Nas trilhas do golpe

Futuro incerto

Como chegamos a este cenário surreal – Nunca vi ambiente político tão indigesto. Procuro olhar em retrospectiva para os últimos anos e, no meio de toda esta cena absurda, na qual atuamos como simples coadjuvantes, tento adivinhar o que virá depois. Parece incrível, mas chegamos ao quarto governo do PT. Os dois primeiros mandatos do sapo barbudo (2003-2006 e 2007-2010) foram gloriosos. O Brasil distribuiu renda, fez crescer a presença das camadas mais pobres nas universidades e aeroportos, notáveis redutos da classe média, aumentou salários, engordou a classe C, acabou com a fome e a miséria absolutas, enviou médicos a lugares remotos, retomou a construção da infraestrutura anteriormente paralisada, abriu muitas universidades e escolas técnicas e ganhou respeito no exterior. Lula passou por apertos terríveis, sofreu ataques pesados com o mensalão, mas manteve uma certa estabilidade econômica, reagiu bem ao início da crise em 2008 e saiu do governo nos braços do povão, com popularidade recorde (83% no final de 2010, pelo Datafolha). 

Como resultado, elegeu facilmente a sucessora. Dilma fez um primeiro mandato bom, principalmente até meados de 2013. Em março do mesmo ano, ela também atingia sua maior popularidade (65%, pelo mesmo Datafolha). Entretanto, o caldo entornou quase do dia para a noite, em termos históricos, nos meados do emblemático 2013, numa reviravolta que somente daqui a alguns anos, talvez, seremos capazes de compreender melhor.

Abre parênteses. Espero que se aprofundem nisso os mestres da neurolínguística e das ciências da comunicação digital, que se debrucem sobre estas mudanças todos os sábios do mundo, por que elas anunciam, em sua sincronia e multiplicidade, o início de uma nova era para os terráqueos, assim como aconteceu do paleolítico à idade dos metais, da invenção da escrita ao fim da guerra fria analógica. Enterrada a idade que convencionamos chamar de contemporânea, nasce uma nova era que poderá ser chamada de primeira era digital. Neste período que vemos nebulosamente se abrir, ocorre a fundação dos alicerces mentais da nova sociedade conectada. Gigantescas corporações vendem pacotes de cookies de dados, biscoitos digitais recheados de desejos, a subversão dos sonhos, transformados em resíduos sólidos. As redes são perpassadas por tentáculos de polvos empresariais que estufam os desejos humanos até contornos injustificáveis, que criam consensos artificiais, que não apontam para uma vida mais saborosa, menos competitiva e mais colaborativa, menos desigual e mais construtiva, com menos trabalho inútil e mais conversas de bom nível, sem golpes na jugular, com beijos e abraços e sorrisos e diversão e arte. Fecha parênteses.

Reduzir a desigualdade, na minha visão política, é o ponto mais importante de todos. É “o” alvo essencial, se verdadeiramente quisermos outros níveis de satisfação em nossas vidas. A gente pode perceber isso quando entra em contato com povos mais igualitários e menos obstaculizados pelos tais resíduos sólidos. Quanto menor a desigualdade, mais harmônica é a convivência entre cidadãos. Um gato sobe no poste e vira notícia, a vida pode parecer boba mas se torna muito prazerosa (boba a vida sempre será diante da morte). O distributivismo cria um clima de paz nas querelas básicas, os espíritos não se exacerbam tão facilmente por questões grotescas. No Brasil, o problema dos extremos não foi solucionado. Ainda existe muita iniquidade. Deu-se um impulso positivo, inclusive no primeiro mandato de Dilma, mas parece que agora vamos abortar o processo, por resistência daqueles que se contentam apenas com o resíduo dos sonhos, possuir o que não dá pra todos. São os antolhos da primeira era digital que me preocupam.

