O Alvo Pesquisado, um conto de José Emmanuel Fontes Pereira

 

Por Zeel Fontes (José Emmanuel Fontes Pereira)

 

 

 

 

Há histórias que são difíceis de serem contadas. Não pelo conteúdo, mas, justamente, pela falta dele.

Inverno em Salvador. Voltando de algum que fazer no centro da cidade, esperava meu ônibus em um daqueles pontos da Rua Carlos Gomes, que só sabemos que é ponto porque alguém um dia nos informou. Era um período de chuva. Nada de ônibus. Com aquela impaciência de quem espera, encostei-me a um pilar que sustentava o prédio, logo atrás de mim e fiquei a buscar algum tipo de pensamento que valesse a pena me ocupar naquela hora de tédio, mas nada fixava. O dia estava cinza. Carros passavam na via molhada e nem sempre tinham o respeito de evitar salpicar lama em quem habitasse a calçada, como eu, naquele momento. Fiquei atento para poder pular fora, na hora exata em que um pingo sujo começasse a descrever a sua parábola e me perdi no barulho gostoso dos pneus rasgando a água na superfície do asfalto, que fica com uma cor preta brilhante, quando encharcado. Mas, nada fixava…

Chega ao ponto, uma mulher. Madura. Mulata: bonita. Corpuda: que bem poderia ter sido a dona dos “saborosos cambucás”. O tempo pôde esculpir no seu corpo, além da constatação óbvia de uma juventude que deve ter deixado muito queixo caído, uma alegria de matrona em puro prazer. Ela sabia que era bonita. Ela sabia que os homens sabiam que ela era bonita… E sabia, ainda, que, mesmo casada com quem bem quis casar, gostava de saber que provocava o que provocava. Na dela. Ela era na dela. Só sabia e pronto: nada, além disso. Dela, exalava uma sensualidade de fêmea que pulverizava quaisquer conformes. Foi ela, pensei, a fôrma para as mulheres de Jorge Amado. Chegou meio apressada, mas se dando conta de que, naquele dia, o ônibus tava que tava de tanta demora, foi relaxando e deixando o olho absorver o movimento da cidade, da rua, do ponto. De onde eu estava, dava para observá-la inteira. A sua cintura parecia mais acinturada por ter que se ligar às suas outras curvas voluptuosas.

Junta-se a nós, um velho. Trazia, nas mãos, um guarda-chuva que usava em modo bengala. Um senhor. Vestia “camisa de botão”, de manga curta, por dentro da calça arrematada por um cinto marrom. Careca, taciturno, sério. Muito sério. Sério mesmo. Dava ares de pessoa alheia ao mundo que acontece fora de si. Um típico homem concentrado. Já parou focado na bunda da mulata. Parecia estar numa conferência profunda, dado o grau de comprometimento aplicado à investigação, milimétrica, do alvo pesquisado. Notando que o inesperado me chamava, deixei de lado os rasgos d’água e concentrei a minha atenção, inteirinha, no velho tarado. Não sei se por que já arquitetava algum plano ou se por conta da necessidade de movimentar-se, saiu, rapidamente, daquele espaço que ocupava, desde que chegara e foi até à beira da calçada para conferir alguma possibilidade de ônibus. Não retornou ao seu lugar. Desviou um pouquinho. Parou atrás da mulher madura, mulata, bonita, “corpazuda”, mirou na sua grande bunda e, inequivocamente, deu-lhe umas duas cutucadas com o seu guarda-chuva, agora em modo ereto, e, logo em seguida, com a ligeireza máxima que aquela sua idade lhe permitia, voltou a ser apenas um velho cidadão de guarda-chuva no inverno da cidade.

Eu, que já previra algum desfecho surpreendente, desemboquei o meu estado de atenção, que já havia se transformado em tensão, numa gargalhada, interna, incontrolável; embora, externamente, os meus lábios só tenham esboçado um riso tenso, diante da expectativa da resposta da senhora cutucada. Ela poderia pensar que tinha sido eu! Mas estava chovendo, o ônibus estava demorando, ninguém queria confusão. A alegre matrona olhou ligeiramente para trás e, na dela, tentou muito discretamente entender o que tinha acontecido, fazendo uma varredura com o seu olhar nas duas possibilidades daquele ponto: eu, mais distante, e o senhor do guarda-chuva, muito mais próximo a ela. Entendeu, voltou-se para frente, colocou as mãos na cintura e pronto. Ficou com sua certeza; o senhor, com a feliz lembrança de um alvo acertado e eu, já no ônibus, com a semente para essa história e uma questão que entremeava toda aquela cena, mas que não se aclarava: o que, naquele senhor, autorizou-o a ultrapassar a linha?

 

*Zeel Fontes é graduado em psicologia pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) Faz pós-graduação em Formação de Escritor no Instituto Superior de Educação Vera Cruz, São Paulo.

 

Redação

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