O avesso do avesso do avesso do avesso, por Pedro Augusto Pinho

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Pedro Augusto Pinho

Os avessos dos avessos não são apenas do “Sampa”, do inimitável Caetano Veloso, mas refletem o conhecimento de nossa dura realidade cotidiana, pelos inúmeros filtros com os quais o poder colonizador nos impede de conhecer e, pior ainda, de entender o que somos e nosso próprio País.

Vamos separar as categorias e as questões, pois as embaralhar, misturar causas com consequências, conteúdos com adjetivações, geral com particular é o que mais faz a pedagogia colonial.

Comecemos conceituando. O que denomino pedagogia colonial é tudo que nos chega aos sentidos e vai constituindo um sistema de percepção da realidade, impulsionado para direção única: a sujeição, a ausência crítica, o sentimento de impotência e inferioridade.


Isto ocorre nas aulas da escola, nos filmes do cinema, nas novelas da televisão e mesmo nas brincadeiras infantis. Sutilmente você começa a achar o estrangeiro e o que vem de fora do Brasil são melhores do que os daqui. E vem daí que qualquer erro, qualquer falta “só podia ser coisa de brasileiro”.

Mas, como não temos o privilégio (!) de colonizados, estas ações dos impérios europeus e estadunidense, no âmbito asiático exercidas pelo Japão, são aplicadas não só aqui, mas em todas as nações.

Há, no entanto, diferenças na construção da mentalidade colonizada, conforme a época, modelos e formas coloniais.

À época da ocupação territorial, com o poder da metrópole representado pelo governador local – qualquer que fosse sua denominação – simplesmente se impedia o acesso à informação ou esta chegava na língua e conteúdo da própria metrópole, quer sob a roupagem didática, quer sob a forma institucional e legal. Lembro-me de um artigo que li, quando trabalhava na República do Gana, antiga colônia inglesa (Gold Coast), que o autor afirmava ser o ensino colonizador destinado unicamente para leitura da Bíblia pelos ganenses.

Após as independências políticas, ocorridas desde o século XIX, a colonização política passa a se concentrar na economia. O consumo orientado pelos excedentes coloniais ou pelos fluxos comerciais controlados pelo colonizador e, muitas vezes, distintos do antigo “proprietário” das produções . No Brasil, de 1822 a 1930, foi da Inglaterra, que o cedeu então aos Estados Unidos da América (EUA). Estas datas são meros referenciais, pois, como é óbvio, não há “troca de bandeira”. Desde o início do século XX, principalmente com as Grandes Guerras, a presença dos EUA foi se tornando cada vez maior e de maior densidade, em todo mundo.

Se a palavra imperialismo, no sentido de dominação, era associada ao imperialismo inglês, no século XX passou a ser do estadunidense. A consciência do colonialismo cultural é, no entanto, bem mais recente.

E, pelo precursor tratamento do tema, que usarei um marco latinoamericano para desenvolver estas reflexões: Ariel, obra de 1900, de José Enrique Rodó.

O Governo da República Oriental do Uruguai, festejando o centenário do falecimento de  Rodó (2017), reeditou “Ariel”, pelo Ministério das Relações Exteriores, com notável introdução (Ariel, punto de partida para la acción) do professor e escritor Daniel Mazzone, da Universidad del Trabajo del Uruguay (UTU), que servirá para minhas referências, em tradução livre.

Ariel, que nossa mente eurocolonizada diria de imediato ser um Émile, de Jean-Jacques Rousseau, o que é um erro, trata não só da educação utilitarista, sob a influência estadunidense, como da questão mais ampla da cultura importada.

A partir dos segmentos que divide o livro, pretendo discorrer, com o caro leitor, sobre uma das principais, senão a mais profunda, causas de nossa pobreza material e intelectual e a ausência do movimento libertário que deveria empolgar todo Brasil.

O afastamento da juventude da vida pública e “o exemplo mutilado de humanidade” são dois elementos da alienação da realidade local apontados por Rodó. Acresce um modo de entender os conjuntos de forma a minimizar o local, ou, em termos culturais, a distinção de populares e eruditos. Com isso, a imitação, a cópia do estrangeiro colonizador, é vista pela perfeição do fac-símile, jamais pelo ridículo. Isto é a pedagogia colonial, a que me referi. O nacional vê o importado como natural, indistinto do local, esvai-se a realidade, como identifica “Ariel”.

Renato Ortiz (“Revisitando a Noção de Imperialismo Cultural”, in Crítica Contemporânea, Josué Pereira da Silva, org., Annablume, SP, 2002) aponta o “dilema da identidade” e a desvinculação das próprias condições materiais da existência como formadoras desta
colonização cultural.

Sem dúvida há o elemento existencial, para o qual não faltou a interpretação sartriana (Jean-Paul Sartre, “Le colonialisme est un système”, Les Temps Modernes, nº 123, março-abril 1956) vinculando a colonização à alienação.

Trato agora de um complexo tema que Rodó discute no “Ariel”: o nacionalismo, diante da pauta da submissão cultural, “de uma espécie de conquista moral”.

Quando saiu a primeira edição de “Ariel”, 1900, ainda estavam frescas na memória a usurpação pelos EUA de dois milhões de quilômetros quadrados ao México, 1848, e as invasões estadunidenses a Cuba e Porto Rico, 1898, para ficarmos na América Latina. Evidente que este fato é refletido em “Ariel”, mas como analisa Mazzone, “pensado muito além de uma conjuntura”.

Na fase colonial de então, impérios e colônias eram referidos por seus Estados Nacionais: império estadunidense, colônia uruguaia ou brasileira.

As lutas anticoloniais estavam presentes nos ideários das esquerdas, principalmente não marxistas, o que colocava as direitas locais, muitas vezes, na defesa do colonizador.

Mas o fascismo e o nazismo, expressões políticas de direita, eram nacionalistas, e, ainda mais, excludentes de raças ou etnias de outras nações, como a atual direita europeia. Disto resultou um espaço de dominação aproveitado pelo colonizador. É a nova colonização, não mais de um Estado Nacional, mas de um sistema econômico, melhor
dizendo, sistema financeiro, que cria para sua ação a denominação Nova Ordem Mundial, que designo, abreviadamente, “banca”.

Antes de tratar da colonização da banca, vamos aprofundar um pouco mais as lições em “Ariel”.

A dominação dos EUA, como Estado Nação, contou com o poderosíssimo instrumento da produção de Holywood, a maior força de dominação cultural que o mundo, até então, conhecera. Inúmeros negócios, vícios, formas de expressão, gostos musicais etc, como o cigarro, o automóvel individual no lugar de transporte coletivo, a aparente informalidade nos relacionamentos, o rock, a coca-cola, o jeans e muitos outros exemplos, que encheriam páginas, entram em nossa vida.

Holywood mudou o modo de vida e pensar em todo mundo em menos de cinco décadas. E lá está, premonitório Ariel, “nada é tão nocivo para um povo como se descaracterizar, perder toda noção de identidade”.

Os instrumentos de dominação cultural e da pedagogia colonial deixaram, tão somente, de atender aos impérios nacionais para servir a um sistema internacional: a banca.

Se “Ariel” falava de uma América Latina “invertebrada”, podemos falar hoje de Estados, todos eles, inclusive os que sediam os principais atores da banca, como Estados invertebrados. Não são de seus habitantes, dos seus naturais, que os governantes cuidam, mas dos interesses da banca, este sistema global.

De forma sarcástica poderia dizer que os governadores passaram a ser embaixadores. Se Rodó, conforme Mazzone, “desconfiava que os dirigentes latinoamericanos se deixaram subjugar pelo êxito das nações poderosas”, podemos afirmar que os embaixadores de hoje ou foram corrompidos no bolso ou na mente.

Estamos diante de uma ideologia planetária que detona as fronteiras nacionais para sua total apropriação das riquezas e coloca na concentração sistemática das rendas o único parâmetro.

Destaco mais um único ponto nesta obra precursora de José Enrique Rodó: a responsabilidade de uma geração.

Nós, a geração que se despede, gerada no último conflito mundial, somos os holywoodianos, os formados com um tipo de disputa que não mais existe. Não são os EUA que querem nos dominar, é a banca, usando os recursos institucionais, a estrutura de poder dos EUA, do Reino Unido, entre outras referências nacionais, que nos escraviza.

Os monopólios industriais, General Eletric, Unilever, IBM, Nestlé, Shell, tem o mesmo papel dos produtores culturais e informacionais, Warner Bross, BBC, Google, Reader’s Digest, Sony e publicitários Thompson, McCann, Ogilvy: a apropriação das riquezas para o sistema financeiro e a moldagem de um estilo de vida globalizado, distante de
qualquer referência local.

E, no caminho desta globalização, a banca precisa, como em toda dominação, construir um antagonista. Para os impérios eram outros impérios, para este sistema será uma ideologia, uma crença, tão imaterial quanto as próprias finanças de bitcoins. Os dirigentes dos EUA deixaram de ter em dirigentes comunistas, na União Soviética, o inimigo, agora, para os embaixadores, onde exercerem seus papéis locais, criam-se os terrorismos islâmicos, as filosofias bolivarianas supranacionais e os nacionalismos como alvos. Não se combate a Federação Russa mas o nacionalismo do dirigente Putin, como antes era
louvada a gestão Yeltsin.

Esta geração que enfrentará a banca precisa se despir dos preconceitos da guerra fria, daquela pedagogia colonial e saber pensar as novas hierarquias sociais, os desajustes enfrentados por nações ricas e pobres, o desemprego por toda parte, na Espanha e na Argentina, este novo império não nacional.

Fecho com um pensamento do mestre Pierre Bourdieu: autonomia deve ser sua capacidade de resistir. Ou você será escravo.

Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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