Curiosamente, foi no mês de março/2013 que a taxa de juros Selic alcançou seu nível mais baixo no período democrático desde a primeira crise do Real (98/99), ou seja, desde a reeleição comprada de FHC. O Copom anunciava 7,25% a.a. Após uma curva descentente inciada em julho de 2011, os juros da dívida pública alcançaram um piso insuportável para a elite rentista do país, a mesma elite que reclama de impostos, sempre pagando proporcionalmente menos que os pobres, amparada por leis tributárias concentradoras e suas brechas, enriquecida com a sonegação, que foi alçada ao status de virtude dos espertos. Começou, então, a onda de baixo astral. Ana Maria Braga foi à TV trajando um colar de tomates, bradando contra a inflação. Os juros baixos intoleráveis à classe rentista eram convertidos em ameaça contra a economia popular. Apesar do barulho, vale dizer, a inflação sazonal do primeiro semestre caiu conforme o esperado e fechou o ano em 5,91%, dentro da meta. Enquanto isso, José Dirceu e Genoíno iam para a cadeia, Pizollato se refugiava na Itália. As manchetes carregavam nas tintas sombrias. O cenário de catástrofe se introduzia, preparando terreno, antecipando as eleições do ano seguinte.

Em junho do mesmo 2013, o prefeito Haddad anunciou aumento de tarifas de transportes urbanos. O governador Alckmin estava na parada, mas fez-se de invisível. Os preços estavam represados, os cálculos sugeriam um reajuste bem maior que os 20 centavos negociados pelo prefeito. Às vezes reclama-se quando represam tarifas, às vezes querem-nas represadas. Na ocasião, exigiam tarifa-zero. No fim das contas, o Movimento Passe Livre, formado por jovens politizados e com objetivos bem definidos, foi às ruas para protestar. Mais um pequeno protesto como milhares de outros que sempre aconteciam pelo país. Lembro-me de acompanhar os manifestantes do MTST pela janela do edifício onde trabalhava na Avenida Paulista. Isso acontecia com certa frequência para professosres, sem-terra e outros segmentos sociais. Tudo costumava correr segundo as regras do jogo estabelecidas pela mídia: os jormais denunciaram mais um protesto a atrapalhar o trânsito, Arnaldo Jabor foi ao palanque da Globo detonar os baderneiros do MPL, a polícia de Alckmin baixou-lhes o cacete. Em tempos de redes sociais, o assunto repercutiu mal e instalou-se ali uma faísca da já citada reviravolta. Para surpresa dos atentos, numa sensacional virada de posição, cujos bastidores de poder são pouco conhecidos, inclusife no âmbito estrangeiro, embora muito relevantes, os grandes jornais, páginas de notícias, TVs e rádios, todos os grandes e poucos do concentrado midiático, em uníssono, passaram a enaltecer os protestos do MPL, que foram engrossados rapidinho por outros manifestantes portando as bandeiras mais diversas e estapafúrdias. O mesmo Jabor, desenhista de consensos, voltou à TV para se desdizer e elogiar os mensageiros da primavera brasileira. Uma virada súbita e misteriosa de chave parece ter alterado corações e mentes, levando multidões às ruas. Mais uma vez, peço aos estudiosos do assunto que se dediquem à arquitetura dos imaginários coletivos, à semiótica dos desejos. Tangidas pela Globo e seus tentáculos, as massas despolitizadas perderam a vergonha, ergueram faixas, usurparam o verde-amarelo e arreganharam os dentes contra os vermelhos.

O que se anunciara como um protesto da esquerda, clássica e historicamente amansado pelos criadores de consensos, metamorfoseou-se em um grito da direita, com pedidos de intervenção militar, ataques aos médicos cubanos e grosserias impublicáveis misturadas a um rosário de platitudes acacianas. Uns pediam melhores serviços públicos, outros pediam menos impostos. Tensão e contraste geral. Os protestos cresceram, um fenômeno de catarse coletiva, até que surgiram os malditos black blocs. Patrimônios público e privado foram depredados e o povão, que a tudo assistia na telinha, pôs as barbas de molho. A palavra baderneiros voltou à pauta, o Bonner mostrou aquele olhar cabeludo e iracundo, as contagens de público na avenida minguaram e a turba se resguardou temporariamente.

