No primeiro dia do ano, um protesto, nove cruzes e a revolta de uma mãe em Paraisópolis

da Ponte Jornalismo

por Caê Vasconcelos e Jeniffer Estevam

“Eu passo mal quando volto aqui. Não consigo nem olhar lá pra dentro”, murmura a vendedora Maria Cristina Quirino Portugal, 41 anos, tremendo sem parar, ao entrar na Viela do Louro, na tarde do primeiro dia de 2021. É uma passagem estreita da Favela de Paraisópolis, na zona sul da cidade de São Paulo, que mal suporta a passagem de três pessoas ao mesmo tempo.

Foi nessa viela que seu filho Denys Henrique Quirino da Silva, 16 anos, morreu sufocado, em 1º de dezembro de 2019, durante uma operação da Polícia Militar de São Paulo contra o baile funk da DZ7, que também provocou a morte de outros oito jovens, no episódio conhecido como Massacre de Paraisópolis.

Maria Cristina para de andar. Não consegue avançar. “Esse momento para mim é um momento de agonia, porque eu fico toda hora imaginando meu filho caído nesse chão aqui, imaginando as agressões que ele sofreu”, aponta.

Camisetas de Denys foram colocadas na entrada da viela | Foto: Jeniffer Estevam/Ponte Jornalismo

Respira fundo. Volta a caminhar pela viela. Ela traz martelo, pregos e nove cruzes de madeira, pintadas de branco, com o nome, em vermelho, dos jovens que morreram há mais de um ano, sem que qualquer um dos policiais responsáveis pelos crimes tenha sido responsabilizado, pela justiça ou pelo governo João Doria (PSDB).

Maria passou os últimos dias do ano confeccionado as cruzes para pregar no muro da Viela do Louro. “Isso não é uma homenagem, é um protesto”, acrescenta, agora mais refeita. Repete isso várias vezes enquanto prega e martela as cruzes no muro branco coberto de grafites. Além dos nomes, as cruzes registram os bairros de cada jovem assassinado. Nenhum deles era de Paraisópolis. “Quero que lembrem deles, que lembrem que eles não eram daqui, vieram de longe”, diz a matriarca.

Vitória, moradora de Paraisópolis, ao lado de Carla, madrinha de Denys, e Maria, mãe de Denys | Foto: Jeniffer Estevam/Ponte Jornalismo

Todo primeiro dia do mês, Maria prometeu a si mesma, ela pretende fazer uma ação de protesto, até que os assassinos sejam punidos. Além das cruzes que levou no primeiro dia do ano para a Favela, Maria confeccionou outras, que foram fincadas, um dia antes, na data em que Dennys completaria 18 anos, no Limão, zona norte, bairro em que Denys cresceu e morou até pouco antes de ser morto, quando a família mudou para Pirituba, também na zona norte.

Maria estava ansiosa desde que saíra de Pirituba, 40 minutos antes. “Decidi ir de carro, encontro vocês no CEU Paraisópolis”, avisou à reportagem da Ponte. Ao lado de Maria, no carro, estava a cuidadora Carla Magalhães, 41 anos, madrinha de Denys e amiga de longa data. No banco de trás, sua filha caçula e a neta de Carla. Assim que a reportagem chegou, Maria pediu a Carla: “coloca Rua Ernest Renan no Waze”. Mas o carro ficou alguns minutos parado, esperando a forte chuva diminuir.

Não foi a primeira vez que Maria visitava o local onde o seu filho foi morto, mas era como se fosse. Antes chegar à viela, pararam na casa de uma moradora da favela, que Maria conhecia da época que morava na zona norte. A amiga ficou cuidando da caçula de Maria, enquanto as demais seguiram até a Viela do Louro.

O relógio marcava 16h quando o trio chegou ao local. Vestiram as camisetas em homenagem à Denys. Maria só sossegou quando conversou com os moradores da viela e pediu autorização para pregar as cruzes na parede. “Pode fazer o que quiserem aí, é de vocês”, disse a moradora. O trio voltou para o carro para pegar as cruzes.

Denys Henrique, Pirituba. Dennys Henrique, Vila Matilde. Mateus, Carapicuíba. Luara, Interlagos. Eduardo, Carapicuíba. Bruno, Mogi. Marcos, Jaraguá. Gustavo, Capão. Gabriel, Mogi. Contaram. Havia nove cruzes, uma para cada vítima. Elas tinham entre 14 e 23 anos.

Olharam primeiro o chão da viela, onde os nove corpos foram colocados. Depois a parede do lado esquerdo. Quando viraram para o lado direito, uma surpresa: fotos de cada um dos jovens haviam sido colocadas ali. Havia oito fotos, uma deve ter caído, porque havia ali o espaço exato para ela.

Maria contemplando a foto de seu filho, Denys, na viela onde ele foi morto | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

Maria não sabia que se encontraria com o rosto de seu filho ali. Parou uns segundos em frente à foto. Fez carinho na imagem. Em seguida, colocou a mão em cada uma das outras fotos, como se fizesse uma bênção de mãe.

