O Anti-Maquiavel

Meus textos publicados na internet provam que tenho dedicado considerável tempo ao estudo da obra de Maquiavel e à biografia dele:

https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-que-maquiavel-tem-a-ensinar-a-sergio-moro-por-fabio-de-oliveira-ribeiro

http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=14002

http://www.jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-sorriso-do-nicolau

Resolvi agora dar um pouco de espaço ao maior crítico do teórico florentino. Refiro-me a Frederico II e seu livro “O Anti-Maquiavel”, obra publicada por Voltaire quatro décadas antes da Revolução Francesa e que recebeu uma edição da WMF Martins Fontes em 2014.

Não me foi difícil encontrar uma chave para desmontar e reorganizar o livro do Frederico II. São constantes as referências do autor aos interesses dos governantes e à predominância dos interesses tal como a mesma teria sido defendida por Maquiavel.

A maior crítica a Maquiavel feita pelo rei prussiano pode ser encontrada nas páginas 8/9 da referida edição brasileira:

Os homens nunca devem pensar apenas em seus interesses. Se todos pensarem deste modo, já não haveria idéia de sociedade; pois, em vez de renunciarem a vantagens particulares pelo bem comum, todos sacrificariam o bem comum às vantagens pessoais.”

Segundo Frederico II, honestidade e virtude devem existir nas relações entre os governantes porque é do:

“… interesse dos príncipes, digo que é má política da parte deles trapacear e enganar o mundo: só enganam uma vez, o que lhes acarreta a perda da confiança de todos os príncipes.” (p. 107)

Um pouco adiante, Maquiavel é criticado, pois:

Parece-me que o autor político não tem muita moral para falar de leis, ele que só insinua o interesse, a crueldade, o despotismo e a usurpação.” (p. 114)

Às fls. 119 Frederico II afirma que:

Não se deve, portanto, esquecer que Maquiavel se engana muito quando acredita que no tempo de Severo bastava poupar os soldados para manter-se no poder; pois a história daqueles imperadores o contradiz. Nos tempos em que vivemos, um príncipe precisa tratar igualmente bem todas as ordens daqueles que deve comandar, sem estabelecer diferenças que causem ciúmes funestos a seus interesses.”

Segundo o autor do livro “O Anti-Maquiavel”:

Há príncipes que acreditam ser necessária para seu interesse a desunião de seus ministros; acham que serão menos enganados por esses homens se o ódio mútuo os mantiver mais em guarda acerca de sua conduta. Mas, embora esses ódios produzam tal efeito por um lado, também produzem outros, por outro lado, que são muito prejudiciais aos interesses desses mesmos príncipes; pois em vez de tais ministros contribuírem em pé de igualdade, o que acontece é que, para se prejudicarem, contrariam as opiniões e os mais convenientes para o bem do Estado, e confundem em suas brigas particulares a vantagem do príncipe e o bem-estar dos povos.” (p. 124/125)

A política de um soberano requer, parece-me, que ele não toque na lei de seus povos e, no que depender dele, reconduza o clero de seus Estados e seus súditos ao espírito de mansidão e tolerância. Essa política se coaduna não só com o espírito do Evangelho, que prega a paz, a humildade e a caridade para com os irmãos, como também é condizente com os interesses dos príncipes, pois, ao erradicarem o falso fervor e o fanatismo de seus Estados, eles afastam o tropeço mais perigoso em seu caminho, o obstáculo que mais deveriam temer; pois a fidelidade e a boa vontade do vulgo não resistem contra o furor da religião e o entusiasmo do fanatismo, que até abre os céus aos assassinos como prêmio de seus crimes e lhes promete a palma do martírio como recompensa de seus suplícios.” (p. 130)

Há príncipes que incidem num defeito totalmente contrário aos seus verdadeiros interesses: mudam de ministros com uma leviandade infinita e punem com excessivo rigor as mínimas irregularidades da conduta deles.” (p. 141)

Os ministros que os príncipes mantém nas cortes estrangeiras são espiões privilegiados que vigiam a conduta dos reis junto aos quais residem; devem descobrir os projetos de tais príncipes, esclarecer suas atitudes, aprofundar-se em suas ações, para informar seus senhores e adverti-los a tempo, caso percebam ações contrárias aos seus interesses. Um dos principais objetos de sua missão é consolidar laços de amizade entre os soberanos; mas, em vez de serem artesãos da paz, muitas vezes eles são órgãos da guerra. Sabem desfazer os elos mais sagrados do segredo graças ao atrativo da corrupção, são flexíveis, acomodatícios, hábeis e ardilosos; e, como seu amor-próprio anda de braços dados com o dever; eles se dedicam inteiramente a serviço de seus senhores.” (p. 161/162)

Ao longo de seu livro, Frederico II ataca ferozmente Maquiavel sugerindo que ao governar o príncipe deve levar em conta mais os valores (morais, religiosos e éticos) do que os interesses mundanos. Mas em alguns momentos ele mesmo admite que os interesses devem prevalecer aos valores. Os fragmentos destacados provam que no imaginário do autor de “O Anti-Maquiavel” o príncipe deve ter pouco consideração por valores quando é obrigado a lidar com soldados, ministros, fanáticos religiosos e política externa. Nestes casos o príncipe deve levar em conta apenas seus interesses.

Estes interesses podem ser qualitativamente diferentes daqueles que são sugeridos por Maquiavel, mas é impossível esquecer que Frederico II governou num contexto histórico muito diferente daquele que foi vivenciado pelo diplomata florentino. Além disto, a corrupção e o ardil empregados em política externa não se tornam virtuosos só porque foram admitidos como inevitáveis pelo rei da Prússia. Como Maquiavel o rei prussiano esquece os valores no exato momento em que passa a considerar a suprema necessidade do governante e do Estado: a segurança em face das ameaças.

Os biógrafos de Maquiavel afirmam que ele não foi conquistado pelo fanatismo de Savanarola. Em momento algum o adversário de Frederico II defendeu a tese de que a purificação religiosa seria um instrumento político adequado aos interesses dos príncipes. Muito pelo contrário, Maquiavel é o precursor da separação entre a política e a religião. Em “O Príncipe” ela aconselha o governante a preservar a religião dos seus súditos nos principados conquistados pelas armas. Nos “Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio” o florentino critica a credulidade dos seguidores de Savanarola:

Os florentinos não se julgam ignorantes ou grosseiros, e, contudo, Savanarola conseguiu convence-los de que conversava com Deus. Não tenho a pretensão de decidir se ele estava certo ou equivocado; sobre um homem tão extraordinário só se deve falar com respeito. Lembro apenas que muitíssimas pessoas acreditaram no que dizia sem nada ver de sobrenatural que pudesse justificar a sua crença; a sua doutrina, suas dissertações, a sua vida eram suficientes para que se ouvisse com fé as palavras que pronunciava.” (“Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio”, editora UNB, Brasília, 5a edição, 2008, p. 59)

Como Maquiavel, Frederico II também acreditava que não interessava ao governante estimular o fanatismo e a intolerância religiosa. Preocupados com o furor místico, sempre capaz de arrebatar os corações e mentes dos crédulos, ambos defenderam a tese de que os valores pregados no templo não deveriam influenciar a atividade do governante. Um governo procura paz, estabilidade e prosperidade econômica e as guerras religiosas instigadas pelos fanáticos e intolerantes produzem o oposto disto e podem ser facilmente iniciadas por religiosos eloquentes como o próprio Savanarola. Portanto, podemos concluir que há mais maquiavelismo em “O Anti-Maquiavel” do que Frederico II gostaria de admitir.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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