A mudança de chave, no entanto, já havia alcançado o seu seu propósito. Confirmaríamos um crescimento de 2,3% em 2013, um bom número, mas o humor do brasileiro havia se transformado radicalmente. A popularidade da presidenta despencou dos 65% em março para 31% em julho, menos da metade. Dali em diante, houve pequenos avanços e recuos na aprovação do governo, sem jamais recuperar os percentuais de ótimo/bom anteriores. A pressão foi imensa. Crise. Dilma cometeu, então, seu primeiro erro grave: cedeu nos juros básicos, que voltaram a subir. Paralelamente, a presidenta reeditou o desenvolvimentismo movido a estímulos da era Lula, com desonerações de impostos e estímulos ao setor produtivo. Só que não deu resultado. Com queda das commodities, juros altos e bom retorno nos mercados financeiros, o chamado “espírito animal” dos empresários não desabrochou. Os gastos do governo para arrefecer o rebote da crise de 2008 e alavancar o crescimento viraram riqueza concentrada. Os estímulos ao setor produtivo não foram canalizados para a economia real. Talvez isso desse muito trabalho aos defensores do mérito. Sem esforço algum, neutralizaram o impulso produtivo e aplicaram os ganhos a taxas de juros generosas, raríssimas em um mundo abalado por grave crise. Faturaram alto na banca sem devolver nada concreto ao país. Depois, instalaram um pato de borracha na sede da Fiesp. Pato idolatrado, supremo cinismo.

Mesmo assim, dada a fragilidade e inconsistência dos adversários em 2014, travada uma intensa batalha nas redes sociais, feita uma campanha edulcorada na TV, Dilma foi reeleita. Quando tudo indicava que os anos petistas haviam chegado a termo, deu Dilma de novo, com a força do povo. Ferrou tudo para os hidrófobos, não confundir com hidrofóbicos. A derrota lhes entrou mal. Pediram de cara a recontagem das urnas eletrônicas, sem resultados práticos. A Lava-Jato passou a manobrar corações e mentes, com denúncias seletivas e vazamentos ilegais, moralismo barato e satanização da política. Temas que deveriam ser tratados com imparcialidade e firmeza ingressaram na arena do espetáculo. A corrupção, antes oculta em gavetas, passou a ser combatida, mas direitos civis foram atacados em nome de uma peculiar moralidade. O ódio se alimentou bem, vicejou, semeado pelo triunvirato Moro-MPE-PF em operações circenses. Havia fila no altar dos sacrifícios. No rastro da carência de lideranças, o juiz foi erguido no panteão dos heróis nacionais. O simpático japonês da federal fez contrabando e tomou processos na Justiça, mas ainda ampara prisioneiros com gestos fraternais.

O sinistro quarto mandato petista iniciou-se com o segundo grande erro da presidenta. O desenvolvimentismo à base de incentivos havia, de fato, criado instabilidade fiscal. Nada tão grave como propagado em manchetes diárias, afinal uma relação dívida/Pib de 65% é invejada até por países desenvolvidos, alguns europeus andam na faixa acima dos 100%. Superavit primário quase ninguém faz no mundo de hoje, mas nós, república dos agiotas, teríamos de servi-lo na mesa dos nababos. E Dilma, sob rajadas de balas, fraquejou e nomeou Joaquim Levy para a Fazenda, um burocrata dos mercados prometendo aperto fiscal. Se com isso esperava uma conciliação com os mercados e a mídia, com os grandes timoneiros do humor tupiniquim, obteve em troca mais e mais pancadaria, inclusive de seus apoiadores. O ano de 2015 trouxe pessimismo, desemprego, crise política e paralisação. Grandes empreiteiras nas cordas, demissões, Petrobras no prejuízo, o maior compasso de espera que já presenciei na vida. Em resumo, há cerca de um ano e meio esbracejamos no pântano da crise. Aquilo que era plenamente contornável ganhou tons de gravidade catastrófica.

