resposta era sim. Mas, vendo minha própria vida em retrospecto, suponho que a resposta a essa pergunta que fiz quando criança estava errada. As pessoas apenas conhecem aquilo com o que estão acostumadas. E as crianças podem simplesmente se acostumar com o ambiente em que vivem.

Adaptar uma criança a qualquer ambiente é fácil. A adaptação de um adulto a um ambiente diferente daquele em que cresceu é um pouco mais complicada. Ela é dificultada pela ignorância, preconceito e pressupostos inadequados.

A internet já mudou nossas vidas, pois nos colocou em contato com pessoas e mundos distantes e que até mesmo não existiam. Antes dela, nós éramos seres territoriais que viviam apenas no espaço geográfio. Depois da internet, passamos a ser seres que também existem num território que só existe artificialmente e construído por computadores em rede. Aqueles que nasceram antes disso tiveram que se adaptar a dois mundos diferentes. Aqueles que nasceram nos últimos 20 anos nas grandes cidades consideram a internet parte de seu mundo.

Eu tenho 57 anos e só usei óculos de realidade virtual uma vez durante um evento cultural. A experiência foi interessante, mas muito perturbadora. Provavelmente não voltarei a fazer isso voluntariamente. Mas uma criança que cresce usando a internet e faz isso com frequência provavelmente se adaptará facilmente ao Meta.

Então creio que é necessário fazer uma nova pergunta:  Uma criança urbana que crescer adaptada à internet e ao Meta poderá se adaptar ao mundo natural na idade adulta ? A resposta a esta pergunta não é fácil, pois a estranheza que eu mesmo senti ao passar da vida no interior à da grande metrópole urbana é qualitativamente diferente.

Eu me movimentei entre diferentes espaços geográficos com propriedades físicas semelhantes. O espaço virtual em que as pessoas vivem de forma desterritorializada tem características muito diferentes, algumas delas bizarras, politicamente perturbadoras e culturalmente e aterrorizantes.
O Meta pode acelerar e expandir os recursos do mundo virtual. Ao fazer isso, ele criará um abismo entre a realidade real do mundo natural e a realidade virtual daqueles que constantemente mergulham num novo universo viciante.

Vejamos o assunto do ponto de vista literário. Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, explora os conflitos causados ​​pela hierarquia social. As personagens habitam o mesmo espaço geográfico, mas pertencem a universos simbólicos diferentes. A aproximação emocional entre eles é difícil e dolorosa.

No Meta, pessoas que vivem em diferentes espaços geográficos e pertencem a diferentes universos simbólicos podem supostamente viver no mesmo espaço virtual. Mas a verdade é que o dinheiro já organiza e classifica o novo universo do Meta. Provavelmente, ele será um simulacro mais cruel do mundo em que vivemos.

As crianças que crescerem sem muito contato com a natureza nesse ambiente virtual viciante, desterritorializado, dominado por preconceitos monetários, terão mais ou menos dificuldade em se aproximar das pessoas no espaço geográfico real? Essa pergunta é apenas retórica.

O efeito politicamente destrutivo das bolhas criadas e lucrativamente impulsionadas na internet já é uma realidade na Europa, nos EUA e em muitos outros países. Os conflitos interpessoais em Orgulho e Preconceito não chegam nem perto dos preconceitos orientados e reforçados por algoritmos.

Não sei exatamente como será o Meta. Mas suponho que nele as pessoas interessadas poderão criar e viver em um mundo artificial fechado semelhante àquele em que os personagens de Jane Austen se movem.

Ironicamente, um livro que questiona e quebra barreiras e hierarquias sociais pode servir no Meta como inspiração para criar novas barreiras, preconceitos e separações.

– Fui expulso do universo de Jane Austen no Meta. – o avatar melancólico diz ao seu psicólogo virtual que tem a mesma aparência que Sigmund Freud.

– Ajudaria você visitar o universo Frankenstein, de Mary Shelley?


O sofrimento da pessoa por trás do avatar melancólico expulso do universo Meta de Jane Austen poderia obviamente ser real. Mas o avatar de Freud no Meta não será necessariamente uma pessoa ou um psicólogo preocupado com esse sofrimento. Isso não será um problema?