Uma por uma, as cruzes de madeira foram pregadas. A parede irregular dificultava as marteladas. Maria descontou nas marteladas a raiva pela impunidade dos assassinos. A cruz de Denys Henrique foi a primeira.

Todos os moradores que passavam no local olhavam o protesto. Alguns comentavam: “é para os nove”. Duas crianças, de no máximo 8 anos, contavam uma por uma as cruzes. “Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito. Está faltando uma”, diziam. Todos ali sabem muito bem que foram nove vidas arrancadas.

Maria, à esquerda, pregando as cruzes | Foto: Jeniffer Estevam/Ponte Jornalismo

Maria não se conforma. “Eu fico vendo a nuvem de fumaça das bombas, é uma agonia muito grande”, conta, imaginando a cena de terror que aquela viela protagonizou há exatos um ano e um mês.

“A juventude que se divertir. Muita gente critica os bailes, mas o baile não justifica o que fizeram com os nove. A polícia, nem ninguém, tem o direito de tirar vida de ninguém”, lamenta.

As nove cruzes de madeira com o nome e bairro de cada jovem | Foto: Jeniffer Estevam/Ponte Jornalismo

Nem o luto é respeitado, conta. “Você posta algo nas redes sociais e as pessoas aparecem criticando. O pai, a mãe e o próprio jovem, mas não procuram saber o que de fato aconteceu. Aqui não aconteceu um pisoteamento, foi uma ação da polícia que cercou os jovens e, dentro dessa viela, espancou, jogou bombas e fez e aconteceu.”

Ela lembra como a população de Paraisópolis acolheu a dor das nove famílias e foi corajosa: “A comunidade colaborou bastante com vídeos e depoimentos. Se não fosse isso essas mortes teriam saído impune. A comunidade teve coragem de mostrar o que a polícia tá fazendo. A polícia é uma farsa, é assim que hoje eu entendo”.

Ali naquela viela, um dos grafites diz isso. “Não acredite em contos de fardas”, grita o desenho. Maria também queria gritar, mas decidiu fazer esse protesto silencioso para mostrar sua dor. “Cada dia primeiro para mim, desde o dia que o meu filho morreu, é um dia de dor”.

Foto: Jeniffer Estevam/Ponte Jornalismo

Os 9 que perdemos. Virou hashtag para as famílias dos jovens. Maria sabe que, se o baile tivesse acontecido em outro local naquela madrugada, não na favela, seu filho estaria vivo. “Eles dizem que estão aqui para proteger e para servir, mas só quando é conivente para eles. Se tiver um baile na USP, na Vila Madalena, na PUC, eles não vão chegar fazendo o que fizeram aqui”.

Na versão dos PMs, tudo começou com uma suposta perseguição a uma moto com dois suspeitos que teriam atirado nos agentes e tentando se esconder no fluxo. Esse teria sido o motivo para atuarem na dispersão do baile funk. A PM não apresentou provas que sustentem essa versão alegando sigilo das investigações. Testemunhas negam a presença de uma moto na aglomeração e apontam para uma ação truculenta dos policiais, registrada em vídeos.

Maria não aceita essa versão. “Eles se eximem da culpa falando de uma moto, de uma perseguição policial, que acabou aqui. Isso nunca foi provado. Eles sempre falam isso: o indivíduo estava correndo, trocou tiros com a polícia e veio para cá. É sempre o mesmo argumento para mascarar”.

Foto: Jeniffer Estevam/Ponte Jornalismo

“Esses 365 dias que passaram foram de agonia. Sem respostas, sem notícias. A gente não pode deixar isso ficar impune”, lamenta Maria.

A despedida de Maria à reportagem foi sem abraços, já que o protocolo para prevenção do coronavírus só permite os olhares acima das máscaras.

“Vou deixar vocês aqui, que fica mais fácil para pegar o Uber, ok”. Fomos embora. Maria voltou para pegar sua caçula com a amiga de Paraisópolis. Deixando a zona sul onde Denys morreu, voltou para a zona norte onde ele viveu. E, dentro dela, ainda vive.

Outro lado

De acordo com a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, em nota enviada quando o massacre completou um ano, “os policiais envolvidos seguem afastados do serviço operacional” e a Polícia Militar “segue realizando ações para evitar a formação dos chamados pancadões em todo o Estado, por meio da Operação Paz e Proteção”.

A reportagem vem solicitando desde então uma entrevista com o governador João Doria para falar sobre o Massacre de Paraisópolis, sem resposta. O governo se limitou a enviou um posicionamento por meio de nota dizendo que ofereceu atendimento psicossocial e jurídico aos sobreviventes e às famílias das vítimas de Paraisópolis.

“O acolhimento se deu por meio de parceria entre o Centro de Referência e Apoio à Vítima, da Secretaria da Justiça e Cidadania, com a Defensoria Pública do Estado e a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social”, afirma o texto.

Redação

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