A oposição, abarcando uma direita fervente e ignara, partiu para o jogo pesado. Os bons meninos do MPL foram sucedidos pelos imbecis do MBL (Brasil Livre), retardatários dos anos 90, ajoelhados ora para o instituto Mises, ora para Olavo de Carvalho. As palavras impeachment, crise e Lava-Jato passaram a ser marteladas, minuto a minuto, em todos os canais de comunicação. As redes sociais tentaram fazer o contraponto, mostrando que a corrupção não é chaga de nenhum partido em particular. Todo mundo já entendeu isso, mas o PT virou bola da vez e não adianta espernear. Neste ano e meio pós-eleição, costurou-se, semana após semana, um golpe modernoso que fere o voto popular e viola o presidencialismo e a nossa jovem democracia, um golpe com significativo apoio popular, na linha do “vamos tirar a Dilma, depois a gente vê o que faz”. Um consenso perigoso, um salto no escuro.

Caímos numa situação deprimente. A popularidade da presidenta baixou para a casa dos 10%. O PMDB vazou deixando um vácuo atrás de si. O governo negocia cargos em troca de apoio contra o golpe. Temer negocia cargos no mercado futuro em troca da aprovação do impeachment. Cunha segue livre e saltitante, ditando as regras no parlamento, e pode até escapar, já que é ele quem manda de fato. Os tucanos fazem acordos por debaixo e por cima dos panos, de olho na partilha do pré-sal e na flexibilização das leis trabalhistas. A Lava-Jato, agora com incômodas listas (HSBC, Odebrecht, Furnas, planilha com R$ 52 milhões de propinas para Cunha, Panamá Papers etc.) envolvendo vários opositores, promete encerrar os trabalhos em dezembro. O PMDB deve restaurar o financiamento empresarial de campanha. Bárbara Gancia foi demitida da BandNews por conta do parentesco entre os donos da emissora-mãe e o presidente da Câmara. Cunha não poderia jamais ser criticado pela jornalista. Boechat, apequenado, repete apenas que “o homem é poderoso”. Parece surpreso ao saber que Sarney votou Aécio em 2014, que seu odiado “bigodon” milita hoje nas trincheiras do golpe. A garota bonitinha da Globonews traz notícias frescas do Congresso, projeções alvissareiras para o campo golpista, passadas em ótica esmerada por seus padrinhos tucanos. Foi lá plantada por eles. Analistas negam participar de programas de entrevistas na vênus platinada, alegando golpismo. A imprensa estrangeira fala em atentado à democracia, denuncia as raposas que assaltam o galinheiro. A mansão global da Mossack e Fonseca em Paraty é esculachada em auspiciosos projetos de crowdfunding nanico. A data para a admissibilidade do golpe está marcada para o domingão.

Ouço os discursos no rito de impeachment e entro na internet para pesquisar os congressistas. Os dois primeiros que examino, um do PP e outro do PMDB, discursam exaltados pela deposição da presidenta. Revelam-se casos lapidares: o primeiro está enrolado em fraudes a licitações, o segundo em suspeitas de apoio ao trabalho escravo. A ficha corrida dos dois é extensa, mas, no microfone do plenário, acusam Dilma de um crime de responsabilidade sem qualquer sustentação jurídica. Transformam o julgamento em peça política, mandando às favas o presidencialismo referendado nas urnas. Simulam um parlamentarismo que não temos na Constituição. Prepara-se um golpe para instalar o sindicato dos ladrões no poder, pistoleiros sem voto puxam o tapetão, indiretas já, antes que sejam presos. Para quem pedia participação e novas forças representativas, ensaiamos um largo passo em sentido contrário. Tenho certeza de que muitos amigos meus, ainda que frontalmente contrários ao atual governo, sentem-se constrangidos com a evidente fratura do Estado Democrático de Direito. Acredito que ainda resta um senso de justiça no coração da maioria, capaz de resistir aos fabricantes de falsos consensos. Fica a pergunta aos indecisos, aos omissos e até mesmo aos cúmplices: é isso que queremos, na base do custe o que custar, depois a gente vê como é que resolve? É sério isso? Pois foi exatamente o que ocorreu em 1964. O “depois a gente vê” só rolou vinte anos mais tarde. Minha proposta é manter a democracia e a legalidade. Que se faça oposição dura, mas honesta. Que deixem governar e apresentem projetos de governo. Que seduzam a população com propostas concretas. Que aguardem 2018 e disputem o pleito. Que vençam se forem capazes.

 

Redação

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