Montar alianças sem a hegemonia do PT!

A voz terrível das urnas

 

Lula foi um dos melhores presidentes da nossa história, mas também cometeu grandes erros: escolheu Dilma uma e duas vezes, entupiu os tribunais superiores de reacionários e golpistas, fortaleceu a Globo, não se esforçou para politizar o povo e, por falta de uma política de comunicação digna, deixou que a classe média fosse cooptada pela extrema-direita.”


Conforme a eleição se aproximava, senti-me diminuir, tornar-me um personagem liliputiano: minúsculo e insignificante. Tinha a sensação opressiva de que estávamos sendo enganados, ou nos enganando a nós mesmos, debruçados sobre pesquisas incapazes de atingir as profundezas da consciência popular.

E foi exatamente isso que ocorreu. Fomos enganados. E nos autoiludimos até o limite da nossa ingenuidade ou estupidez. Diante da violência dos fatos duros da vida, até mesmo o cinismo dos dirigentes partidários nos parece pueril.

As urnas soltaram um terrível grito de desespero.

Então, ao auscultar a sua voz triste e raivosa, voltamos a diminuir, até nos tornarmos praticamente invisíveis. De que adianta berrar, se nossa voz chega ao mundo dos gigantes, ao povo, com o mesmo som de uma formiga caminhando sobre o assoalho?

Agora não importam mais “pesquisas”.

Agora temos números reais, palpáveis, com os quais analisar a realidade, não mais projeções utópicas de nossos sonhos e medos.

Sejam compreensivos se eu me render à irritante, intolerante vaidade de afirmar qualquer coisa como: viram, eu avisei! Mas é que poucas vezes eu escrevi com o espírito tão atormentado, tão apreensivo, tão acossado por previsões sombrias.

É fato que havia indícios no ar desde o início do ano. Não bastava olhar apenas a primeira página das pesquisas. Era necessário olhar o que vinha a seguir, as altíssimas taxas de rejeição nas classes mais instruídas.

Daí nasceu essa grande ilusão, que permitiu ao PT silenciar, isolar, e até mesmo humilhar seus críticos, por mais amigos, honestos e francos que fossem, e que se esforçavam para devassar a realidade para além das patriotadas partidárias.

Durante meses, o PT viveu da ilusão das “pesquisas”, se recusando a ouvir aqueles que alertavam: amigos, virem a página das mesmas pesquisas, olhem a estratificação do eleitorado, confiram a rejeição, as coisas não estão boas!

 

O que disseram as urnas? Rasgaram todas as ilusões! Vamos continuar nos enganando?

Vamos usar meias palavras? As urnas rechaçaram violentamente a estratégia do PT e de Lula.

Bolsonaro devorou o eleitorado do sudeste, sul, centro-oeste e norte, e agora avança rapidamente sobre o nordeste.

O capitão da reserva ganhou as eleições em Recife, Maceió, Aracaju, João Pessoa. Haddad ganhou apenas em São Luiz, Teresina e Salvador. Na capital do Maranhão, Haddad teve 38% e Bolsonaro, 37%. Em Piauí, o placar foi de 44% a 32%. Em Salvador, Haddad obteve uma vitória mais expressiva: 47% X 28%.

Essa é a verdade dura, com a qual temos de lidar agora: Lula e o PT nos levaram a dançar na beira do abismo, e caímos no abismo!

Os leitores nos dirão, ah, agora é olhar para frente, Miguel, de que adianta chorar o leite derramado? Percebi, no twitter, que os mesmos setores da “militância petista” que reagiam agressivamente aos alertas críticos às estratégias de seu partido, agora se recusam a olhar os números que emergiram das urnas, e ainda atacam quem tenta trazê-los para a discussão!

Isso é mais um erro. Mais um terrível erro.

Os partidos políticos precisam formar uma militância crítica, inteligente, insubmissa, culta. Isso é fundamental para o futuro do campo progressista. Militância puxa-saco, nível “mensalinho do PT”, não nos ajudará a conquistar um mísero eleitor novo; ao contrário, ajudará o partido a persistir nos mesmos erros e a conduzir o PT e todos aqueles que se juntarem a ele, ao mesmo buraco.

A criação de uma bolha de fantasia, com blogs que só dizem o que a militância quer ouvir, com pesquisas que só trazem números que agradam aos interesses do partido, e, pior, com cientistas sociais que, mediante generosa remuneração, cumprem o papel de avalizar as estratégias da burocracia, gerou esse buraco negro que nos tragou.

Bolsonaro obteve 49,3 milhões de votos (46%) e Haddad, 31 milhões (34%).

A situação que emergiu das urnas é muito mais dramática, para o PT, e para o campo popular como um todo, do que o imaginado pelo mais pessimista dos analistas.