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Tenho 58 anos.
    Nunca usei óculos de realidade virtual.
    Óculos para corrigir miopia, uso desde os 9 anos.
    Nos últimos anos, acrescente-se a isso hipermetropia e astigmatismo.
    Nunca tirei uma selfie. Nem só, nem acompanhado.
    Não tenho facebook, instagram, twitter. Fui entrado – sem ter sido consultado – no grupo de whatsapp da minha mulher, e mantenho comunicação por essa rede com meu irmão, que mudou-se para Manaus com minha mãe, que está com Alzheimer, pois lá mora um outro irmão, que tem melhores condições para dar suporte a ela.
    Creio – e essa convicção só se reforça, a cada novidade tecnológica que surge – que estamos a caminho de uma sociedade cujas necessidades e desejos serão todas satisfeitas virtualmente, acabando por transformar-se, elas também, necessidades e desejos, em itens virtuais de prateleiras virtuais.
    Estamos deixando de ser pais, filhos, irmãos, colegas, amigos, para nos transformarmos em seres virtuais, amigos e estudantes virtuais, consumidores virtuais, dados estatísticos virtuais.
    Prezado Fábio, pegue a trama de “Orgulho e Preconceito” e transponha-a para os dias atuais; o que Jane Austen descreve em cerca de 300 páginas, reduziria-se a algumas cenas e situações que se resolvem, hoje, sem sair do lugar e sem nehnuma interação física, em alguns minutos diante da tela de celular. O Barão Frankenstein não necessitaria de nenhuma parafernália para criar seu ‘monstro’, nem de pedaços de cadáveres; a parafernália seria toda virtual, e os pedaços de cadáveres também; ele os recolheria nas redes sociais, sob a forma de perfis, com os detalhes de intimidade que todos fornecem gratuitamente, além de outros aspectos menos votados da personalidade de cada um, ou seja, vícios, preconceitos, recalques, etc.
    Nós mesmos fornecemos a esses doutores Frankenstein – zuckerbergs, bezos, musks – os nossos pedaços virtuais, que eles usam para criar esse monstro chamado Mundo Virtual.
    Na verdade, qualquer livro escrito antes da virada do milênio sofreria, nesse novo meio maravilhoso e virtual, um enxugamento não apenas no seu tamanho, mas também no seu conteúdo; até algum tempo, as pessoas no whatsapp queixavam-se quando alguém mandava um texto escrito muito longo – o famoso textão; ultimamente, as pessoas estão se queixando de quem envia um vídeo com mais de dois minutos.
    Há livros inteiros cuja trama baseia-se na impossibilidade de comunicação real entre as pessoas – situação que possibilita ao autor tecer meditações a respeito de um sem número de temas, vasculhar o que há de mais recôndito na alma – ou que melhor nome tenha isso – das pessoas. O celular resolve esse problema, e, por tabela, dispensa meditação e análise. Em outras palavras, dispensa a capacidade crítica das pessoas. A alma? No mundo virtual, ela não gera tanto incômodo. Por assim dizer, já se trata de um item dispensável.
    Estamos na era do Tiktok, do Kwai; apenas alguns segundos são o bastante para comunicar o nada, o vazio absoluto em que a mente das pessoas estão sendo transformadas.
    Adeus Dostoievski, adeus Graciliano, Machado e Rosa.
    Abram passagem para si mesmos, no tiktok, no kwai, no Meta. Vocês não tem nada a dizer, ou o que se tem a dizer nesses meios tem validade de apenas alguns segundos, mas e daí? O ‘nada’ é fácil de entender, não requer esforço nem concentração. A vida é muito rápida, e paquidermes intelectuais, como eu, ainda preso ao mundo das palavras, vão ficando pelo caminho. Vamos morrendo como elefantes, mesmo, com direito apenas a alguns instantes de luto, por parte dos outros. É preciso seguir em frente, para não perder a próxima sensação do Mundo Virtual. Não importa mais o bem, não importa mais o mal. Desde que se ganhem likes e compartilhamentos, com o respectivo tilintar da caixa registradora, nada mais importa.
    Esse mundo está se transformando em uma coisa horrorosa.

  2. Prezado Fabio, estou com 60 e posso dizer que nunca usei óculos RV, e também nunca tive vontade. Por outro lado, sempre morei numa megalópole, nascido em Moscou e vindo para São Paulo aos sete, nunca deixei de sonhar com uma Eldorado (desculpe o trocadilho). Ainda quero passar boa parte da vida cercado pela Mata Atlântica, onde esta ainda restar. Quanto aos Metas da vida, a essas desejo vida curta. Já vimos esse filme, com o nome de AfterLife, não conheço ninguém que sinta falta. Me preocupa muito que recentes gerações tenham o potencial de se “acostumar” com esse tipo de habitat, e mais, que possam sentir falta desse tipo de “vida”. É muito triste que haja tantas crianças que cresceram, e crescem, sem contato com a natureza real, natureza essa que gerações futuras correm o risco de conhecer apenas pela televisão.
    Bom saber que por aí existem pessoas como Antonio Uchoa Neto, que não se conformam (parece, pelo menos), que não se contentam com os vazios de Kwais e Tiktoks, resistir é nosso destino, sempre vou preferir o textão, o livro impresso, no máximo um e-book, mas com centenas de páginas. Resisto, e resistirei, abrindo passagem a Dostoievski, Graciliano, Machado e Rosa, e tantos outros, nas mentes mais jovens, nos nossos filhos e quem sabe netos (ainda não os tenho) porque deles é o futuro que está sendo roubado pelos Bezos, Zuckerbegs, pelos Musks da vida que vendem essa ilusão idiota dizendo que a tecnologia vai nos arrumar outro mundo para viver. Triste ilusão, não haverá outro mundo. Não é o mundo que está se transformando numa coisa horrorosa, acho eu, mas alguma coisa está. As consciências de muitos, até mesmo de contemporâneos meus com quem convivi na adolescência e até na infância, não são claras e saudáveis, lamento dizer, e a resistência que citei antes inclui resistir a influência e capacidade de persuasão dessas consciências cinzentas que nos cercam e dificultam muitos tipos de otimismo.
    Como disse antes, resisto e resistirei. Saudações.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador