Mr. Laughton e seu xadrez

Mr. Laughton havia emigrado da Inglaterra nos anos cinquenta. Contava com cinquenta e nove anos. O que lhe sobrava em rabugice, chegava a lhe faltar em fino humor. Tinha dois graves defeitos: era extremamente rigoroso consigo e extremamente tolerante com os outros. Descrevi defeitos? Não!

Descrevi qualidades. Em Mr. Laughton funcionava assim. O seu desleixo com os outros se transmitia na sua falta de cuidado com tudo que fosse material, na aparência ou no compromisso com a formalidade ou a responsabilidade em ser simplesmente visto como uma pessoa simplesmente consequente ( atos, de nossa parte, geram consequências: isto ele não saberia? ). Poderia ser traduzido assim: sou tão generoso com outros que qualquer mínima exigência – minha, de minha parte, de qualquer simples parte que porventura passe por mim – em nada será exigido daquele que comigo meramente se corresponda; ou a quem sequer minimamente relacione-se comigo. Seja moral, seja compromisso ou mesmo seja mera expectativa…

Traduzindo mais modernamente ainda: minha generosidade, tão grande, desarruma o humano. Transparece minha busca ideal. Não quero ninguém com compromisso algum. Menos e seriamente ainda, comigo.

O outro lado e qualidade de Mr. Laughton era a seriedade, rigor e obstinação pura. Vivia a vida de rigor intenso com suas memórias e sua vivência interior. Era dedicado a entender as questões e se deliciar com o que não estava, em definitivo, esclarecido.

Por isto, que paixão maior teria um homem que um simples e recolhido jogo de xadrex?

Projetava, por artifício e deleite, xadrez por todos os poros de onde poderia projetar a sua existência. Para ele, existiria um xadrez divino, onde apenas um jogador se assentava e determinava todos os lances. Dos dois lados. E nada, ao ser humano, conseguiria ser possível, ser determinável ou implementado.

Havia o xadrez moral: o da mais estreita moralidade. A moralidade rasa, aquela que afundara em nosso desprezo. A mesma vista no rigor do que é moral, apenas quando ficando, sendo vista e notada, a sua troca. Faço o bem esperando um sua recompensa. Recompenso aos outros, esperando minha vez. Finjo que me conformo, apenas quando está todo mundo olhando. Enfim aquela ‘verdadeira’ moral finamente reconhecível. Mas irremediavelmente suja, ela mesma: a mãe de toda sorte de hipocrisia humana.

E havia o xadrez espiritual: aquele da busca intensa, daquela sede nunca preenchida. Daquela colina alcançada, daquela vista de antes, de onde se esperava daquela colina que afinal ocultasse alguma única e singular surpresa – mas de onde agora tudo se descobria permanentemente igual. Irremediavelmente igual. O eterno xadrez, o da busca de uma Singularidade definitiva e eterna…

O real, verdadeiro e inexprimível nome desse seu xadrez pessoal, atendia rigorosamente pelo nome de Angústia.

Daí a intolerância consigo: não poderia permitir o desperdício. Passar pela vida sem lhe descobrir o sentido. O jogo e o seu xadrez. A partida sem ensaio, sem correção, sem retorno. Aquela partida jogada e sequenciada em uma única e definitiva mão. Um pôquer celestial ou uma partida determinada, previsível e inexorável..?

Mr. Laughton afinal conseguira: ser extremamente tolerante com os outros e extremamente – angustiadamente – rigoroso consigo próprio.

Redação

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