Ah, dirão, não é hora de autocrítica, Miguel, é hora de “lutar contra o fascismo”…

Tenho a impressão, ao ouvir certos militantes, que eles esperam que saiamos a rua empunhando tacapes.

O que significa “lutar”, para essa militância acrítica, espremida em suas bolhas cada vez menores? Dizer que Haddad foi “magnífico” em determinada entrevista ou debate, e passar o dia inteiro disseminando notícias negativas sobre Bolsonaro?

A responsabilidade de quem se cuidou para não engolir o LSD servido pela burocracia petista é manter a lucidez até o final.

Precisamos lidar com dois cenários sombrios.

Se Haddad ganhar, hipótese improvável, ele lidará com um congresso bem mais golpista do que vitimou Dilma, tanto na câmara como no senado. Com Dilma, o PT tinha 11 senadores, agora tem 4. Com Dilma, o PT tinha 61 deputados e agora tem 56 deputados. E com algumas perdas relevantes, como o combativo Wadih Damous, que fez sua campanha usando o slogan “o advogado de Lula” e recebeu 31 mil votos, menos do que em 2014, quando obteve 37,8 mil votos.

Como, diante de um quadro assim, alguém vai acreditar na propaganda petista, de que o povo “vai ser feliz de novo”? A única verdade a ser contada ao povo é que haverá luta. O último patrimônio político do representante popular, quando ele não tem mais nada a oferecer, é sua honestidade e sua coragem.

Todos os candidatos que se aproximaram demais da narrativa petista de vitimização sofreram grandes derrotas ou tiveram enorme dificuldade de se eleger. Até mesmo o senador Roberto Requião, que prestou um apoio tardio a Ciro Gomes, e que liderava as pesquisas até a véspera das eleições, foi punido pela condescendência com que tratou o sebastianismo lulista.

O PCdoB, que elegeria tranquilamente Manuela D’Ávila como deputada federal pelo Rio Grande do Sul – e certamente ela obteria uma das maiores votações no estado -, conseguiu emplacar apenas 9 nomes, de 7 estados, na Câmara Federal e corre o risco de ficar abaixo da cláusula de barreira, perdendo fundo partidário e tempo de TV. Espera-se que os votos de um deputado da Bahia, cuja eleição está “sob judice” sejam computados para superar a cláusula… A aliança meio forçada com o PT, costurada de última hora num processo brutal denominado de “domingo sangrento” por um dirigente comunista, pode impor ao PCdoB a derrota política da qual ele queria fugir, ao oferecer ao PT, numa bandeja, a cabeça de Manuela.

No Rio de Janeiro, terceiro maior colégio eleitoral do país, o PT só elegeu 1 deputado federal, Benedita da Silva, de 78 anos. Washington Quaquá, ex-prefeito de Maricá, obteve uma votação suficiente para se eleger, superior a 70 mil votos, mas seu mandato ainda espera liberação do TSE, e não sei se, a esta altura, devemos esperar qualquer decisão positiva do judiciário em relação ao PT. As jogadas geniais de Quaquá, pouco antes das eleições, e com sua candidata, Marcia Tiburi, ainda fazendo campanha, foram se aproximar de Garotinho, campeão máximo de rejeição nas classes médias fluminenses, e de Eduardo Paes, que ao cabo quase nem chegou ao segundo turno…

Agora o partido se vê preso numa armadilha. Se se afastar de Lula, será atacado pela própria militância sebastianista que criou, e que iludiu até o limite com a história de que Lula seria o candidato, e de que era possível, sim, torná-lo presidente. Se continuar atrelado a Lula, dará munição ao mais forte argumento de seus adversários, que é justamente esse antipetismo emocional, e que agora alcançou a população de baixa renda, alimentado pela narrativa oferecida pelo próprio PT, com essas visitas constantes à Curitiba, além do desgaste inevitável após treze anos de governo.

Numa das últimas pesquisas do Datafolha, feita no dia 2 de outubro, a cinco dias da eleição, havia uma questão que o PT vinha fingindo não ver desde o início do ano, apesar dos alertas:  entre famílias com renda de 2 a 5 salários, mais de 60% defendiam que Lula deveria continuar condenado e preso. Ora, uma família que ganha 2 salários não é exatamente representante de uma “elite egoísta e fascista”. Entre famílias que ganham de 5 a 10 salários, 75% acham que Lula deveria continuar condenado e preso. Esses números, que na verdade pouco mudaram desde a prisão de Lula, não significam que o PT deveria ter “abandonado” o ex-presidente, mas sim feito uma distinção clara entre sua defesa jurídica e a estratégia eleitoral do partido, até mesmo para proteger Lula.

O que o PT acha que sucederá a Lula em caso de vitória de Bolsonaro?

