Nós e elas

   Corria a década de 70, mais precisamente o ano de 1973, e eu estava no primeiro colegial. A turma da escola era unida, a gente sempre inventava algum motivo para ficar junto. Aos sábados, por exemplo, rolavam os esperados bailes de garagem. Cuba-libre, sanduíches de pão pullman com patê de atum e garotas, principalmente garotas. Praticamente todos éramos virgens naquela idade, com os hormônios em plena ebulição. As espinhas no rosto fustigavam minha auto-estima. Dançar música lenta, de corpo agarradinho, era um passaporte para o topo do céu.

    Abro um parêntese para dizer que aqueles eram tempos de moral bicuda. A onda de liberação sexual que se seguiu ao power flower dos 60 não chegou nem a molhar os meus pés. Mesmo mais tarde, quando fui conhecer minhas primeiras namoradas, se ousasse tocar os seios de uma garota, lance que somente acontecia depois de muita manobra aproximatória, a “vítima” trancava imediatamente a respiração e enrijecia o corpo inteiro, cheia de terror, de tal forma que a única saída digna consistia em recuar da investida, sob pena de causar grave ofensa e invalidar todos os planos de sedução. Foi assim comigo, fui meio tardio no assunto, quem quiser pode tirar sarro à vontade. Esses momentos de erotismo juvenil ficaram gravados a fundo na minha memória, ganharam destaque em meio às lembranças, mas a verdade é que, até mais ou menos os dezoito, atividades prosaicas como futebol e estudos ocupavam quase todo o meu tempo. Parêntese fechado.

   As músicas que rolavam nos bailes de garagem eram baladas melosas de grupos como The Stylistics, baladas tão melosas como o aconchego de nossas cuecas. Numa daquelas festas, eu devo ter comido pouco sanduíche de pão pullman com patê de atum e, para descompensar, devo ter bebido muita cuba-libre com gelo e limão. Resultado: criei coragem e tirei uma menina pra dançar. Era uma menina negra, de porte imponente, se comparado ao meu aspecto de garoto franzino, uma linda parceira de dança, segundo minhas reconstruções mnemônicas. Tímida como eu. Acho que estava meio isolada do resto do pessoal e isso me ajudou a tomar iniciativa. A fita cassete girava, espalhando os primeiros acordes de Us and them, do Pink Floyd. Um teclado lânguido anunciava a entrada do sax tenor. O clássico álbum The Dark Side of the Moon acabara de ser lançado. Para quem não conhece, Us and them é bem lenta e possui estupefacientes 7 minutos e 46 segundos de duração, uma viagem sideral, um caminhar ritmado sobre nuvens, com o som de cada passo ecoando no infinito de estrelas. Alguém apagou as luzes da garagem e, então, mergulhamos naquela  escuridão mágica, eletrizados pelas faíscas do globo espelhado que pendia do teto. Todo mundo se atracou. Casais trocavam esbarrões involuntários, mas ninguém se interessava pelo que acontecia ao seu redor. De minha parte, a música, o perfume doce de patchouli e o corpo quente da amada – sim, era amor que eu sentia – dominavam inteiramente meus sonhos juvenis.

   Ah, o desejo… É certo que, no ritual pactuado daquele tipo de dança, o homem deveria cingir a cintura de sua parceira com delicadeza e a mulher, por sua vez, repousaria as mãos suavemente sobre os ombros do parceiro. Deveria ser assim, mas quem disse que dançarinos em chamas guardam algum apreço por coreografias? Abracei aquela deusa negra e apertei-a com tanta força que parecia querer violar as leis da física. As mãos de minha amada revolviam os cabelos na minha nuca, num gesto de cumplicidade e carinho comoventes. As mãozinhas dela quase tocavam minhas orelhas! E meus braços passaram a envolver aquelas costas por inteiro, como duas imensas cobras. Não é preciso dizer que, lá embaixo, tudo zumbia espremido. Os lentos compassos floydianos estimularam a busca de um alvo mais arriscado. Quanto mais nos apertarmos, calculei, mais a minha mão direita se aproximará daquele monte macio, tateando pela linha imaginária da alça traseira do sutiã sob a malha grossa. Quanto mais forte nos abraçarmos, mais me aproximarei do seio dela, oh, o seio direito da minha dulcineia. A música é longa, eu chego lá!

   Us and them ecoava no infinito azul de estrelas (você tem que ouvi-la para entender o que é isso), and after all, we’re only ordinary men… Sob o efeito hipnótico do fluido cor-de-rosa, eu a envolvia cada vez mais, enquanto experimentava suas mãos tecendo volutas em meus cabelos. Meu braço de homem-elástico esticava rumo ao monte sagrado. Depois de muito contorcionismo, já à beira da asfixia mútua, senti o meu dedo indicador alcançar um ponto além do Cabo das Tormentas, um ponto quase intangível, porque estava no limite do percurso aceito pelas leis da física. Não havia mais como avançar. Um toque com a polpa do dedo, tão somente um avarento centímetro de pele, porém suficiente para incendiar o sangue deste ser ordinário. We’re only ordinary men. Mas o que foi bom durou pouco. A voz de Roger Waters decaiu melancolicamente e a música chegou ao fim. Alguém acendeu as luzes e nossos corpos se afastaram devagarinho, para nunca mais se encontrarem. Foi naquele instante em que nos afastamos um do outro que percebi, desolado e coberto de vergonha: o tecido grosso e quase inatingível que cobria aquele seio-alvo era, na verdade, a pontinha de um cotovelo da minha dulcineia.

 

Obs: escrevi essas reminiscências depois de ler um post sobre rock progressivo (link abaixo), no qual foi citada a música “Us and them”, faixa do clássico álbum “The Dark Side of the Moon”, lançado também em 1973 pelo Pink Floyd.

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/close-to-the-edge-por-rick-wakeman-tecladista-do-yes#comment-1366957

Redação

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