Se Bolsonaro ganhar, ele estará à frente de um bloco parlamentar não apenas profundamente conservador e alinhado às suas ideias, mas essencialmente antipetista, como se constata pela eleição, para a Câmara federal, de nomes como Kim Katiguiri e Alexandre Frota.

Qual a saída para esse impasse? O que fazer?

Bem, a única solução agora é fazer o que, desesperadamente, defendíamos desde o início do ano: montar um grande arco de alianças, mas sem a hegemonia do PT.

E eu falo isso não como uma estratégia contra o PT, e sim para salvar o PT de si mesmo, de suas viagens lisérgicas e de seu descolamento da realidade. E a realidade é que a rejeição ao PT ganhou dimensões monstruosas. Não adianta o PT ser o partido preferido de 20% da população, se os outros 80% o odeiam. A ação política, ensinou o professor Wanderley Guilherme dos Santos, em vídeo recente, pressupõe que o conjunto de vontades à favor seja superior ao conjunto de vontades em desfavor. É a velha e singela matemática!

Um partido de esquerda precisa, necessariamente, construir uma imagem positiva junto às classes mais instruídas, porque são elas que tem condições intelectuais e materiais de levar adiante a luta política nas redes sociais. Esse é o segredo da força de Bolsonaro. Pretender fazer campanha ou governar apenas com o apoio silencioso de analfabetos residentes em cidades do interior é outro delírio petista que está nos custando muito caro.

Os petistas precisam parar de achar que críticas ao partido significam “antipetismo”. Não é antipetismo. É apenas o esforço honesto de setores da esquerda para salvar o próprio PT de seus erros. Se a reação a essas críticas permanecer intolerante e agressiva, aí sim, o PT ampliará sua rejeição, dessa vez dentro da própria esquerda.

“A guerra é importante demais pra ser deixada na mão dos militares”, dizia Clemenceau, premiê francês durante a 1ª Guerra Mundial. Ele criticava as estratégias dos generais na batalha, que impunham grandes perdas de vidas e não davam resultados satisfatórios. Clemenceau, um socialista que havia se destacado, uma década antes, pela defesa corajosa de Alfred Dreyfus, posicionando-se contra o judiciário e contra a maioria da mídia francesa, conseguiu impor uma estratégia mais prudente ao exército francês, e venceu a guerra.

Podemos dizer a mesma coisa sobre o PT: ele se tornou um partido importante demais para ficar em mãos de seus próprios dirigentes. Ele tem que buscar novas ideias junto à sociedade.

O PT e sua “militância” precisam entender que o seu inimigo não é o intelectual progressista insubmisso às estratégias da burocracia partidária e às decisões do grande líder injustiçado.

O campo progressista, além disso, precisa ser mais plural, até mesmo para não ser arrastado pela reprovação popular a um partido. Por isso é tão importante construir lideranças progressistas para além das atuais hegemonias.

Estamos perdendo todas as batalhas desde 2013. A vitória eleitoral em 2014 foi quase um acaso, e que não se traduziu, de qualquer forma, em vitória política.

Não é possível que alguém ache que estamos no caminho certo.

Lançar uma candidatura diante de uma prisão, e passar a imagem, ao eleitor, de um candidato postiço, que precisa consultar uma liderança presa antes de tomar qualquer decisão, não é, evidentemente, uma boa ideia, pelo menos na opinião da maioria dos brasileiros que foram às urnas no último domingo. O PT sacrificou a candidatura de Marília Arraes em Pernambuco para perder para Bolsonaro em Recife e ver o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, ser derrotado, humilhantemente, no primeiro turno. E tudo para quê? Para eleger Paulo Câmara, que apoiou, com todas as suas forças, o impeachment, e prejudicar Ciro Gomes, que, igualmente com todas as suas forças, lutou contra o golpe?

Lula foi um dos melhores presidentes da nossa história, mas também cometeu grandes erros: escolheu Dilma uma e duas vezes, entupiu os tribunais superiores de reacionários e golpistas, fortaleceu a Globo, não se esforçou para politizar o povo e, por falta de uma política de comunicação digna, deixou que a classe média fosse cooptada pela extrema-direita.

O fato de estar preso, num processo viciado, sem provas, não é exatamente prova do sucesso de suas estratégias políticas ou jurídicas.

O nosso objetivo não pode ser mais apenas as eleições deste ano, e sim a criação de uma frente de resistência de longo prazo, que tenha estratégias para as eleições municipais de 2020 e nacionais de 2022, com foco não apenas na eleição de um “salvador da pátria”, que não terá condições de salvar nada, mas na reconquista da classe média (que não é “elite”, e sim maioria da população brasileira) e na formação de uma bancada legislativa progressista, nacionalista e socialmente sensível.

Miguel do Rosário 

Fonte: https://www.ocafezinho.com/2018/10/09/a-voz-terrivel-das-urnas/

 

Redação

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